sábado, 1 de abril de 2023

ARTIGO - O Animal de Rebanho (RMR)

 O ANIMAL DE REBANHO
 Rui Martinho Rodrigues*

 

Abelhas e formigas são animais sociais. Suas sociedades têm (i) divisão social do trabalho, inclusive da tarefa reprodutiva e (ii) uma estratificação social típica do sistema de castas. Eram classificadas pelos velhos e bons manuais de Biologia como sociedades coletivistas, hoje havidas como “eusociedades” dotadas de “funcionamento perfeito” e “amistosas”, embora formigas e abelhas não sejam tão pacíficas nem o sistema de castas perfeito. Nelas o indivíduo serve à sociedade, não o contrário. “Perfeito funcionamento”, no caso, é juízo de valor no qual o indivíduo não é importante. A funcionalidade sem inovação também não é tão perfeita.


Leões e elefantes formam sociedades individualistas, sem divisão social do trabalho e sem estratificação social, renomeadas como “subsociedades”, indicando uma revisão valorativa da nomenclatura, para a qual a independência dos membros de uma sociedade indica uma condição mais primitiva e inferior. Mas o individualismo, salvo quando exacerbado, não significa conduta ou sentimento antissocial, nem uma imperfeição funcional. Ressalta apenas a primazia do indivíduo. Nas sociedades individualistas o indivíduo não existe em função da sociedade, mas a sociedade em função do indivíduo, assim como “o sábado foi feito por causa do homem; e não o homem por causa do sábado” (Marcos. 2;27). 

A visão do homem como animal político (Aristóteles, 384 a.C.– 322 a. C), nos coloca um passo além dos animais sociais, acima dos seus padrões repetidos. A aptidão política está na origem do processo democrático, quando os gregos adotaram o debate de ideias como método decisório nos negócios da polis, substituindo a força (Olivier Nay, na obra História das ideias políticas). Política guarda relação, entre outras coisas, com o uso da razão. 

O ignorante afirma, o sábio duvida e o sensato reflete. Isso resulta das diferentes manifestações da racionalidade, nem sempre perfeitas. A “lei” 80 e 20, de Vilfredo Pareto (1848 – 1923) descreve o fenômeno em que vinte por cento dos fatores produzem oitenta por cento dos resultados. A razão praticada pelo animal político parece corresponder ao descrito pela mencionada “lei”. Não falemos nos números de Pareto. Reconheçamos, porém, que graves equívocos influenciam poderosamente a história. Barbara W. Tuchman (1912 – 1989), na obra A marcha da insensatez, relata numerosos exemplos de decisões desastrosas, citando apenas as que foram tomadas por governos abertos aos críticos.

 

Ser animal político não exclui comportamento de rebanho. Líderes exercem enorme influência sobre as massas. A tecnologia ampliou o alcance do poder de manipulação das pessoas. Os tipos weberianos de liderança incluem a tradicional (inercial); a carismática (pessoal, emocional, pela identificação dos liderados com o líder) e a racional legal (normatividade impessoal) convive agora com um quadro mais complexo. 

Os meios de comunicação potencializaram o poder dos (de)formadores de opinião. A imprensa contribuiu para o relativo sucesso das reformas protestantes do século XVI. A Revolução Francesa contou com os jornais impressos e as enciclopédias. A era do rádio “coincidiu” com uma “safra” de líderes, como Haya de la Torre, Vargas, Peron, Mussolini, Hitler. 

As tecnologias digitais criaram uma tribuna franca, democratizaram o debate, quebraram o monopólio da mentira e da manipulação. Impactaram tão fortemente que os vaqueiros da boiada cidadã, outrora inimigos da censura, passaram a justifica-la. O mercado político tornou-se concorrencial. Adversários do livre mercado e da concorrência querem o “ministério da verdade” profeticamente descrito por Georg Orwell (1903 – 1950), na obra 1984. 

Herdeiros dos reis filósofos (Platão, 428 a.C.– 348 a.C.) projetam uma sociedade perfeita, ao modo das “eusociedades”. Mas não se constrangem em apregoar o individualismo radical, próximo do solipsismo. Promovem o rompimento dos laços propostos pelos conservadores: família, pátria, igrejas e rejeitam o limite dos direitos individuais formado apenas pela alteridade, sugerido pelos liberais. A guerra híbrida entre ideologias instrumentalizadas pelas grandes potências promove o tráfico de drogas psicoativas. No México, a participação de uma embaixada no tráfico evidenciou o que o ex-agente de um serviço secreto havia dito há décadas: trata-se de guerra. 

A engenharia social inspirada nos insetos coletivistas e o individualismo exacerbado, próximo do solipsismo, que só reconhece a individualidade hedonista, se harmonizam. A senhora de costumes cognoscitivos fáceis (Lucio Colleti, 1924 – 2001), também conhecida como dialética, harmoniza a contradição. Tribos urbanas identitárias podem ser coletivistas apesar de exaltarem a fragmentação social e denunciarem grupos sociais básicos como família e nação. Destruídas as estruturas de apoio e de controle social restará o Estado controlado pelos partidários da engenharia social e antropológica. 

As redes sociais despertam ódio, não pela mediocridade ou pelas mentiras, mas por desfazer o trabalho de três gerações, que levou ao domínio do que Louis Althusser (1918 – 1990) e Antonio S. F. Gramsci (1991 – 1937) consideravam “aparelhos ideológicos”: escolas, indústria cultural e meios de comunicação social em geral. Concluída a conquista de tais “aparelhos”, os demiurgos do bem dominavam totalmente a cultura. Então a tecnologia digital estragou tudo. 

O povo deve ser soberano, se executar as instruções dos reis filósofos. Dois livros de Lênin (Vladimir I. Ulianov, 1870 – 1924) expõem o duplipensar denunciado por Orwell. São eles: O Estado e a revolução, uma pregação anarquista defendendo todo poder aos soviets (conselhos populares com poderes legislativos e executivos) e O que fazer, em que defende todo o poder para os dirigentes revolucionários. A dialética pode fazer a síntese entre o círculo e o quadrado. 

O povo, para eles, deve ser o laicato, submisso ao comitê central, verdadeira cúria metropolitana dos “esclarecidos”. É heresia das redes sociais desafiar a infalibilidade dos guias. George Amado (1912 – 2001) já denunciava a “inquisição” dos líderes com atitude de cruzados, inclusive no cometimento de barbaridades.

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