METAMORFOSES
DA
CONSCIÊNCIA
Rui Martinho Rodrigues*
As consciências, tanto individuais como coletivas, passam por transformações significativas. A política e o Direito têm se mostrado extremamente vulneráveis a tais mudanças. A complexidade crescente da vida em sociedade deixou fora do alcance do homem comum – e até de especialistas – coisas como matriz energética, reforma tributária, política monetária, sanitária, criminal e muitas outras áreas da administração pública e do conhecimento humano. Mas a má política foi primeiro a arte de impedir as pessoas de se intrometerem no que lhes concerne. Em época posterior, acrescentaram-lhe a arte de forçar as pessoas a decidir sobre o que não entendem (Paul Valéry, 1871 – 1945).
O voto continua sendo uma permissão indispensável à legitimidade dos governos, como queria John Locke (1632 – 1704). Trata-se de um consentimento baseado mais na confiança ou na paixão do que no conhecimento concernente ao conteúdo da outorga dada pelo eleitor. O núcleo do ordenamento jurídico e político havido como democracia passou a ser um conjunto de garantias individuais, nos termos das declarações de direitos do século XVIII. A modernidade proclamou a liberdade de todos os homens, oferecendo diversas garantias individuais.
As citadas garantias individuais são a expressão da desconfiança democrática que incide sobre as autoridades. A limitação dos mandatos eletivos no tempo, o princípio da publicidade dos atos administrativos e judiciais, do duplo grau de jurisdição e o sistema de freios e contrapesos são exemplo da desconfiança aludida. Desconfiar das autoridades é um dever de cidadania e não se confunde com ataque às instituições democráticas, sendo antes uma forma de protege-las.
A reserva legal, que impede a criminalização de condutas sem lei anterior que a defina e pena sem prévia cominação legal (CF/88, art. 5º, inc. XXXIX) é outra das garantias aludidas. Não é possível criar tipos penais por analogia ou por outro meio que não seja a lei. O princípio do juiz natural (CF/88, art. 5º, inc. LIII) é destinado a garantir o cumprimento das normas de competência e a imparcialidade do órgão julgador. Juiz competente deve ser o da instância competente, cabendo aos tribunais o julgamento dos réus que tenham foro especial por prerrogativa de função e o juiz de primeiro grau deverá julgar réus sem tal prerrogativa.
A imparcialidade do magistrado é protegida ainda nas hipóteses de suspeição (art. 145 do CPC) e de impedimento (art. 252 do CPC). Um magistrado emocionalmente envolvido, que chora em face das agruras impostas pelo processo a uma das partes não tem isenção para julgar. A distribuição aleatória dos processos visa impedir que seja escolha do juiz. Assim se evitam as motivações de interesses pessoal. E mais uma garantia de imparcialidade do órgão julgador. O mesmo sentido tem a inércia da magistratura, que só pode agir quando provocada.
A persecução penal foi afastada da função judicante, ficando como prerrogativa do Ministério Público (CPP, art. 28 – A) para que o acúmulo de atribuições não transforme a magistratura em um poder absoluto. Um juiz ou tribunal que assuma a iniciativa da persecução penal, mormente quando contrariando parecer do MP está infringindo a normatividade processual.
A transição da modernidade para a sociedade líquida (Zygmunt Bauman, 1925 – 2017) ou pós-modernidade, fragilizou a ideia de universalidades. Os direitos individuais comuns a todos os homens foram ultrapassados pela prioridade dada aos grupos identitários típicos da fragmentação pós-moderna. Embora a crítica ao caráter abstrato dos direitos individuais universais tenha se fortalecido, conceitos indeterminados e igualmente abstratos, como justiça, ainda que adjetivada como social, também foram fortalecidos.
A contradição ínsita na dialética de Georg W. F. Hegel (1770 – 1831), apropriada pelos progressistas, viabilizou a permissividade epistemológica desempenhando o papel de senhora de costumes cognoscitivos fáceis, nas palavras de Lucio Colletti (1924 – 2001).
Assim, podemos dizer que a censura não é admitida em hipótese alguma, mas pode ser adotada excepcional e temporariamente como inexistente, mas juridicamente válida, síntese perfeita da logomaquia denunciada por Karl R. Popper (1902 – 1994) no discurso da síntese dos contrários. Condenar abstração para legitimar a justiça concebida pelo órgão julgador, sem representatividade política, social e cultural, alegando a singularidade do caso concreto tropeça na inexistência de fenômeno social inédito, parecendo mais um vanilóquio.
A metamorfose dos significados confere grande liberdade à subjetividade do órgão julgador. As constituições analíticas, dirigentes e totais, protegidas ainda pela positivação de princípios de larga abrangência limitada apenas pelo entendimento pessoal da autoridade e pela obrigação de fundamentar o entendimento expresso na decisão, levou ao ativismo judicial, diverso do decisionismo político amparado na representação popular.
O controle concentrado de constitucionalidade e a Nova Hermenêutica constitucional ampliaram o poder dos tribunais constitucionais, ainda que não exerçam apenas esta função. O advento da inconstitucionalidade por omissão ensejou a oportunidade dos tribunais mencionados se transformarem em casa legislativa, valendo-se da prerrogativa de errar por último, como órgão supletivo do Poder Legislativo. O acumulo da função de tribunal constitucional com a função de tribunal penal pode colocar o Legislativo sob controle do tribunal aludido. A concentração de poder é vista pela óptica da desconfiança democrática, não quanto a máquinas, mas no tocante aos seus operadores. Lord John Dalberg-Acton (1834 – 1902) advertiu-nos dizendo que o poder corrompe e o poder absoluto corrompe de modo absoluto.
A democracia tem instrumentos de autodefesa.
Mas quando é atacada desde dentro das suas instituições, quando os titulares
dos órgãos exercem o poder ultrapassando os limites da competência
constitucional que lhes foi dada, não temos previsão de procedimento
democrático. Desde Tomás de Aquino (1225 – 1274), passando John Locke (1632 –
1704) pensadores de escol têm defendido o direito de resistência ou rebelião,
quando os governantes ultrapassem os limites da outorga que lhes foi dada para
governar e não reste aos governados outro meio de defesa em face da
arbitrariedade e do abuso de poder.
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