quinta-feira, 9 de setembro de 2021

ARTIGO - O Impasse (RMR)

 O IMPASSE
Rui Martinho Rodrigues*

 

É tempo de impasse. Em todo o mundo eleições acabam em quase empate. As sociedades estão divididas. Não apenas as massas estão sem uma referência minimamente agregadora. O cosmopolitismo, a difusão e vulgarização da contracultura e até do niilismo impulsionado pela pós-modernidade, juntamente com a secularização confundida com banalização decorrente da perda de sacralidade, tudo isso evidenciou diferenças, feriu interesses, semeou paixões e discórdias. 

O segredo e a privacidade acabaram, destruídas pelas tecnologias de informação, com a omnipresença de câmaras e a invasão de computadores e demais registros eletrônicos cuja defesa é impossível, com exceção do sistema eleitoral brasileiro, indevassável, segundo o TSE. As imperfeições dos líderes e dos dirigentes das instituições tornaram-se públicas.

O que era semelhante a um rebanho, com alguma coesão, perdeu a unidade em razão do relativismo cognitivo e axiológico da pós-modernidade, da desmoralização dos que eram havidos como referência moral. Os pais perderam influência, entre outras coisas, em razão do combate ao patriarcalismo. Professores, clérigos, políticos, magistrados e intelectuais cometeram suicídio moral pelas próprias condutas depois que tudo passou a ser publicado. Doutrinas, líderes e instituições restaram abaladas. Todos agora são ovelhas desgarradas. 

 

A crise de lideranças e instituições 

As redes sociais quebraram o monopólio da (des)informação, antes exercido pela grande imprensa e pela intelligentsia, palavra que inicialmente designava a intelectualidade russa influente, engajada em movimentos vanguardistas de natureza política. Agora o termo é aplicado aos intelectuais engajados em todo o mundo. As paixões tendem a acompanhar o engajamento. 

A ideia de “ter lado” foi estimulada pela afirmação descontextualizada de que todos têm preferências, opiniões e juízo próprio, sendo impossível a neutralidade axiológica. Faltou distinguir juízo de valor de juízo de realidade, o que potencializou o facciosismo do engajamento político. A neutralidade impossível ou perniciosa é aquela de natureza valorativa, por isso adjetivada como axiológica. A aferição da realidade exige honestidade, não engajamento. 

Os integrantes da intelligentsia se sentem moral e intelectualmente superiores. São admirados. Cultivam a imagem de esclarecidos, corajosos e altruístas quando enfrentam os seus moinhos de vento. O esclarecimento pode ser tão equivocado quanto a visão do personagem central de Miguel de Cervantes Saavedra (1547 – 1616), na obra “Dom Quixote de La Mancha”. 

A coragem de enfrentar monstros abstratos, despersonalizados, ausentes ou de compreensão difícil, com nomes como “sistema”, “alienação” ou “obscurantismo” e outros mais, além de atrair admiradores alimenta a autoestima, tão valorizada em nossos dias. Antônio Houaiss, em seu dicionário, associa intelectual aos eruditos, sábios, que vivem predominantemente do saber. Mas um engenheiro nuclear e um físico teórico, inteligentes, com muito estudo, vivendo do saber, não são contados entre os intelectuais, mas como técnicos e cientistas.

Thomas Sowell (1930 – vivo), na obra “Os intelectuais e a sociedade”, identifica os intelectuais como aqueles que tratam de questões abstratas e se vinculam aos movimentos políticos, ao modo da intelligentsia. O engajamento demiúrgico destes herdeiros dos reis filósofos de Platão (428 – 348 aC), na luta pela reengenharia da sociedade do homem, levou Sowell, na obra citada, a adjetiva-los como “intelectuais ungidos”. Até filósofos, literatos ou juristas não necessariamente se incluem entre os intelectuais, se não forem ungidos. 

Antônio F. Gramsci (1891 – 1937), na obra “Os intelectuais e a organização da cultura”, descreve os intelectuais como organicamente vinculados às classes sociais. O uso da categoria teórica classe como determinante do fenômeno social em sua totalidade expressa um grave reducionismo. Mas o que estamos examinando é o perfil dos intelectuais ungidos no imaginário da sociedade. 

O pertencimento orgânico às classes é um entendimento que sugere engajamento, mais uma vez a semelhança com a intelligentsia se faz presente. Maximilian K. E. Weber (1864 – 1920), no ensaio “A ciência e a política como ofício e vocação”, e Karl Mannheim (1893 – 1947), em seus escritos sobre a sociologia do conhecimento, não seguiram o determinismo de classe na definição do perfil dos intelectuais. O intelectual de Mannheim é “desamarrado”. 

