Segundo a famosa fábula de Andersen, o rei desfilava nu, imaginando estar usando roupas de um deslumbrante tecido especial que somente as pessoas inteligentes poderiam enxergar – segundo o falso tecelão que o vendeu ao rei, por uma quantia milionária.
Obviamente, o próprio rei não via a ficta roupa, mas não podia admitir isso. Se o fizesse se confessaria idiota, pois todos acreditavam que apenas os mais argutos poderiam ver o tecido mágico. Os áulicos da corte, na mesma linha, elogiavam as vestes imaginárias do monarca, pois precisavam fingir que as estavam apreciando.
Do mesmo modo, todo o povo do reino notava a nudez do rei, mas cada súdito em particular fingia perceber os belos trajes reais, e os aplaudia, pois ninguém queria se revelar um parvo, já que de fato não os podia ver. Até que uma criança, na sua pureza infantil, gritou: “O rei está nu!”. E só assim se rompeu o véu da farsa.
Na vida brasileira há sempre reis republicanos despidos de sua vestimenta moral, todos sabem e comentam, mas ninguém faz nada, porque não aproveita a ninguém afrontar os poderosos. Em regra, para participar do poder é preciso pactuar com essa nudez da ética, ou pelo menos silenciar sobre ela, pois os que tentam rasgar o véu ao final são massacrados.
Por exemplo, todo mundo sabe que cada mandato eletivo tem um preço em dinheiro, cotado em dólares ou euros, e que os vencimentos de um parlamentar, por todo o mandato, nem de longe podem compensar esse valor.
Então, exceto fenômenos como o índio Juruna e o palhaço Tirifica, que se candidatam pela bizarrice notória e que o povo elege para protestar, obviamente todo eleito tem financiadores, entre empreiteiras e partidos políticos, os quais vão lhe cobrar favores econômicos que dependam do cargo assumido.
De repente alguém cai em desgraça na mídia, é filmando recebendo recursos, é gravado prometendo favores, e tudo se afigura como uma grande exceção à regra, tudo parece uma grande novidade.
Que bandido! Que ladrão! Todos o criticam, todos o execram, inclusive colegas de partido passam a apontar-lhe os dedos sujos. Cabe perguntar: “E cadê os outros?”, como indagava o macaco Sócrates. Eu respondo: os outros se misturam à turba para apedrejar a “Geni” da vez, para que pareçam inocentes.
A Presidente, então, sob o clamor do povo, toma da vassoura e faz a sua faxina tópica, coisa que não podia fazer antes para não descumprir acordos, não perverter o sistema político, não perder a governabilidade, não abalar o castelo de cartas que esconde a nudez republicana.
A Polícia Federal é enfim acionada, os Tribunais de Contas abrem sindicâncias, os grandes pretórios judiciais são provocados, e tudo fica no umbral burocrático, até que novo escândalo seja deflagrado pela imprensa, para novamente servir algum sangue fresco ao populacho.
É também consabido que as contratações de empresas privadas para execução de obras públicas são a grande fonte do caixa dois eleitoral, em todo o país e em todas as esferas. Seja por meio de falsas concorrências ou de sua dispensa emergencial premeditada, a corrupção grassa, e como move recursos não contabilizados, essa prática tanto engorda campanhas políticas como gera enriquecimento ilícito.
Assim, exatamente como na fábula de Andersen, o rei vive nu entre nós, mas ninguém quer, nem pode, se rebelar contra os esquemas amorais. Até que a imprensa, assim como o menino da fábula, de vez em quanto diz e demonstra que uma determinada nádega política está exposta, que uma certa genitália real está hirta e ativa contra o interesse público. Então, e só então, com um novo segredo de polichinelo escancarado, a população do país se escandaliza e revolta.
Ora bolas, só os idiotas não sabem que existem pactos entre as empreiteiras dos governos, que estabelecem entre si um confortável sistema de alternância de contratos, o que de fato já constitui uma verdadeira “ética de mercado” – e ninguém se espante com isso, que o crime organizado vive de uma rígida ética própria.
Moral da história: o esquartejamento de meia dúzia de inditosos bodes expiatórios pontualmente flagrados pela mídia e demonizados pelo povo vai saciar a hipocrisia geral, mas não vai mudar essa cultura secular, muito bem acomodada no país. Infelizmente, nem mesmo a bem intencionada Presidente Dilma vai conseguir vestir a nudez republicana, antes que se faça uma improvável reforma política radical.
Postado por Reginaldo Vasconcelos
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