MEMÓRIA
Reginaldo Vasconcelos*
Tomei ciência recentemente de que existe em Fortaleza um maestro chamado
Tarcísio José de Lima. Indaguei-me se seria o mesmo “Tarcísio Pintado” que
assim assinava com Ricardo Guilherme a coautoria de uma série de canções, cuja "fita demo" produzimos e levamos ao célebre Frei Memória.
Frei Kerginaldo Memória, muito gordo e bonachão, sempre de batina marrom, era jurado do Programa Flávio
Cavalcante na televisão, e a nossa meta era tentar fazer a fita chegar ao famoso maestro paulista Érlon Chaves, colega do frade no júri
de TV.
Intrigado, curioso, há alguns dias consultei por e-mail ao Ricardo, meu confrade na ACLJ. Sim, respondeu-me ele, o grande maestro cearense de hoje é aquele jovem violonista do passado.
Intrigado, curioso, há alguns dias consultei por e-mail ao Ricardo, meu confrade na ACLJ. Sim, respondeu-me ele, o grande maestro cearense de hoje é aquele jovem violonista do passado.
Corriam os anos 70. O jovem Ricardo Guilherme me apareceu com poemas dele próprio, lindamente musicados por esse Tarcísio, que como ostentava
muitas sardas no rosto o seu parceiro musical resolveu chamar “Pintado” – e ele aceitara o apelido na
composição do nome artístico. Gravamos as músicas no meu gravador cassete e as
levamos ao bom frade.
Fomos encontrar o Frei Memória em uma
quermesse, certa noite, na igreja do Mucuripe, e fomos com ele de táxi até a casa
paroquial do Pirambu, bairro praiano paupérrimo de Fortaleza em que o religioso
morava e em que cuidava de bem encaminhar a juventude, viajando ao Rio toda semana para gravar o programa na Tupi.
Refestelado no banco da frente do táxi, o gordo Frei
Memória ia gritando, para quem fosse pelas calçadas, a plenos pulmões, “como a
vida é boa!”, enquanto percutia com a mão na lataria da porta (naquele tempo os
carros não tinham ar condicionado, circulavam sempre de janelas abertas, e os passageiros com um dos braços para
fora).
O Frei fez parar o táxi em frente a uma bodega do seu bairro, onde pediu cervejas e enlatados, e em seguida gritou para o bodegueiro,
entre risadas, enquanto o carro partia: “Que Deus lhe pague, porque eu não
tenho um tostão!”.
Uma vez na casa dele, em torno de uma grande mesa, ele mandou chamar alguns
integrantes da banda de música juvenil que organizara, aos quais nos apresentou dessa
forma desabrida: “Aquele é músico, esse é poeta, e este aqui é picareta”. O
“picareta” era eu, obviamente, que nada tinha a ver com a obra musical que estava
tentando promover.
Essa história tem um epílogo dramático. Dizia o Frade
que entregou a fita ao maestro Érlon Chaves, da Banda Veneno, grande sucesso da
época, para que este estudasse a possibilidade de incluir algumas daquelas
músicas em seu repertório, mas o músico faleceria, logo em seguida (novembro de 1974), talvez antes
de a poder apreciar.
Frei Memória depois disso ficaria meu amigo, até a sua morte, décadas depois. Ele era filho de rica família cearense, formou-se em Direito no Rio, chegou a advogar por lá, mas depois resolveu fazer voto de pobreza e entrar para o convento. De uma prestigiosa função episcopal em bairro de luxo carioca pediu para vir servir no Pirambu, que se dizia ser o lugar mais miserável do Brasil.
Frei Memória depois disso ficaria meu amigo, até a sua morte, décadas depois. Ele era filho de rica família cearense, formou-se em Direito no Rio, chegou a advogar por lá, mas depois resolveu fazer voto de pobreza e entrar para o convento. De uma prestigiosa função episcopal em bairro de luxo carioca pediu para vir servir no Pirambu, que se dizia ser o lugar mais miserável do Brasil.
Chegou a ir conosco à nossa fazenda certa vez, a
nosso pedido, fazer o casamento coletivo dos caboclos. Grande honra para os
sertanejos receber o sacramento do frade famoso, que o “vídeo tape” já lançava
do Rio de Janeiro para todo o Brasil o programa de televisão de maior audiência
semanal, do qual ele era uma atração.
Nesse evento campal sertanejo aconteceram dois patuscos episódios. Primeiramente, na hora da comunhão, uma súbita ventania retirou as hóstias do grande cálice que o frade segurava e as espalhou pelo terreiro da fazenda.
As hóstias foram perseguidas e apanhadas por um
mutirão de convidados matutos, numa algazarra de adultos e meninos, que as devolveram ao receptáculo original, naquele tempo
em que depois de consagradas elas somente poderiam ser tocadas pelo padre
celebrante.
Ao final, um dos noivos, na hora de dizer o “sim” ao
casamento, saiu-se com a gíria enfática e eufórica: “Só se for agora!”.
*Reginaldo Vasconcelos
Advogado e Jornalista
Titular da Cadeira de nº 20 da ACLJ
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