ESTADO DEMOCRÁTICO
DE DIREITO E PROGRESSO
As transformações do Estado
A adjetivação do Estado como democrático, classificado logo após como “de direito” não e apenas um pleonasmo destinado a enfatizar a natureza democrática da organização jurídico-política referida. Pretende fazer a distinção entre o Estado liberal, que é um Estado de direito entendido como guardião das liberdades negativas, que são aquelas de agir e fazer; a defesa dos direitos potestativos, que não admitem contestação, mas são de mera liberdade negativa, sem o sentido de patrocínio, sem título de crédito contra terceiros. O Estado Democrático de Direito (EDD) se coloca como “etapa evolutiva do Estado”, não apenas “mais avançada” do que o Estado absolutista e o Estado liberal. Até o Estado social seria menos avançado do que o EDD. Tem, portanto, o pressuposto de que a história social e política é evolutiva, entendendo-se como tal uma marcha triunfal na forma de uma sucessão de aperfeiçoamentos.
A superioridade do Estado liberal em face Estado absolutista concebido por Thomas Hobbes (1588 – 1679) não é objeto de discussão, podendo ser afastada, a exemplo da conduta adotada nos processos judiciais, denominada saneamento do processo, quando são retiradas de pauta os pontos não litigiosos. Registre-se apenas que o Leviatã hobbesiano se legitimava por oferecer segurança em face das desordens, descritas como tendentes à guerra de todos contra todos. O Estado liberal ofereceu mais do que proteção contra desordens ou algo mais grave, como a alegada guerra de todos contra todos aludida por Hobbes. Ofereceu liberdade concebida como aptidão para exercer escolhas no campo do agir e fazer, conforme José Guilherme Merquior (1941 – 1991), na obra O argumento liberal.
O Estado social ofereceu bem-estar na forma de proteção aos grupos vulneráveis, propondo ainda a superação das desigualdades, sendo ultrapassado pelo EDD que pretende oferecer proteção a todos, não apenas aos vulneráveis, resguardando não apenas as necessidades objetivamente descritas como básicas e hierarquizadas por Abraham H. Maslow (1908 – 1970). A superação do Estado social pelo EDD é apresentada por Carlos Simões, na obra Teoria & crítica dos direitos sociais.
Definido o que sejam necessidades humanas, segundo um padrão
hierárquico não concebido pelos cidadãos, mas por “quem detém o conhecimento”,
ganha “legitimidade” o poder exercido por uma elite política, intelectual e,
por que não dizer, virtuosa, temos de volta o projeto dos reis filósofos de
Platão (428 a.C.– 348 a.C.), da obra A república, considerada o Magnum
opus do autor citado, embora ele tenha escrito uma retratação na obra As
leis. Os intelectuais são deslumbrados com A República, afinal, nela
eles são “mais iguais”, como diria George Orwell (1903 – 1950), na obra A
revolução dos bichos.
O que seria a evolução histórica?
A dinâmica da História, na Antiguidade clássica, era um eterno retorno. Em Eclesiastes 1: 9 lemos: “O que foi é o que há de ser; o que se fez, isso se tornará a fazer; de modo que nada há novo debaixo do sol”. O eterno retorno estava também no pensamento dos gregos, conforme G. Reali e D. Antiseri, na obra História da Filosofia. Outra visão da dinâmica dos fatos históricos entende que o processo civilizatório é uma marcha triunfal na forma de sucessivos aperfeiçoamentos, como dito.
Jacques Le Goff (1924 – 2014), na obra História e memória, distingue as transformações ocorridas em diferentes âmbitos. Assim, o campo da técnica avança rapidamente de aperfeiçoamento em aperfeiçoamento. A ciência também progride, mas em ritmo mais lento. Karl R. Popper (1902 – 1994), na obra Textos escolhidos, corrobora com Le Goff ao dizer que a ciência cresce corrigindo erros, logo, cresce no sentido de aperfeiçoamento. Le Goff adverte que as instituições, poderíamos destacar aquelas de natureza jurídico-políticas, não avançam sempre na direção do aperfeiçoamento, mas descrevendo uma curva cheia de altos e baixos. Não há uma tendência evolutiva no conjunto das transformações históricas.
As instituições passam por transformações valoradas ou não como aperfeiçoamentos, dependendo das concepções adotadas. A dinâmica dos acontecimentos pode ser vista como determinada pela organização das forças produtivas, nos termos do “modo de produção” e as transformações seria obtidas pelo conflito. O reducionismo da História ao conflito é mais estreito quando descrito como luta entre as classes sociais. O materialismo histórico, assim compreendido, é uma das vertentes da percepção da marcha dos acontecimentos históricos como evolução com o significado de aperfeiçoamento. A concepção evolutiva da história ganhou força quando o mundo contemplou a grande evolução da ciência, da técnica e das organizações político-jurídicas.
Outra visão da História ressalta o fato de que os aperfeiçoamentos da organização social, política e econômica, bem como os grandiosos avanços da ciência e da técnica só poderão ser considerados progresso da História, no sentido de aperfeiçoamento, se servirem para nos tornar (i) mais aptos a superar os nossos conflitos íntimos. Mas estamos menos ansiosos, menos insatisfeitos com o que somos ou fomos? Dependemos menos da ajuda de profissionais? Dependemos menos do escapismo que nos leva às drogas psicoativas lícitas ou ilícitas? O suicídio declina? A resposta negativa se é apropriada para cada uma destas perguntas. O “progresso” deve (ii) nos capacitar a conviver melhor com o outro. Convivemos melhor com os nossos familiares, vizinhos, colegas de trabalho, professores, alunos, patrões, empregados e demais comunicantes do que no passado? A criminalidade tende a cair continuamente ao longo da história? A paz é a tendência histórica contínua? Não é a resposta a todas estas indagações. (iii) Precisaríamos, ainda, para sermos aperfeiçoados, conviver melhor com a natureza. Não parece que isso esteja acontecendo. Então progresso, considerado genericamente, ou tomado como tendência histórica contínua nas relações sociais é falácia. Progressismo é ilusão.
Fica a promessa de trazer mais algum complemento.
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