A COMPREENSÃO
DA REALIDADE
Rui Martinho Rodrigues*
O mundo não é autoexplicativo. Não é um livro aberto. A expressão “a realidade que está aí” chegou a ser largamente usada. Parecia aludir a uma prova plena, que dispensa análise. Alguns professores defendiam o abandono do estudo de teorias. Diziam ir direto aos problemas. Era a transformação do magistério em militância política, espécie de catequese, forma tosca de doutrinação.
A confusão entre ensino e proselitismo deveu-se, em certa época, ao fato de que grande parte dos docentes era composta por clérigos da geração formada no tempo da Igreja Tridentina, sob a orientação do concílio de Trento (1545 a 1563), dedicado à contrarreforma, da chamada igreja pré-conciliar (anterior ao Vaticano II). Era a tradição que originou as Universidades, na Idade Média, para defender a autoridade da Igreja da Escolástica (Jacques Dreze, e Jean Debelle, na obra Concepções de Universidade).
A compreensão do mundo depende (i) do acesso a informações fáticas e (ii) de teorias que orientam o direcionamento e a interpretação da percepção. Informações fragmentadas ou meramente ornamentais, como conhecer edições raras ou nomes de autores, datas e lugares de fatos ou nomes de personagens são de pouca ou nenhuma irrelevância.
O proselitismo tem relação no magistério com os resíduos e derivações (Vilfredo Pareto, 1848 – 1923) da herança atávica da formação histórica da educação brasileira, formada por escolas confessionais. Estas, sobretudo dos Jesuítas, foram sucedidas pelo positivismo de Auguste Comte (1798 – 1857), também caracterizado de inclinação catequética. Veio depois a hegemonia ideológica dos demiurgos que pretendem impor uma reengenharia social, criando uma sociedade nova e por meio dela um novo homem.
As nossas escolas apresentam teorias sem mostrar as objeções que existem contra elas. É catequese. Paulo Freire (1921 – 1997) nomeou tal procedimento como educação bancária, porque limitada a ministrar depósitos de informações, sem o exame das objeções pertinentes.
O proselitismo continuou. É tática para o exercício do poder ou compreensão confusa de que todos devem ter um lado. O debate sobre neutralidade axiológica é antigo e não será resolvido. Fatores alheios ao rigor epistemológico impedem que seja solucionado. Mas é simples: temos (i) juízo de fato, de realidade ou de existência; e (ii) juízo de valor.
No primeiro temos a obrigação moral de guardar a mais rigorosa neutralidade. Não podemos alegar engajamento do bem para dizer que uma figura de quatro lados iguais é uma circunferência. Já o juízo de valor, por ser valorativo, não expressa verdade objetiva (quando o que é dito corresponde ao fato aludido), o que declara é um juízo moral. Aí devemos ter lado.
Um legista ao descrever uma ferida pérfuro-cortante e os seus efeitos, inclusive causando óbito, tem obrigação de ser neutro. Formula juízo de fato. Caso proceda de outro modo estará mentindo. O lado “do bem” não justifica tal coisa. Acusação e defesa do acusado deverão formular juízo de valor, devem ter lado acusando e defendendo, apresentando teses que devem se submeter ao contraditório, à crítica. O ensino laico deve apresentar juízo de fato. Objeções devem fazer parte do estudo, mas tal não ocorre. Professores e autores, como os militantes da imprensa, confundem ter lado com salvo conduto para o proselitismo ou repetem a catequese de que foram vítimas.
Descrever as duras condições de trabalho durante a Revolução Industrial, principalmente na sua primeira fase, deveria ser acompanhada do registro do fato de que as condições de vida no campo, de onde vinham os operários, eram ainda piores. A grande emigração do campo para a cidade não se fez sob coação. Foi uma fuga das terríveis condições no meio rural. Deveria ser dito que não houve retorno de desiludidos, das cidades para a roça, apesar dos proprietários de terra terem interesse em reverter a causa da escassez de mão de obra agropastoril.
Falar na Teoria da pauperização (descreve a economia moderna (capitalista) como progressivamente causar pobreza superlativa), mas a mortalidade infantil declinou e a esperança de vida ao nascer cresceu; o analfabetismo recuou e os anos médios de escolaridade aumentou, o acesso aos bens materiais foi democratizado; o escravismo foi empurrado para a esfera do crime. Erro ou manipulação esta é uma prática largamente difundida. A seletividade das informações é catequese que se reproduz. Resulta, ainda, do patrulheirismo que bloqueia a publicação do que foge da ortodoxia dos grupos organizados, conforme Pedro Demo registra em seu livro Intelectuais e vivaldinos.
Lamentamos a falta de estudo das teorias e das objeções a elas. Por outro lado, é igualmente lamentável o “teoricismo” abusivo. Quem fala em (i) exacerbação da miséria das massas, (ii) desigualdade social, (iii) concentração de renda e (iv) exploração, meramente repetindo teorias apresentadas sem as respectivas objeções ou foi enganado ou está enganando.
O falso debate baseado apenas na citação de autores de nomeada, sem o cotejo com as objeções, ignorando os fatos, como é o caso da omissão relativa aos indicadores de qualidade de vida e ao acesso aos bens materiais, configura “teoricismo” mal digerido que Luís de Gusmão, na obra O fetichismo do conceito, denunciou com eloquência.
A alegação de pauperização deveria ser cotejada com os indicadores de qualidade vida. A desigualdade deveria ser explicada como uma diferença injusta e com a discussão sobre o que seja tal coisa, ponderando direitos potestativos (que não exigem contraprestação nem podem ser contestados) versus mérito, demandas sociais, riscos e outras coisas.
A concentração de renda deveria ser estudada junto com curva de evolução dos indicadores de qualidade de vida. A logomaquia sobre exploração seria proveitosa se distinguisse exploração imanente ao trabalho assalariado da exploração incidental, cotejando a Teoria do valor trabalho com a Teoria marginal do valor. Não é assim.
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