quarta-feira, 19 de novembro de 2025

ARTIGO - Entre a Colonização e a Cosnciência (VCPJ)

ENTRE A COLONIZAÇÃO
E A CONSCIÊNCIA
Valdester Cavalcante Pinto Jr.*

 A consciência é uma âncora, não um farol. Ela é bastante para evitar o naufrágio da inteligência, não para lhe indigitar a rota.

JAIME LUCIANO BALMES Y URPIÁ. (Sacerdote, teólogo e filósofo catalão. Vic, 28.08.1810; 09.07.1848).

Conquanto os comentários agora procedidos sejam motos avessos à minha seara de estudo, permaneço consciente de que, segundo o brocardo popular, “... quem não pode com o pote não pega na rodilha”. 

Não é a mim vedado, entretanto, tornar publicamente manifesta a ideia de que uma língua proferida por contingentes tão numerosos e dispersos, perpassando países e contextos culturais heterogêneos, não é passível de permanecer imune às interferências dos idiomas que já eram vivos antes dos processos colonizatórios.

Toda codificação linguística nasce e se transforma no interior de uma universalidade compartilhada, de sorte a ser nesse locus revelada sua historicidade. Com efeito, compreender a fala é entender o universo no qual aparecemos uns aos outros, e, ainda, perceber o povo que a produz e a sustenta. Isso implica reconhecer que todo código lingual é, na própria estrutura, dialógico  um espaço plural onde múltiplas vozes sociais se confrontam, respondem-se, resistem e se recriam incessantemente. 

Refletir sobre uma conformação linguística é, portanto, realizar um exercício de autonomia. Configura o gesto pelo qual a pessoa procura se libertar das heteronomias impostas, assumindo a responsabilidade de nomear sua mundividência com amparo nas próprias condições históricas. Para tanto, impende compreender o idioma que hoje praticamos, reclama reencontrar sua matriz ancestral e identificar as forças sociais, políticas e violentas que moldaram seu formato corrente. Certas expressões linguageiras vigentes estampam, em larga medida, produtos da violência colonizadora — uma vis imprópria e indecorosa — que alcançou corpos, territórios e culturas, atingindo, torpemente, a própria palavra. 

Apesar desse passado truculento, as línguas que aqui se enraizaram — sobretudo as indígenas — e aquelas trazidas à força pelos nossos nacionais com o subjugo de africanos deixaram marcas indeléveis no vocabulário e em nosso modo de ser. Esses intensivos vestígios não significam somente resquícios, pois expressões vivas de resistência cultural, constitutivos do núcleo mais profundo da formação do “povo novo” brasileiro, resultado da confluência e do conflito entre matrizes civilizatórias distintas. Revelam, ainda, a permanência de uma pluralidade linguística que enriquece a significação e impede a redução da língua a uma perspectiva dominante.

Nesse sentido, as variantes populares do português brasileiro — muitas vezes classificadas como “erros” pela ideologia normativa — são, na verdade, testemunhos da diversidade linguística e da história plural que nos constituem. Desqualificá-las é participar de um decurso de opressão e apagamento simbólico. Remansa em violar a dignidade dos seres como falantes e pensadores, reduzindo-os de fins a meros meios de adequação a um padrão arbitrário. Nada disso deve ser tomado como sinal de desordem. Ao contrário: constitui a vitalidade persistente de um país que se fez plural desde seus primórdios. As expressões vernaculares, frequentemente invisibilizadas, guardam a memória viva de nossa formação mestiça e afirmam a capacidade humana de resistir à heteronomia para recuperar a própria voz.rrostamos hoje, todavia, uma nova modalidade de colonização, marcada pela expansão global da língua anglo-saxã e de seus signos culturais, que se exprimem sob o disfarce da neutralidade. Neologismos e modismos em pobre inglês chegam até nós com tal espontaneidade aparente que, quando percebemos, já os incorporamos ao cotidiano, sem reflexão; e sob diáfana desnecessidade — seja expresso. Por isso, torna-se necessária uma vigilância crítica: distinguir entre o diálogo autêntico entre culturas e a dominação simbólica mascarada de naturalidade. A adoção irrefletida dessas expressões acrescenta mais um capítulo à dilatada história de tentames para moldar o Brasil segundo interesses externos.

Reconhecer essa dinâmica é aceitar que todo o vozerio hegemônico peleje para se mostrar como “a” voz universal, apagando as demais e ameaçando a polifonia que caracteriza a vida linguística. Embaixo dessa pressão internacional, observa-se, também, o recrudescimento do desprezo pelos formatos populares do português, como se sua legitimidade dependesse da proximidade com padrões alheios. Sobra, então, exprimida uma colonização interna que reforça desigualdades sociais e simbólicas. Essa universalização — ilegítima justamente porque não nasce de um consenso racional nem respeita a autonomia dos sujeitos — funda-se no poder econômico e cultural, e viola o princípio de que cada pessoa deve ser tratada como fim em si mesma. Nenhuma norma está habilitada a aspirar à universalidade se não respeitar a dignidade de todos os falantes. 

Em mencionadas circunstâncias, faz-se urgente interrogar as palavras que chegam até nós, examinar as intenções que as acompanham, reconhecer a multiplicidade de vozes que nos compõem e desmascarar os preconceitos que hierarquizam falas e reduzem a complexidade de nossa experiência linguística. Precisamos infirmar a dignidade das línguas e variedades que, à extensão temporal, tentaram silenciar — mas não conseguiram, porquanto a emancipação começa quando devolvemos à própria voz a capacidade de estabelecer diálogo com o mundo, sem a ideação de eco, porém como sujeito: nomeando-o com autenticidade, criticidade, historicidade e plena consciência das inúmeras vozes que povoam nossos multíplices jeitos de falar.

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