O inesperado acontece...
Paulo Ximenes*
Nove horas da manhã e o sol já importunava o mundo. O terreno era longo, sinuoso, acidentado e a mata rala não dava conta de aliviar a quentura. O velho apressava os passos, empinava a coluna, criava a impressão de um homem esguio. Ofegante, centralizava o chapéu de couro na cabeça e enxugava o suor com a manga suja da camisa. Seu vigor era impressionante. Quem já viu um sertanejo nordestino ter medo de alguma coisa ou esmorecer no caminhar? Mas nada justificava aquela espingarda calibre 12 e aquele facão preso à sua cintura, que de tão grande se arrastava pelo chão. E, ainda por cima, a cartucheira cruzada ao peito, que lhe emprestava um ar de jagunço.
O velho ia sempre na frente, abrindo caminho com o facão. O terreno logo se embrenhou pela mata. Era a subida de um serrote. Com um olhar desconfiado, de vez em quando ele fazia uma parada brusca e pedia silêncio. Alguns segundos de total imobilidade e vigília. Examinava o matagal como quem procurasse por um demônio. Depois, com um leve aceno de braço, liberava o engenheiro agrônomo que lhe acompanhava (realizando serviço de regularização fundiária) para prosseguir viagem. A marmota levou o técnico a se lembrar daqueles velhos filmes americanos da Segunda Guerra em que fuzileiros navais avançam em terrenos minados.
O técnico, calejado e
corrido no mundo, armado apenas com uma caneta e uma prancheta, começava a
estranhar aquela estratégia de guerra. Mas não fazia perguntas. Não queria
demonstrar medo nem dar cabimento às crendices. Nem descartar quaisquer outras
hipóteses. E se fosse o caso de um serial killer socado naquelas matas?
O trabalho de demarcação e avaliação de terras, até que um novo conjunto de conhecimentos científicos se apliquem a ele, será sempre algo fatigante. Requer disposição, vigor físico e coragem por parte de quem o executa. Para dar conta desse recado, muitas vezes é preciso se palmilhar distâncias, que se abram caminhos à golpes de foice, que se salteiem cercas de arame farpado, que se metam os pés nos rochedos das cobras, que se tangenciem casas de maribondo...
Mais uma vez o “nosso jagunço” levantava o braço e tornava a interromper a caminhada. Sua investigação misteriosa sobre algo vivo e invisível dentro da mata, já se tornava uma parvoíce: dedo no gatilho, olhos e ouvidos atentos, contração muscular de um predador camuflado na iminência de um ataque. Cena digna de um Alfred Hitchock. Contudo, entre uma suspensão e outra, o trabalho deu-se por concluído. Mas com a aproximação do pôr-do-sol, o velho recomendou a apressar os passos. “É muito perigoso ficar nessas matas a essas horas!”.
Aí já era demais! Passados alguns minutos de uma quase correria, o técnico, já meio ofegante, não se conteve:
– Perigoso? Por quê?
– Tem um leão enorme nessa mata. Eu mesmo vi!
– Um leão?!!!
– Sim senhor. Tem um leão aqui. Ontem ele comeu o garrote de compadre Joaquim. Só sobrou o couro e os ossos!
Depois de ponderar que talvez o velho fosse um alienado mental ou um alguém a sonhar que estava no “Parque dos Dinossauros”, ele insistiu nas perguntas:
– Não foi uma onça que o senhor viu?
– Não! Foi um leão.
– Mas, meu senhor, nós estamos no Ceará! Só existem leões na África. O senhor está enganado!
– Tô não senhor! Eu já vi
onça. Esse era um leão. E dos grandes. E, arqueando os braços, complementa: “a
juba é desse tamanho!!!
Ó bípede acéfalo! Como esperar de ti uma manifestação de senso? Assim fremiam as linhas do pensamento deste avaliador de terras, vendo-se obrigado a caminhar rápido numa atitude desarrazoada, com o dia já virando noite, vendo a hora de tropeçar nas pedras da vereda... Na avaliação dele, aquela conversa já descambara para a chacota.
Exaustos, chegam à choupana. Finalmente um
ar de sossego e paz. Hospitalidade de sertanejo nordestino é outro nível.
Cheirinho bom de comida, barulho de pratos e talheres. Mas do nada, a dona de
casa reascendeu o assunto: “Não deixei o meu neto ir pra a aula
hoje, mode o leão!”. E olhando para o agrônomo, querendo
incluí-lo na conversa, emendou: “ontem quase ninguém dormiu aqui com o rugido
da besta-fera!”. O técnico respondeu com um sorriso amarelo, e, decidido a não
tocar mais no assunto, depois da janta, armou sua rede na varanda
da casa, lá fora, quase ao relento. Seus anfitriões, assustados, pediram para
ele dormir dentro de casa, na sala. Insistiram muito. Mas o forasteiro,
querendo mostrar que não existe leão africano no Ceará, estava decidido a
pernoitar na varanda.
No dia seguinte, após o café da manhã e os
agradecimentos pela boa acolhida, com um longo e calado aperto de mão, ele
olhou fundo nos olhos do velho e tomou o rumo da cidade de Itapipoca. E, no
breu do seu âmago, pareceu-lhe ter deixado nos moradores da humilde casa a
lição de que a falta de conhecimento e as crendices andam juntas e que, via de
regra, elas nos levam a lugar nenhum. Chegando à cidade de Itapipoca, defronte
a uma banca de revistas, estava lá estampada na primeira página de um jornal
para todo mundo ver: “Leão foge de circo em São Bento de Amontada”
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