domingo, 21 de dezembro de 2014

CONTO (RV)

FELIZ E EM PAZ
Reginaldo Vasconcelos*

Era médico, fizera o juramento de Hipócrates, vinha de uma família tradicional de nordestinos, com pai honrado e tios padres. Foi nomeado por parente político da Capital para o departamento responsável por assuntos funerários.

Médicos geralmente cuidam da saúde e da vida, mas também da doença e da morte, e a ele coube tratar dos assuntos de Tânato na burocracia da cidade.

E não se pense que os trabalhos funestos, no âmbito do serviço público, sejam lúgubres e mortiços, silenciosos e parados, pois os defuntos e suas exéquias movem um mundo de interesses, movimentam negócios, geram fortunas e inspiram uma gama de atividades ilegais. 

Atestados de óbitos, exatas causa mortis, erros médicos e crimes, hospitais e cartórios,  traslados e enterros, necropsias e legistas, embalsamentos e velórios, flores e missas, cemitérios e crematórios, processos de inventário, tudo isso agita escritórios e empresas, demandando tarifas e controles, autorizações e alvarás. 

O jovem médico logo percebeu que o seu birô funcional era um campo fértil para propostas escusas de favorecimentos e propinas. E decidiu que não se corromperia por nada, que, para burlar as leis, empresários e profissionais corruptos teriam que pisar no seu cadáver. Que honraria a confiança de quem o nomeou, o bom nome da família, os conselhos de seu pai.

A primeira provação lhe veio quando o dono de uma rede de agências funerárias quis abrir um complexo para velórios de luxo no melhor bairro da metrópole, e lhe propôs rica porcentagem no rendimento do negócio, se lhe aprovasse a papelada. “Eu já estava para deferir o seu caso, mas diante dessa sua oferta vou repensar a conveniência”. 

Depois, quando um outro teve alvará aprovado, e em sinal de gratidão descabida lhe enfiou no bolso do paletó um maço de notas alentado. “O senhor retire o dinheiro daí, ou eu revogo o documento”. E, assim, por cerca de um lustro, foram muitas investidas e muitas respostas refratárias, as leis e as posturas do município inteiramente preservadas.

Até que uma moça apareceu angustiada com o drama de não conseguir exumar e remover os restos mortais do avô, inumados havia décadas em um cemitério de subúrbio, que estava ameaçado por obra pública. Pretendia ela que os despojos do velho querido fossem transferidos para o jazigo da família, na sua cidade natal, para ficar ao lado dos demais defuntos do mesmo clã a que pertencia.

Para fazer essa operação simples era preciso vencer uma burocracia impeditiva, pois se lhe requeria documentação antiga que não mais existia ou ninguém sabia onde estava. E se aproximava o dia em que a máquina do governo revolveria o campo santo para ampliação de uma via pública, relegando o conteúdo das velhas tumbas abandonadas à vala comum dos indigentes. 

O diretor do departamento se apaixonou pela causa, perdeu o sono, imaginou soluções viáveis, mas nada podia fazer sem fraudar o regramento oficial, traindo o seu propósito de exação profissional absoluta. Instalou-se o dilema moral, diante do justo e do ilegal.

Então, vencido pelo coração, chamou a moça à puridade e lhe propôs o pacto de que doravante nunca os dois se terem visto. Que ela fosse à necrópole em horas mortas, gratificasse um coveiro, e promovesse a transferência do morto por sua própria conta e risco. E ele, para por seu turno ficar em paz, procurou se esquecer daquele caso. 

Passados anos, reencontrou aquela neta devotada que lhe contou o desfecho da história. Levara consigo, na sua bagagem de mão, a bordo de um ônibus coletivo, ao repouso eterno na sua cidade de origem, o crânio em uma frasqueira e o demais esqueleto em uma maleta  os ossos do próprio avô que, enfim, segundo ela, jazia agora feliz e em paz. 


*Reginaldo Vasconcelos
Advogado e Jornalista
Titular da Cadeira de nº 20 da ACLJ

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