terça-feira, 10 de outubro de 2023

CRÔNICA - O Mundo Caboclo (RV)

 O MUNDO CABOCLO
Reginaldo Vasconcelos* 

 

O mundo do sertanejo é um mundo de estaca e varame, barro e couro cru. Mundo do feijão com farinha, do jerimum com leite, da coalhada com rapadura, do pão de milho, da batata doce, da macaxeira.  Fogo a lenha, comida no alguidar, no prato de ágata. Garfo nunca, colher muitas vezes, velhas peças de talher barato, geralmente desgastadas pela metade, de tanto raspar no fundo do tacho e do pilão. De outras vezes comem “de capitão”, as crianças principalmente – o bolinho de comida apertado na palma da mão, sob os dedos fechados. 

Leite na cuia, água no pote, na quartinha, na cabaça. A carne maciça é charqueada, o resto vira cozido com pirão. Não há ali a tradição do churrasco, embora a carne seca, de bode ou de carneiro, em algumas regiões, seja assada na brasa, em ocasiões especiais. 

O sangue e as vísceras dos médios e dos grandes animais tornam-se apreciados acepipes – a buchada, a panelada, o sarrabulho, o sarapatel, a farofa de tripas, muito apropriados ao acompanhamento da cachaça, que imaginam neutralizar gorduras e facilitar a digestão. 

As aves e os porcos criados no terreiro viram guisados, em datas e situações especiais de festa ou de doença. No tempo das águas e nos quadrantes mais amenos, tem-se o queijo, o milho verde, o mel de cana. De vez em quando a carne silvestre aparece na mesa – o veado, o tatu, o preá, o teiú, a avoante. 

Há entre esses caboclos um secreto culto ao gume cortante. O machado que decepa a madeira para as cercas e as forquilhas das casas; a foice que desmata a roça; a quicé que molda a sola; a faca sempre afiadíssima que não lhes sai do cós das calças.  Talvez seja um atavismo, de quando o europeu lhes trouxe o ferro, maravilha para quem afiava lascas de pedra por milênios. 

Ah! A faca peixeira... Com ela o caboclo limpa as unhas, tira espinhos, abre a fruta, sarja a pústula, pica o fumo, sangra os bichos, ripa as varas, tira o couro, trata o bucho, singra a carne de boi com a leveza de um barco a vela que navega. Ele não vive sem ela. E é por ela que morre tantas vezes nas rusgas de compadres, nas rixas de vizinhos, nas emboscadas pela honra, nas cachaçadas.  

A pátria do caboclo não é racial ou geográfica, mas centrada em seu orgulho pessoal, na sua hombridade, sempre fundada no respeito pela mãe e na virgindade das filhas, muitas vezes atrelada aos ídolos católicos, não raro depositada na lealdade visceral ao próprio pai ou a um patrão, padrinho ou líder político, por quem se dispõe a matar ou morrer. 

Exercita a galhardia e o galanteio exaltando os brios másculos, centrados na valentia pessoal, que ele glosa nos desafios de viola, no repentismo, nas emboladas, e na vaqueirice ágil e intrépida, afirmada nos aboios e na literatura de cordel. Não cultiva outras paixões e não defende outras bandeiras. Foge-lhe um pouco o sentido do dever, já que tudo faz de rijo, mas por pura devoção, característica própria do silvícola de que descende.

Do livro O Passado Não Passa – Reginaldo Vasconcelos – 2005. 

Nota: O ambiente nordestino descrito na crônica existiu por séculos, desde o início da colonização até o final do Século XX. Com a evolução da sociedade e da tecnologia ele se descaracterizou.

 

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