sexta-feira, 20 de novembro de 2015

CRÔNICA - Lotação de Histórias (PMA)

LOTAÇÃO  DE  HISTÓRIAS
Paulo Maria de Aragão*


Falássemos de tudo que sucede no interior dos coletivos, teríamos uma farta coletânea de histórias hilárias, cheias de imaginação e situações estapafúrdias, resistentes ao tempo. Nelas incluem-se o papo furado, o galanteador a fazer as vezes de Don Juan, arquétipo do sedutor, clássico de uma das peças de Molière. Num tom romântico, no restrito espaço do corredor, desfiava de cor frases de efeito: “Não posso lhe dar a verdade. A verdade está dentro de cada um.” "Hoje é o primeiro dia do resto da sua vida". O fanfarrão emociona moçoilas e “titias”, sentadas na fileira do meio, que parecem relembrar desilusões de um ex-Don Juan.

Apesar disso, não raras vezes, surgem descuidistas, desavenças por falta de troco, afora inconvenientes incontáveis. Penosa é a espera do ônibus. Com horários reduzidos, filas serpenteiam, dando lugar a discussões e empurra-empurra. Após a partida, no percurso, é que tudo se abranda com disparates generalizados sobre futebol, política e parvoíces de que as nuvens são carregadas de peixes para encher açudes, lagos e rios, e de que trovões podem derrubar casas nas áreas descampadas.

Haja ignorância contra a lei da razão. E “fiat lux” para dissipá-la, trazendo clareza e bom senso aos tramelas que falam de tudo. De quando em quando, outros se salvam por ditos espirituosos: ”unir o útero ao agradável”, cuidar da saúde se defendendo “do sol e seus raios ultraviolentos”. Estes arrancam ruidosas risadas, mais prolongadas e escrachadas do bebinho, escorado no pega-mão de apoio no vão da porta de entrada: “vou saltar na próxima, conta a do padre...” No sacolejar do ônibus e na apertura, vira e mexe a emissão de um pum provoca o fedor do ambiente e a suspeita logo recai sobre o estigmatizado gordo que estiver na área.   

Os coletivos paradigmatizam cidades de composição imagética tendo o poder de evocar sentidos, hábitos de vida e valores humanos que nelas transitam, transportando estereótipos diversificados.  Nelas fluem relações e fenômenos sociais e culturais, os direitos são iguais, interagem pessoas boas, estranhas, excêntricas, divertidas, rebeldes e cansadas que se entreolham. Seus rostos deixam igualmente entrever a expressão triste e angustiosa que se movem como sombras no vazio. São eternas fontes reflexivas e de indagações na desconfiança humana, ao deixar de ser sujeito para ser objeto, pela própria condição de passividade e submissão.

Não dá para acreditar em duendes e cegonhas, mas não se descarta a possibilidade de se estar viajando com psicopatas ou sociopatas, enquadrados no mesmo espectro de transtornos de personalidade antissocial. Afinal de contas, a universalidade destes serviços é proporcionada pelo poder público e disponível a todos, sem qualquer distinção de classe, gênero, cor, orientação sexual ou outras formas de preconceito. Usuários mais tensos com acidentes e assaltos fazem do trajeto uma via de louvação, debulhando as contas do terço, repetindo ave-marias à surdina, ansiosos pela chegada em segurança aos seus destinos.

Além destas manifestações de fé religiosa, são fantásticas as histórias que ocorrem no sufoco e nas angústias do dia a dia nos coletivos. E dão-se amiúde, a exemplo daquela de Salvador onde há um bairro chamado Pau Miúdo, de difícil acesso em virtude de uma ladeira íngreme. A obesa baiana de bata de renda, vendedora de acarajé e abará na parada do ônibus, perguntou ao cobrador: “Pau Miúdo sobe, moço?”
E, ele, ironicamente respondeu: “Depende, dona”.

A simpática senhora só queria saber se o raio do ônibus subiria a ladeira.

Noutro lance, a mulher, de meia-idade, nádegas volumosas, toma de assento ao lado de empertigado senhor que protesta: “chegue mais pra lá, pois está me imprensando na cadeira”. A bunduda, de boa concórdia, o atende. Tudo em vão, porquanto ele volta a implicar: “assim vou sair pela janela”. E a ela redarguiu: “não dá pra aliviar mais; só se aumentar as dimensões dos assentos e a largura do corredor”. Aí, enfurecido, apela: “sua bunda de tanajura não deveria andar de ônibus porque incomoda todo mundo. Vá de táxi!” E sem papas na língua, a robusta não deixou por menos: “você queria que deixasse minha bunda em casa? Pra onde for ela vai comigo. Vai se lascar bunda seca, bunda mole e sem futuro...”.

Ônibus lotados, sardinhas enlatadas, sempre estimularam assédios sexuais em volta de mulheres que viajam em pé. Espremidas e assustadas, a qualquer descuido, telhudos roçam em suas pernas, excitando-se como gatos e cachorros e sem oposição ascendem à região glútea. Mas um belo dia a casa cai, assim o diga o rotundo baixinho que bobeou e se deu mal com a estudante, de cara de poucos amigos, ao reagir possessa: “Vagabundo, sai de cima de mim!” “Vai se esfregar na pqp!” E sentou-lhe a mão nas bochechas e chutes na genitália. O motorista parou o coletivo, forçando-o a descer às pressas, espavorido, enquanto todos gritavam num só acorde: “tarado, tarado...” Daí por diante não mais foi visto o marmanjo no bairro do Benfica.

Mas a intransigência, muitas vezes, prevalece por parte de trocadores, motoristas e passageiros. Em verdade, ninguém respeita ao mandamento “é proibido fumar” sequer outras regras. Quanto ao transporte de pequenos animais, se desconhece a coibição, em particular, daqueles que podem ser conduzidos, agasalhados, numa bolsa. São situações inconfundíveis que o bom-senso dispensa aviso. No interior de um ônibus da linha Praia de Iracema, sorridente casal, sulista, tinha ao colo um irrequieto cãozinho, que se pôs a ganir manhosamente, denunciando a sua inofensiva presença como clandestino. O trocador, arrogantemente, exigia a sua retirada e a do inofensivo companheiro.


Os passageiros ainda tomavam seus lugares. Seu Luís, o motorista, mais arrogante, insurgiu-se diante a “ilegalidade”. “Meu ônibus não é carrocinha de cachorro que recolhe vira-latas para fábricas de sabão”; manda o casal se retirar, e este faz ouvidos de mercador. Improvisa-se uma comédia e a troça toma conta do veículo. Frustrado, procura um policial na Praça Waldemar Falcão, mas o logradouro estava ao léu. Se não tão patéticas, suas ordens seriam risíveis e a cada uma delas vinham apupos. O cãozinho assustado permanece latindo. Talvez, pelo carisma do jovem casal, os passageiros aderiram à causa do pet. Baldada a decisão de Seu Luís, e por não se chegar a bom termo, o Praia de Iracema deu partida e tomou outro itinerário: 1º Distrito Policial. Curiosos ali se apinhavam para saber da ocorrência e se acercaram do coletivo que parecia conduzir uma leva de presos.

Afinal de contas, entre beijos e abraços, o casal desceu aplaudido, aconchegando o cãozinho, o principal protagonista do caso. E sorridente seguiu seu rumo entre bisbilhoteiros, ávidos de saber o que se passava. Enquanto isso, os passageiros revoltados ainda reprovavam o comportamento do rabugento motorista. Mas, no país onda as leis são muitas e tão pouco obedecidas, com quem estará o direito? Com Seu Luís ou com os donos do cão?


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