CONDOLÊNCIAS
Reginaldo Vasconcelos*
Venho de parabenizar-te nesta data, pelo privilégio de teres privado tão longamente com o Haroldo, durante vinte três anos e seis meses, toda a tua idade de hoje.
Homem íntegro, boa praça, bom poeta, excelente pescador de caniço, grande conselheiro, inigualável paciência com mulheres e crianças, por mais tempo foi ele meu amigo que teu pai, mas teve contigo muito mais intensa convivência. Ele se foi e tu estás triste. Eu sei e compreendo. Acredite: nada é mais natural e previsível.
Contudo, deves lembrar-te de que a morte não celebra exclusividade com ninguém. Todos nós, cedo ou tarde, chegaremos a ela. É uma questão de tempo. E isso não é nenhuma tragédia. Esperemos que lá, mais perto de Deus onde talvez esteja agora, o Haroldo possa mexer nos cordões do destino para que, por cá, não experimentemos nós muitos e grandes sofrimentos.
O sofrimento, sim, é extraordinário e desnecessário. A morte, ao contrário, é a coisa mais banal do mundo. Se o nosso Haroldo estivesse sofrendo agora sofreríamos com ele, porque o sofrimento não tem lirismo e não tem graça nenhuma. Mas a morte, que é a negação da matéria, é pura poesia.
Sentiremos falta dele? Certamente. Mas, tu que o conheceste tão bem, que sabes do seu ânimo e do seu gênio, podes estar com ele em pensamento. Podes confidenciar-lhe fatos e podes consultar-lhe opiniões. Se fores honesto e isento, receberás as respostas certas, as mesmas que receberias dele em vida. Provocarás discussões, ouvirás conselhos, contarás anedotas e até obterás dele aquela sua maravilhosa gargalhada.
Por outro lado, temos que nos conservar vivos por mais tempo. Temos que viver por ele. Há uma hipótese de que através de nós os nossos grandes afetos que partiram possam vir gozar a vida. Penso que talvez cada um deles nos deixe na alma uma delegação expressa para desfrutar as benesses todas em seu nome. Se de fato estiverem dormentes sob a terra, e não brilhando no infinito... Ora! Dentro de nós eles não morrerão nunca.
“Cerveja que tomo hoje é apenas em memória” – como diz o poeta mineiro. Na verdade, já faz tempo que não tenho prazeres por mim mesmo. Desde que grandes amigos se foram, é sempre por eles que me regalo. Sento-me numa mesa servida com linguiças Maranguape, fritas, cebola refogada, mando vir uma Brhama muito fria e então faço a convocação usando uma antítese, brincando com o amigo que se foi e que não vejo: “Sente-se Leonardo, e vamos sofrer um pouco!”.
Ora se não foi pelo meu tio Luciano que pisei pelas calçadas geladas da Europa, que ele conhecia melhor que minguem, dos livros e dos filmes, mas que nunca visitou porque tinha medo de avião!
Já vi viúvas encolerizadas com os maridos por tê-las deixado, e até entendo. Entretanto, não concordo com os que nutrem compaixão pelos que morrem. A piedade é para os vivos, que encontram o sofrimento, e não para os mortos. Portanto, não te apiades do Haroldo. Também não tenhas dó de ti mesmo, que isso não faz sentido algum.
Há trinta anos tínhamos quatro avós, há sessenta tivemos oito bisavós, há noventa dezesseis tataravós, e essa conta chega a milhares entre os contemporâneos de Cabral. Vai aos milhões da antiguidade à pré-história. Todo esse contingente nasceu, viveu e procriou para que pudéssemos viver hoje.
Venceram pragas, pestes, feras, mares, guerras, fomes, para que pudéssemos vir aqui. Se tivermos pena de nós mesmo feriremos todos eles. Todos somos, pois, vitoriosos. Mesmo que vivamos um só dia já seremos um grande troféu da humanidade. E nós temos cumprido a nossa missão. Então, onde há júbilo não cabe compaixão.
Por
fim, transmita à comadre as minhas condolências, que somente a ela é cabível
condoer-se. Não há palavras que possam confortá-la. A morte do Haroldo lhe traz
novamente as dores de um parto, e executado às avessas, como outro poeta
concebeu, pois por muito longo prazo ela ficará pesadamente grávida de mágoas e
lembranças. A menos que mais cedo, sendo a comadre ainda jovem e formosa,
apareça alguém minimamente competente para proporcionar-lhe a délivrance.
De tua parte, como filho, caberá desincumbi-la das obrigações do matrimônio, que ela tanto honrou, desfeito apenas pela morte, conforme querem as Escrituras. Falo de homem para homem: além de mãe, ela agora é uma mulher carente e livre. É preciso abstrai-la do santo hábito de Maria para enxergá-la em carne e osso. A virtude não é privilégio dos solitários, e a solidão é um dos grandes castigos da velhice.
Receba a benção do padrinho.
Entrementes, quanto a mim, nesse particular, nada tenho a fazer. Eu e o Haroldo tínhamos um pacto realmente, firmado desde o movimento estudantil, quando apostávamos a liberdade e a vida contra os poderes federais: se um de nós sumisse, o outro lhe assumiria a companheira. Contudo, o compromisso está vencido. Não poderia mesmo trazer a comadre à minha cama e fazer aquela ironia, brincando com o amigo que se foi e que não vejo: “Deite-se conosco Haroldo, e vamos sofrer um pouco”.
Nota do autor. Esse conto exótico, em forma epistolar, e com um adendo do autor que não se integra na missiva, compunha uma lista tríplice para um concurso no Ideal Clube de Fortaleza, em 2013. A comissão não selecionou este texto, que permaneceu inédito até hoje, quando então foi encontrado entre alfarrábios.
20.12.2021.
Nenhum comentário:
Postar um comentário