quinta-feira, 17 de março de 2022

ARTIGO - Os Russos e a Teoria de Hertland (LA)

 OS RUSSOS E A
TEORIA DE HEARTLAND
Luciara Aragão*
 

 

Em suas origens, como quer o geógrafo e especialista em geoestratégia e geopolítica, Sir Halford John Mackinder (1861-1947), os russos viviam agrupados e protegidos nas florestas, e para garantir a sua própria segurança iniciaram conquistas, desde a Alta Idade Média aos primórdios da guerra moderna. Nas florestas, com seus inimigos emboscados nas estepes, envolveram-se com o animismo e a religião. 

A longa e persistente presença de mongóis com suas hordas douradas na Moscóvia medieva, e as hordas azuis nas Ásia Central, negou aos russos a experiência renascentista, mas conferiu aos ortodoxos eslavos uma vigorosa reação, que os tornou capazes de resistir ao jugo mongol e ao aumento do território. Noutras palavras, a aceitação da totalidade religiosa e comunista russa remonta a esta época de desamparo nas matas e junto às estepes, incentivando conquistas, “habituando-os a privações e afligindo-os com um medo paranoico de invasões”. “(March. G Patrick. Eastern Destiny: Russia e Asia and the North Pacific Praeger ed., 1996 p.18)”.

Mackinder formulou (1904), uma teoria que apontava para o jogo político de controlar territórios aumentando o poder econômico e o apoio militar. Chamou essa teoria de Heartland (coração da terra). O domínio dos mares era então essencial ao domínio britânico, e por julgar esta posição ameaçada, aprofundou-se na teoria criando uma zona, abrangendo as áreas agrícolas russas até a Ásia Central e chegando às planícies da Sibéria, rico território com recursos como carbono e minerais. Essa área interligada por ferrovias seria uma chave de poder

Na conferência de Versailles, pós Primeira Grande Guerra, a promessa era redesenhar as fronteiras sob a égide democrática e a extinção das guerras. A realidade geográfica poderia ceder espaço para que a Rússia ou a Alemanha transformassem a região em base militar, levando ao domínio da África e da Eurásia. Na prática, Europa e Rússia deveriam, pois manterem-se divididas, reconhecendo-se que o domínio do leste da Europa leva ao domínio de Heartland, e daí ao governo do mundo inteiro (Mackinder, Ideais Democráticos e a Realidade – Cósimo Classics reedição de 2020). Historicamente, o primeiro grande império da Rússia e mesmo do corpo político do leste da Europa foi o principado de Kiev (fins do Século XIX), o que permitiu um contato regular com o Império Bizantino ao sul, facilitando a conversão dos russos ao cristianismo ortodoxo. 

Em termos demográficos, Kiev foi um mix de eslavos orientais nativos e de vikings escandinavos vindos pelos rios que desaguavam ao norte. Os solos pobres impuseram a conquista de terras mais amplas para assegurar os víveres, delineando um império que reuniu vikings e bizantinos – “a Rússia como um conceito geográfico cultural nasceu daí” (Kaplan, A Vingança da Geografia-RJ, Elsevier, 2013). 

A invasão dos mongóis destruiu a primeira tentativa significante de expansão imperial na Eurásia. Aos poucos, deslocou-se para o Norte, na direção de cidades como Smolensk, Novgorod, Vladmir e Moscou, daí despontando mais forte em fins da Idade Média. Caracterizada no período Medieval como autocrata e até paranoica, “haja vista a pressão mongol” a proeminência de Moscou firmou-se na sua vantajosa posição comercial na rota de embarcações entre os rios da bacia do Médio e Alto Volga. 

Para Mackinder, a geografia é uma ponte entre as ciências naturais e as humanas, que plasma o povo russo e estuda os efeitos do “Earth’s Geography” na política das relações internacionais. Em “The Geographical Pivot of History”, submetida ao Royal Geographical Society, Londres, apresenta a sua teoria, Hearthlander, a qual, a partir da realidade geográfica, engloba o interior da Ásia e o oeste da Europa, tornando a região um centro estratégico do mundo. 

A Primeira Grande Guerra, com a sua organização de fronteiras (que influencia a geopolítica até hoje), pedia precauções. Para levar avante os ideais de democracia e a extinção das guerras, recomendava o fechamento de portas, evitando que Rússia e Alemanha dominassem o Hearthlander, criando uma base militar gigante. Seria como fechar um mar de forças, pois quem domina o Hertlander também dominará a “ilha do mundo”.

