SOBRE O FENÔMENODA AMIZADEReginaldo Vasconcelos*
O senso comum tem distorcido a concepção de amizade. Os operadores do Direito estabelecem os conceitos de “amigo íntimo” e de “inimigo capital”, para configurar conflito de interesses e o critério jurídico que define suspeição de um juiz, em relação a uma das partes de uma causa que ele julgue.
Na verdade, amigo não é necessariamente aquele com quem se tenham vínculo de família, ou com quem se conviva no trabalho, ou com quem sentamos numa mesa de bar ou de negócios, tampouco cada um dos que têm conosco relações cordiais na sociedade.
Amigos são pessoas de padrão socioeconômico comum, de nível intelectual parelho, de trajetória existencial correspondente, de experiência de vida similar – cada um projetando em si, por empatia afetiva, as glórias e as dores que o outro experimente – solidariamente se regozijando ou condoendo.
Diferença de idade não oportuniza a amizade, mas não a impossibilita quando os demais requisitos coincidem e as almas de irmanam – mas o afeto entre pessoas de sexos opostos (que têm universos psíquicos tão distintos) tende a migrar do amor “filos”, que os gregos identificavam entre os amigos, para o amor “eros”, que supõe atração física marital.
Até porque amigos verdadeiros vivem entre si o efeito psíquico do espelho – cada um vê no outro uma reprodução da própria imagem, seu outro “eu” – e assim resgata um ao outro da ontológica solidão essencial, reduzindo entre eles a sensação de alteridade.
“Aqui é nóis!” – diz o homem do povo ao seu parceiro, ainda que às vezes retoricamente, no campo do dever-ser e não do ser em relação à amizade. Realmente, os amigos são “nós”, antes de serem “tu” e “eu”. Celebram intimamente um pacto de fraternidade virtuosa – “Estamos juntos!” – diz a gíria moderna, no mesmo sentido, de maneira mais culta e refinada.
Bons amigos, amigos velhos, mesmo que pouco convivam, são aqueles que se confessam e se aconselham um ao outro. Cada qual abre o peito cheio de dúvidas ou de certezas provisórias e espera ouvir o eco da razão, ou vislumbrar, na palavra de alerta, nas procelas da vida, a luz do farol sobre os rochedos.
Mas só tardiamente descubro que há circunstâncias da vida que inviabilizam uma amizade, ainda que longa e profunda, sem que tenha havido ato torpe, sem que haja, de parte a parte, culpa ou dolo, intenção ou negligência, conduta imprópria ou imprudência – mas por um fato fortuito que impede a convivência, que tira o prazer da presença, que interdita até o pensamento afetuoso.
Imagine-se, por exemplo, uma íntima amizade de infância em que uma das partes encontre a fortuna financeira, penetrando em outro universo social e econômico, passando a viver uma realidade diferente. Ou uma grande amizade de juventude entre cunhados, sendo que de repente o casal que configura o cunhadio entre em conflito odioso e se divorcie ruidosamente.
Ou,
enfim, no caso em que o raio da paixão romântica, inescapável e irresistível,
superior e suprema como a de John Lennon por Yoko Ono, atinja um dos amigos de
inopino, cegando-lhe os olhos da alma para o dever de gratidão, demolindo o edifício da estima
mútua, crestando o arvoredo do afeto, salgando o chão antes fértil de lealdade e confiança.
Belo texto, Colega, Amigo e Presidente Reginaldo Vasconcelos, que Deus o ilumine e que possamos nos deleitar sempre com seus artigos e escritos de um português refinado e de inesgotável vocabulario.
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