quarta-feira, 24 de maio de 2023

CRÔNICA - Seis Ponto Oito (RV)

 SEIS PONTO OITO
Reginaldo Vasconcelos*

 

“Seis ponto oito” – dizem os sexa-oitagenários, ao chegarem eles ao ponto da colina em que já vislumbram o número dramático dos setent’anos. Querem suavizar o cardinal que lhes indica a idade, fugindo da realidade com um eufemismo que remete à potência de um motor de automóvel, ou ao calibre de uma arma de fogo, demonstrando o pavor dos “peterpanianos”, que prefeririam a eterna juventude. 

Chega-se de repente a essa marca – sessenta e oito anos – que representa a aproximação do status dos macróbios, remetendo-nos ao trono avoengo. Tornamo-nos antigos. Os mais sábios consideram isso uma vantagem gloriosa sobre os jovens, que ainda conservam a graça das flores, mas também os taninos dos pomos imaturos e a perspectiva terrível de eventualmente não chegarem a envelhecer. 


A SENDA 

 

Um dia desses olhamo-nos de repente eu e uma pessoa do público que, sem dúvida nenhuma, nos reconhecemos. Não nos cumprimentamos porque, certamente, como eu, ele não recordou de onde nós nos conhecíamos. 

Teria sido de um dos três colégios do passado, das operações do Exército, da faculdade de Direito? Difícil, porque não tinha ele o ar superior de um juiz, nem o jeito teimoso que os advogados adquirem. Pode ter sido das artes marciais, o judô, a capoeira? Talvez do Palácio do Governo, dos meus tempos de assessor. Ou da campanha política desse tempo. Sei lá! 

Poderia ter sido também do meu tempo de bancário, ou da Sociedade de Criadores de Pastores Alemães, de que fui diretor... Ou não. Quem sabe (?), da passagem pela Federação do Carnaval, para qual advoguei. Será que nos conhecíamos da militância na imprensa, nas redações de jornais, nos estúdios de TV? Não sei. 

O que sei é que a idade me preenche de vivências, de lembranças, de pessoas que se foram e se vão, na longa senda de passagem na existência, bracejando em mar de sargaços, entre abrolhos, almejando alcançar porto seguro ou praia mansa onde pudesse repousar. São muitas primaveras. Muitos arrebóis. Muitos carnavais.


 A CIDADE E A CASA 

Cresci e vou morrer na mesma cidade em que nasci, o que me parece um privilégio. Pisei outras paragens, outras ainda pisarei, mas nada encontrei e encontrarei que não fosse ou seja humano, ou geológico, ou bestial. Outras raças, outros hábitos, outras línguas, outros climas, outras faunas e floras, mas, enfim, principalmente gente de carne e osso em todo canto, lutando para alimentar o corpo todo dia e sofrendo para entender a alma e contentar o ser anímico. 

E vou morrer na casa alma mater da família em que despontei para a consciência social e para a capacidade civil, em seguida para a responsabilidade penal, e finalmente para a epifania filosófica – e na qual dou sequência aos esforços parentais para a perpetuidade consanguínea. A cada canto da casa, em cada cômodo, em cada parede, em cada piso, através de cada porta o passado sobrevive, edulcorando o presente com sabor de eternidade. 

As ruas, as esquinas, as casas, as praças, os muitos quarteirões, cada ponto da cidade guarda uma lembrança preciosa e rememora alguma crônica da minha vida, desde as jornadas infantis pela mão paterna, passando pelas aventuras juvenis, até os roteiros obrigacionais da profissão. 

Ali um prédio público ou uma igreja em que foi celebrada alguma efeméride memorável; aqui a calçada em que foi beijada a vez primeira uma namorada; acolá o local em que um grupo de rapazes desafiou outra turma para briga, terminando tudo em pacto másculo entre os líderes, com chuva de cerveja festejando a nova paz – isso vivido pessoalmente por mim, ou contado por meu pai, de vinte anos antes, tempo que separava a nossa idade. 

 

OS LIVROS 


Enquanto estou gestando a crônica, encontro de repente e por acaso o poeta Luciano Maia em mesa de bar, que me chama e me mimoseia com exclusivo exemplar numerado e assinado da sua mais nova obra literária, de catita feição gráfica, em tiragem intencionalmente reduzida, livro em que ele documenta, em sonetos e imagens coloridas, suas pisadas pela Grécia, as pegadas que deixou fisicamente entre as letras clássicas que registram a história ensinada pelo mundo antigo ao nosso mundo.

Recebo "Mar Egeu", degusto, e me lembro do primeiro livro que ganhei e que li gostosamente, exatamente sobre o andejo Marco Polo, que saiu do Mediterrâneo para desvendar o Oriente, obra cujo tio que me a deu, Osíris, se tornaria ele mesmo um vira-mundo, a vida toda rodando as lonjuras do Estrangeiro e trazendo para a província a notícia fabulosa das mesmas plagas longínquas que o viajor veneziano desbravou em priscas eras – tudo antes da tecnologia encolher o globo e aproximar a superfície dos hemisférios do planeta.

            

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