sábado, 26 de novembro de 2022

ARTIGO - A Interdição dos Cidadãos (RMR)

 A INTERDIÇÃO 
DOS CIDADÃOS
Rui Martinho Rodrigues*

 

A pós-modernidade abalou conceitos que haviam adquirido clareza. Teorias articulavam, segundo a lógica aristotélica, conceitos bem delimitados. A sociedade líquida (Zygmunt Bauman, 1926 – 2017, em obras como Modernidade Líquida, Amor Líquido e Tempos Líquidos), porém, abandonou o rigor epistemológico. 

Cidadania e a capacidade civil sofrem erosão semântica e consequentemente política e jurídica, típica do descompromisso e da instabilidade ressaltadas pelo autor citado. A presunção de capacidade para os atos da vida civil é um requisito indispensável à cidadania. Incapazes não estão aptos a escolher entre programas de governo ou concepções políticas, tampouco têm capacidade para o exercício de funções públicas. 

Interdição, “...exprime (...) toda proibição relativa à prática ou execução de certos atos, ou a privação de certas faculdades (...) torna defeso a prática de um ato ou o exercício de um direito. (...) em face de fatos que a lei considera como geradores de uma capitis deminutio, tais como demência, e a prodigalidade. (...). Decorre de uma condenação penal, por crime infamante ou (...) como pena acessória (De Plácido e Silva, Vocabulário Jurídico). 

A interdição por incapacidade exige cuidados de alguém. A lei determina que alguém preste apoio ao incapaz (um curador). A interdição penal tem a proteção do Ministério Público, comparável a um curador na interdição civil. 

A proteção dos cidadãos tem sido centro de preocupações políticas. O uso de capacete pelos motociclistas e o cinto de segurança pelos passageiros de veículos é uma medida de proteção efetiva, conforme dados estatísticos incontestáveis. Tais equipamentos de proteção individual devem ser usados. Eles protegem unicamente o usuário. Deixar de usá-los não afeta diretamente o interesse de terceiros. O uso compulsório de tais equipamentos significa que a liberdade de alguém, que deveria ser limitada apenas pelos direitos de outrem, está sendo abalada sem que terceiros sejam prejudicados. 

O casamento após os sessenta anos só pode ser sob o regime de separação total de bens. Proibir motoristas e motociclistas de andar sem cinto de segurança ou sem capacete e maiores de sessenta anos de casar em comunhão de bens são formas de interdição. Têm o significado de declarar a incapacidade das pessoas. Ao fiscalizar tais condutas o Estado assume o papel de curador e reduz o cidadão à condição de curatelado ou condenado penalmente. 

O Direito Penal como ultima ratio é uma concepção minimalista que está sendo abandonada. Um limite imposto pelo minimalismo penal é a não criminalização de situações que configurem perigo abstrato. Está sendo contestado, a exemplo da restrição do direito de acesso a um meio de defesa. Perigo abstrato é aquele que só se configura quando se imagina alguma hipótese adicional. Automóvel é perigo abstrato se agregarmos a hipótese do motorista embriagado. Bicicletas, piscinas, remédios e quase tudo pode ser um perigo abstrato. Criminalizar tal forma de perigo tornaria quase tudo crime. 

Cidadania exige capacidade. Incapaz não vota (capacidade eleitoral ativa), nem pode ser votado (capacidade eleitoral passiva), nem pode exercer função pública. Não há democracia sem o reconhecimento da capacidade dos cidadãos. Tal reconhecimento não pode conviver com a institucionalização de restrições. Quem é capaz de decidir se deve usar capacete quando anda de motocicleta, cinto de segurança quando anda em carro, o regime de bens do casamento, possuir um meio de defesa, reagir ou não ao ataque de um ladrão, tal pessoa não tem aptidão para a cidadania, do contrário não deveria ser proibido ou obrigado em relação a essas e outras coisas. Decisões políticas são muito mais complexas. Invertendo o brocardo forense segundo o qual quem pode o mais, pode o menos (a maiori, ad minus), podemos afirmar que quem não pode o menos, não pode o mais. 

O Estado curador, somado aos ex-cidadãos curatelados (reconhecidos como incapazes) é uma forte tendência atual. Mas assinala um caminho da servidão distinto daquele que foi objeto da advertência de Friedrich August von Hayek (1899 – 1992) na obra O caminho da servidão.

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