LOTAÇÃO DE HISTÓRIAS
Paulo
Maria de Aragão*
Falássemos de tudo que sucede no interior dos
coletivos, teríamos uma farta coletânea de histórias hilárias, cheias de
imaginação e situações estapafúrdias, resistentes ao tempo. Nelas incluem-se o papo furado, o
galanteador a fazer as vezes de Don Juan, arquétipo do sedutor, clássico de
uma das peças de Molière. Num tom romântico, no restrito espaço do
corredor, desfiava de cor frases de efeito: “Não posso lhe
dar a verdade. A verdade está dentro de cada um.” "Hoje é o primeiro dia
do resto da sua vida". O fanfarrão emociona moçoilas e
“titias”, sentadas na fileira do meio, que parecem relembrar desilusões de um
ex-Don Juan.
Apesar disso, não raras vezes, surgem descuidistas,
desavenças por falta de troco, afora inconvenientes incontáveis. Penosa é a espera
do ônibus. Com horários reduzidos, filas serpenteiam, dando
lugar a discussões e empurra-empurra. Após a partida, no percurso, é que tudo se abranda com disparates
generalizados sobre futebol, política e parvoíces de que as nuvens são
carregadas de peixes para encher açudes, lagos e rios, e de que trovões podem
derrubar casas nas áreas descampadas.
Haja ignorância contra a lei da razão. E “fiat lux”
para dissipá-la, trazendo clareza e bom senso aos tramelas que falam de tudo.
De quando em quando, outros se salvam por ditos espirituosos: ”unir o útero ao agradável”, cuidar da saúde se
defendendo “do sol e seus raios ultraviolentos”.
Estes arrancam ruidosas risadas, mais prolongadas e escrachadas
do bebinho, escorado no pega-mão de apoio no vão da porta de
entrada: “vou saltar na próxima, conta a do padre...” No sacolejar do ônibus e
na apertura, vira e mexe a emissão de um pum provoca o fedor do
ambiente e a suspeita logo recai sobre o estigmatizado gordo que estiver
na área.
Os coletivos paradigmatizam cidades de composição
imagética tendo o poder de evocar sentidos, hábitos de vida e valores humanos
que nelas transitam, transportando estereótipos diversificados. Nelas fluem relações e fenômenos sociais e
culturais, os direitos são iguais, interagem pessoas boas, estranhas,
excêntricas, divertidas, rebeldes e cansadas que se entreolham. Seus rostos deixam igualmente entrever a expressão triste e angustiosa que se movem como sombras no vazio. São
eternas fontes reflexivas e de indagações na desconfiança humana, ao deixar de ser sujeito para ser
objeto, pela própria condição de passividade e submissão.
Não dá para acreditar em duendes e cegonhas, mas não
se descarta a possibilidade de se estar viajando com psicopatas ou sociopatas,
enquadrados no mesmo espectro de transtornos de personalidade antissocial.
Afinal de contas, a universalidade destes serviços é proporcionada pelo poder
público e disponível a todos, sem qualquer distinção de classe, gênero, cor,
orientação sexual ou outras formas de preconceito. Usuários mais tensos com
acidentes e assaltos fazem do trajeto uma via de louvação, debulhando as contas
do terço, repetindo ave-marias à surdina, ansiosos pela chegada em segurança
aos seus destinos.
Além destas manifestações de fé
religiosa,
são fantásticas as histórias que ocorrem no sufoco e nas angústias do dia a dia
nos coletivos. E dão-se amiúde, a exemplo daquela de Salvador onde há um bairro
chamado Pau Miúdo, de difícil acesso em virtude de uma ladeira íngreme. A obesa
baiana de bata de renda, vendedora de acarajé e abará na parada do ônibus,
perguntou ao cobrador: “Pau Miúdo sobe, moço?”
E, ele, ironicamente respondeu:
“Depende, dona”.
Noutro lance, a mulher, de meia-idade, nádegas volumosas, toma de assento ao lado de
empertigado senhor que protesta: “chegue mais pra lá, pois está me
imprensando na cadeira”. A bunduda, de boa concórdia, o atende. Tudo em vão,
porquanto ele volta a implicar: “assim vou sair pela janela”. E a ela redarguiu: “não
dá pra aliviar mais; só se aumentar as dimensões dos assentos e a largura do
corredor”. Aí, enfurecido, apela: “sua bunda
de tanajura não deveria andar de ônibus porque incomoda todo mundo. Vá de
táxi!” E sem papas na língua, a robusta não deixou por menos: “você queria que
deixasse minha bunda em casa? Pra onde for ela vai comigo. Vai se lascar bunda
seca, bunda mole e sem futuro...”.
Ônibus lotados, sardinhas
enlatadas, sempre estimularam assédios sexuais em volta de mulheres que viajam em pé.
Espremidas e assustadas, a qualquer descuido, telhudos roçam em suas pernas,
excitando-se como gatos e cachorros e sem oposição ascendem à região glútea. Mas
um
belo dia a casa cai, assim o diga o rotundo baixinho que
bobeou e se deu mal com a estudante, de cara de poucos amigos, ao reagir possessa: “Vagabundo, sai de
cima de mim!” “Vai se esfregar na pqp!” E sentou-lhe a mão nas bochechas e
chutes na genitália. O motorista
parou o coletivo, forçando-o a descer às pressas, espavorido, enquanto todos
gritavam num só acorde: “tarado, tarado...” Daí por diante não mais foi visto o
marmanjo
no bairro do Benfica.
Mas a intransigência, muitas vezes, prevalece por
parte de trocadores, motoristas e passageiros. Em verdade, ninguém respeita ao
mandamento “é proibido fumar” sequer outras regras. Quanto ao transporte de
pequenos animais, se desconhece a coibição, em particular, daqueles que podem
ser conduzidos, agasalhados, numa bolsa. São situações
inconfundíveis que o bom-senso dispensa aviso. No interior de um
ônibus da linha Praia de Iracema, sorridente casal, sulista, tinha ao colo um
irrequieto cãozinho, que se pôs a ganir manhosamente, denunciando a sua
inofensiva presença como clandestino. O trocador, arrogantemente, exigia a sua retirada
e a do inofensivo companheiro.
Os passageiros ainda tomavam seus lugares. Seu Luís, o motorista, mais arrogante, insurgiu-se diante a “ilegalidade”. “Meu ônibus não é carrocinha de cachorro que recolhe vira-latas para fábricas de sabão”; manda o casal se retirar, e este faz ouvidos de mercador. Improvisa-se uma comédia e a troça toma conta do veículo. Frustrado, procura um policial na Praça Waldemar Falcão, mas o logradouro estava ao léu. Se não tão patéticas, suas ordens seriam risíveis e a cada uma delas vinham apupos. O cãozinho assustado permanece latindo. Talvez, pelo carisma do jovem casal, os passageiros aderiram à causa do pet. Baldada a decisão de Seu Luís, e por não se chegar a bom termo, o Praia de Iracema deu partida e tomou outro itinerário: 1º Distrito Policial. Curiosos ali se apinhavam para saber da ocorrência e se acercaram do coletivo que parecia conduzir uma leva de presos.
Afinal de contas, entre beijos e abraços, o casal
desceu aplaudido, aconchegando o cãozinho, o principal protagonista do caso. E
sorridente seguiu seu rumo entre bisbilhoteiros, ávidos de saber o que se
passava. Enquanto isso, os passageiros revoltados ainda reprovavam o
comportamento do rabugento motorista. Mas, no país onda as leis são muitas e
tão pouco obedecidas, com quem estará o direito? Com Seu Luís ou com os donos
do cão?
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