HONESTIDADE
INTELECTUAL
Rui Martinho Rodrigues*
A neutralidade axiológica é um debate insolúvel, embora tenha por objeto um problema simples. Algumas proposições se repetem, ao longo do tempo, sobre neutralidade e engajamento. Todos têm um lado; neutralidade como omissão, conivência ou cumplicidade e máculas associadas ao “isentão”. Tudo isso procede e não procede. Tratando-se de juízo de valor, a isenção pode ser uma das condutas citadas, mas como juízo de realidade, também chamado de fato ou de existência, ter lado é um erro ou desonestidade intelectual.
O que um legista diz, em um laudo pericial, é um juízo de fato. Exemplificando: a perícia deve dizer que constatou, no cadáver, uma ferida perfuro-cortante no terceiro espaço intercostal esquerdo, com lesão de tais e tais vasos, ocasionando hemorragia externa e interna e óbito por hipovolemia. Tal seria um juízo de realidade, quer esteja certo ou errado.
O que caracteriza tal juízo é a natureza do objeto (fatos), não a perfeição da descrição e das conclusões. O legista não formulou nenhum juízo de valor, não reprovou nem justificou a conduta do autor do golpe mortal, observou a neutralidade axiológica e não foi omisso, conivente ou cúmplice com o autor do homicídio. Tivesse ele formulado juízo de valor teria sido desonesto intelectualmente, não só por extrapolar suas funções e por julgar a conduta baseando-se apenas no exame cadavérico, desprezando o conjunto probante.
O órgão do Ministério Público, dirigindo-se aos membros do Conselho de Sentença do Tribunal do Júri, descreveu o mesmo fato como agressão injustificada, covarde e traiçoeira. Formulou juízo de valor. Certo ou errado o acusador formulou um juízo de valor com base no conjunto de provas factuais, conforme os requisitos de conveniência e de oportunidade da discricionariedade facultada ao órgão ministerial.
Não deveria haver dificuldade em reconhecer as duas situações do exemplo citado. O debate, porém, não tem fim, quando se trata de questões políticas. A essência do fato político é o juízo de valor. A decisão política, porém, nada obstante ter caráter valorativo, precisa de fundamento factual. A inflação é mais prejudicial para os mais pobres, configurando um problema ético.
Como conter a inflação e identificar suas causas são fundamentos factuais relevantes para a decisão política que é valorativa. As ciências, da natureza ou da cultura, podem ser descritivas ou compreensivas. Estas buscam o significado da conduta dos sujeitos da ação social, sem pretensão de regulamentar condutas (Maximilian Karl Emil Weber, 1864 – 1920, na obra “Metodologia das Ciências Sociais”). A normatividade se restringe a ética e ao Direito.
A sofocracia dos reis filósofos projeta novas condutas e novos sentimentos em sua reengenharia social e antropológica. Tais “engenheiros” têm como inspiração as mais elevadas e altruísticas motivações, reforçadas pela vontade de potência mencionada por Friedrich Nietzsche (1844 – 1990), afinal, os generosos demiurgos da sociedade e de um homem inteiramente novos são “mais iguais”, na nova ordem pretendida, nos termos da alegoria de Georg Orwell (Eric Arthur Blair, 1903 – 1950), “A revolução dos bichos”.
O
problema ético não pode ser excluído das decisões políticas, mas não podem
conflitar com a realidade factual. As considerações valorativas podem observar
a ética da convicção, da responsabilidade ou situacional. Ter lado não poder
servir de salvo-conduto para mentir e enganar. Os valores podem ser contemplados
na perspectiva teocêntrica, cosmocêntrica ou antropocêntrica, podendo ser
abordados do ponto de vista crítico ou teórico. Seria necessário, para tanto,
outra reflexão.
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