O MOLEIRO DE SAN-SOUCI
A sabedoria proverbial traduz a realidade do poder: “Se queres conhecer o
vilão, mete-lhe a vara na mão”. Talvez, Montesquieu conhecesse esse adágio
português; daí vem a advertência do autor de “Do Espírito das Leis”, nesta
conhecida passagem:
“A experiência eterna mostra que todo homem que detém o
poder é levado a dele abusar; vai até onde encontra limites. Quem o diria? A
própria virtude precisa de limites. Para que não se abuse do poder, é
necessário que pela disposição das coisas o poder limite o poder”.
Onde impera a hipocrisia e o cinismo, o exercício da ilicitude é visível e
não perplexa. Contudo, afeta o bem-estar dos cidadãos ante a perversão da ética
no poder e da ordem jurídica. Estaremos predestinados a aceitar que o vírus da
corrupção é genético?
Ousa-se discordar, o povo ordeiro está nas ruas e adentra, sem temor, os
corredores fétidos do poder. Parece cansado da demagogia e do fato de que não
há solução mágica para extirpar a bandalheira difusa, por isso não mais se
conforma em ser um país de sem-vergonha.
Por isso, em um Estado incapaz de manter atitudes de respeito, é ilusão
falar em cidadania - credulidade tem limites. Há pouco, a mídia tornou
conhecida a tentativa de o Supremo Tribunal Federal justificar gastos com
passagens para as esposas de ministros, a fim de os acompanharem em viagens,
fazendo-o com base em ato administrativo por falta de legislação pertinente.
Como uma resolução legitima o ilegitimável? Como autoriza o inautorizável?
Ao erro estão sujeitos até mesmo os mais prudentes, mas há benesses
inaceitáveis. Em especial, quando advindas do STF, do qual se espera o melhor
exemplo, a plenitude do exercício da ordem jurídica.
A cidadania se aperfeiçoa por meio da justiça e de bons exemplos. O
comportamento de cada cidadão influi na vida de uma sociedade. Não se legitimam
atos imorais. O uso de aviões da FAB, v.g.,
não pode ter a missão desvirtuada como se fossem verdadeiros bens particulares.
Será que os oportunistas não sabem a diferença entre servir ao público e dele
tirar proveito?
Até quando conviveremos com sinecuras, mordomias e inumeráveis estripulias
prodigalizadas de benefícios e liberalidades? Normas jurídicas existem para combater
ilicitudes. Difícil não é exigir as normas, mas o seu cumprimento por parte
daqueles que, pela disciplina dos poderes, deveriam ser paradigmas.
Contudo, a consciência republicana parece despertar. A partir daí, poderá
então se acreditar no episódio de “O Moleiro de Sans-Souci”, conto de François
Andrieux: o Rei Frederico II açodava esse moleiro com o objetivo de
desapropriar-lhe o moinho de vento, pois desfigurava a paisagem de seu castelo.
O humilde moleiro resistiu às ameaças do déspota esclarecido mansamente,
dizendo-lhe: “Ainda há juízes em Berlim”. O rei recuou e a história
permanecesse simbolizando a grandeza e a força da Justiça. Pelo que se vê, a
saída caminha e ecoa por nossas ruas, avenidas e praças.
Por Paulo Maria de
Aragão
Advogado e Professor
Membro do Conselho
Estadual da
OAB-CE
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