Com os nazistas, o Heartland de Mackinder foi estudado pelo geógrafo Carl Haushofer, transformando-a numa estratégia, com o principal objetivo de atingir o império britânico. Sua teoria interessou a Ruldolf Hess, membro do partido nazista. Na tentativa de tomada do poder (1923), Hess e Hitler foram presos e Haushofer foi visitá-los, oferecendo aulas sobre o assunto. 

O sonho era unir a Alemanha, depois da guerra, ao Japão e à Rússia, anulando o poder naval britânico. Ele celebrou o pacto de não agressão, firmado entre Alemanha e Rússia, e suas ideias, extraídas de Mackinder, foram usadas também pelos americanos. A Foreign Affair lhe consultou sobre os rumos da Segunda Grande Guerra e ele afirmou que se a União Soviética saísse como vencedora da Alemanha chegaria a ser a grande província terrestre do mundo. O colapso nazista não invalidou a teoria de Mackinder e pressagiou o enfrentamento Leste-Oeste da Guerra Fria. Com a absorção de países do leste europeu a União Soviética passou ao domínio. Com o poder soviético em expansão, o diplomata e historiador George Kennan sugeriu a contenção da expansão do domínio soviético, a partir do mercado simbólico descentrado e multipolar. 

Com o falecimento de Mackinder (6 de março de 1947), Truman, falando ao Congresso, pediu a contenção da URSS e o apoio dos países que poderiam ser incorporados na sua expansão. Várias bases militares foram construídas em volta dos blocos dominados, política vista como “imperialista” e reeditada em nossos dias, sob os auspícios da União Europeia e dos Estados Unidos, com a tática de adesão ao bloco europeu e instalação de bases em torno do território russo. 

Com a desintegração do bloco soviético (1991) a teoria de Mackinder, com Aleksandr Dugin, professor e geopolítico russo, fundador do Partido da Eurásia, apresenta o seu país como “prisioneiro da ânsia do poder ocidental” (Dugin, Fundamentos da Geopolítica, 1ªed. 1997, utilizado na Academia do Estado Maior das F.A. russas), e considera a geopolítica em dois polos distintos: o poder naval ocidental e o poder terrestre que é o da Rússia, numa disputa pelo Heartland. Seus estudos, enquanto líder do Centro de Estudos Conservadores na Universidade Estatal de Moscou, sugerem o incorporar das antigas Repúblicas Soviéticas. 

Com o intuito de fortalecer a região, o presidente Putin propôs a União Econômica da Eurásia (2011) e assinou com o Cazaquistão e a Bielorrússia (Acordo de Astana – Capital do Cazaquistão – 2014) a União Econômica Euroasiática, permitindo maior integração entre esses países ligados por uma união aduaneira, desde 2010, com o propósito de fortalecer o desenvolvimento econômico de mercado regional. A Ucrânia não desejou participar e com Poronsheco a Ucrânia negociava a entrada na União Europeia. A pressão russa fez o presidente ucraniano Victor Yanukovich recuar, reprimindo as manifestações pró-europeias, e não as pró-russas, as quais foram apoiados pela Rússia, que na oportunidade anexou a Crimeia, de grande importância estratégica. A Crimeia fora cedida à Ucrânia (1954) por Krhrushchev, para reforçar a unidade entre ela e a Rússia e celebrar a grande e indissolúvel amizade entre os dois povos.

 

Putin concebe a dimensão europeia da geografia russa e a Ucrânia como podendo ser parte do todo de um projeto maior, estabelecendo uma esfera de influência a ancorar na Europa. Brezezinski, conselheiro no período Carter, considera que sem a Ucrânia a Rússia será um império predominantemente asiático (Global Domination or Global Leadership, 2004) e incorporando uma população de cerca de 44 milhões voltada para a Europa. 

As consequências do domínio soviético geraram a demanda de incorporação doa países a União Europeia, receando-se uma futura opressão russa e, por sua vez, levando a Rússia a preocupações com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e o excessivo poder ocidental. O governo russo mantém estrita vigilância nas fronteiras e observa os desdobramentos do avanço indireto do Ocidente na Ucrânia, bem como as evidências da instalação de atividades biológicas suspeitas por cidadãos não ucranianos. Era previsível que o atrito acontecesse, a qualquer momento. 

Ao longo da História, o Império Russo fragmentou-se e ruiu várias vezes, mas de modo diverso a outros impérios com ascensão, expansão e queda definidos no tempo e espaço, reergueu-se inúmeras vezes. Seria um erro crasso, o desprezo à maior potência terrestre do mundo (quase 50% da circunferência da terra), ressurgindo em nossa época e com uma intensa e longa contribuição civilizatória.

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