Pequenos burgueses como Karl H. Marx (1818 – 1883) e milionários como Max Horkheimer (1895 1973), da Escola de Frankfurt, e Friedrich Engels (1820 – 1895) foram grandes revolucionários, contrariando a tese do determinismo de classe esposada por eles mesmos. Mas a intelligentsia, embora em sua maioria não seja proletária, consegue ser adversária da burguesia, apesar de adotar hábitos burgueses; acredita que não é a consciência que faz a experiência, mas a experiência que faz a consciência, conforme palavras de Marx. Mas, curiosamente, fala em nome da experiência proletária que não têm. O povo começa a descobrir estas coisas, ainda que não tenha acesso a alguns destes detalhes. Aliás, nem todos os intelectuais conhecem todos estes detalhes. Refiro-me aos ungidos descritos por Sowell, que integra a intelligentsia. 

Revestidos com a couraça do altruísmo, defendendo os oprimidos, combatem o “sistema impiedoso” que nos últimos séculos diminuiu a mortalidade infantil, aumentou a esperança de vida, diminuiu o analfabetismo, aumentou os anos de escolaridade, o acesso aos bens que proporcionam conforto e assegurou proteção e direitos às minorias, os ungidos conseguem prestígio e exercem grande influência. Isso porque intelectuais (ungidos) habitam o mundo da abstração. Facilmente concebem um mundo melhor, sem apresentar soluções práticas, viáveis. 

A influência do racionalismo romântico, como o de Georg W. F. Hegel (1770 – 1831) contribuiu para isso. Até os seus críticos, que viraram o seu pensamento de pernas para o ar, mas não modificaram o titanismo incrustrado nele adotam o seu método. Também o racionalismo de Renê Descartes (1596 – 1650) está presente nas ideias dos que o criticam, agravado, porém, pelo abandono da dúvida metódica, que foi substituída pela certeza virtuosa do bem. Quem assim procede não se abala com o fracasso das experiências práticas. 

A falseabilidade exigida pela vigilância epistemológica do racionalismo crítico, de Karl R. Popper (1902 – 1994), poderia chamar à realidade os nefelibatas comparáveis ao personagem que pisava nos astros distraída, do poema musicado “Chão de Estrelas”, de Orestes Barbosa. 

A virtude dos ungidos propõe a distribuição dos bens que eles próprios não têm; com a sabedoria e a coragem de quem ataca moinhos de vento; e a consciência de quem defende dulcineias montando pangarés, quero dizer, teorias que Popper classifica como vanilóquios. Este não é o perfil dos eruditos em geral. Parte deles não é assim, não se caracteriza como intelectuais no sentido de membro da intelligentsia, não se sente ungido, aptos a exercer o papel de demiurgo; não necessariamente consome drogas ilícitas; nem se entrega a outras práticas contestadoras. 

 

A orfandade política 

A divisão da sociedade dificulta a governabilidade. Em Israel quatro eleições não resolveram o impasse da falta de maioria para formar um governo. Resultados eleitorais são contestados nas democracias mais sólidas. O Reino Unido não fez a “digestão” da saída da União Europeia, aprovada em consulta popular. A voz das urnas já não pacifica a política. Embora todos se digam democratas, muito não se conformam com os resultados eleitorais. 

O desfrute do bem-estar foi apresentado não mais como um direito potestativo, mas como um crédito dotado de exigibilidade contra terceiros. Norberto Bobbio (1909 – 2004), na obra “A era dos Direitos”, revela temor sobre a impossibilidade de atender ao volume de demandas em curso. Aristóteles, na obra “A política”, discorrendo sobre a decadência dos regimes políticos, afirma que a democracia, quando degradada, tende para a demagogia. Inflar direitos e esvaziar obrigações seria um sinal do ocaso daquilo que John Locke (1632 – 1704) nomeou como governo consentido, tendo amparo ainda nas garantias individuais da Carta de 1215, que os barões arrancaram do Rei João Sem Terra. 

O problema fiscal, na forma de dívida, decorrente do desequilíbrio fiscal, só chegaria a longo prazo, quando os economistas da metade do século XX estivessem mortos, vaticinou o Lord John M. Keynes (1883 – 1846). Acertou. Os contemporâneos dele estão mortos e os governos não sabem o que fazer com tanta dívida. Não param de injetar dinheiro na economia formando uma bolha que está causando pesadelos nos economistas e nos políticos. 

A desorganização do pensamento, com as lideranças caindo do pedestal pela superexposição que as novas tecnologias introduziram, somadas a vulgarização e banalização dos mores deixou as instituições desacreditadas e fragilizadas. Explicações simples, apontando vilões, propondo fórmulas salvadoras, ainda que invariavelmente tenham fracassado, tornou-se um caminho aberto. O problema é grave. Mas certamente se resolverá. Resta saber qual será a dor do parto histórico da solução. A literatura nos últimos tempos só produz distopias. Será isso um vaticínio?

 

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