segunda-feira, 24 de outubro de 2022

ARTIGO - O Ministério da Verdade (RMR)

 O MINISTÉRIO DA VERDADE
Rui Martinho Rodrigues*

 

George Orwell (1903 – 1950), na obra “1984”, apresenta uma instituição denominada “ministério da verdade”, um poder absoluto, apto a dizer por decreto o que seja realidade e o que não seja. É uma distopia escrita durante a II Grande Guerra. Parecia que o mundo seria dividido pelas potências em conflito. Os litigantes, na ficção de Orwell, eram a Atlântida, a Eurásia e a Lestasia. As três potências vigiavam e controlavam tudo. Tinham o monopólio da informação ou do que acaba de receber o nome de “desordem informacional”.

 


A distopia citada enfatiza a perda da liberdade de expressão, verdade oficial, o poder coercitivo do Estado e do Ministério da Verdade. Concentração de poder nos faz lembrar de Lord John E. E. Dalberg-Acton (1834 – 1902), para quem o poder corrompe e o poder absoluto corrompe de modo absoluto. O sistema de freios e contrapesos divide as funções do poder do Leviatã. 

A competência legiferante cabe ao Legislativo, legitimado pela representação popular. Executar o que foi decidido pelo Legislativo cabe ao Poder Executivo. O encarregado de dirimir conflitos e julgar a conformidade com o disposto pelo Legislativo é o Judiciário. O sistema de freios e contrapesos foi pensado por C. L. de Secondat, barão de Montesquieu (1689 – 1755) e já havia sido esboçado por J. Locke (1632 – 1704) e até pelo estagirita anteriormente citado. 

Assim, divididas as funções do poder, o totalitarismo é evitado. A criatividade humana tende a contornar os obstáculos às paixões e interesses. Aristóteles (384 a.C.– 322 a.C.) observou que as formas de governo têm um espírito que, com o tempo, pode degenerar. A democracia degenera em demagogia. 

As garantias individuais são liberdades negativas (negam aos poderosos o direito de opor obstáculo a ação dos cidadãos), são formas de contra poder, como a liberdade de consciência e de expressão, a crítica aos poderosos; a inércia do Judiciário para que só atue quando provocado (para que juízes não sejam autores de ações que eles mesmo julgarão); reserva legal (a competência para criar proibições e obrigações e penalidades é negada ao Judiciário e ao Executivo) para prevenir abuso de autoridade. 

Estabelecidos limites ao exercício do direito de agir, o encarregado de vigiar e conter as práticas ligadas a tais limites é o Poder Executivo (poder de polícia). Havendo desvios, o Executivo tem a faculdade discricionária, quando dada por lei, de agir para coibir e aplicar sanções administrativas. Ocorrendo pendenga sobre se a ilicitude é da conduta do agente do Estado autor da reprimenda ou do cidadão apenado, as partes podem, no caso de ação privada, ou devem, no caso de ação pública incondicionada, recorrer ao Judiciário (ação pública), que exercerá o poder-dever de julgar (agir como Estado-juiz). 

Constituições são documentos políticos com efeitos jurídicos, por isso também são nomeadas como Carta Política. Contemporaneamente adquiriram abrangência total. Além da organização do Estado e das relações deste com os cidadãos, passaram a dispor sobre as relações entre os cidadãos e positivaram princípios, espécie normativa que têm inúmeras hipóteses de incidência, dando ao juiz oportunidade de impor a sua subjetividade. 

A tese segundo a qual a norma jurídica é uma abstração que não alcança a singularidade do caso concreto prevaleceu, embora não exista caso singular, posto que “não há nada de novo sob o sol” (Eclesiastes 1;9). O juiz deixou de interpretar a lei, passou realizar a transposição da norma abstrata para a suposta singularidade do caso concreto, sob o nome de concreção, e passou a “operador do Direito”, ao invés de intérprete. O Judiciário passou a legislar. 

A abrangência total da vida social pelas constituições deu ao controle abstrato de constitucionalidade poder sobre tudo. Alegando preservar as normas inquinadas de inconstitucionalidade, foi estabelecido que os tribunais podem reescrever as normas produzidas pelo Legislativo ou pelo Executivo, dando-lhes novo sentido. Nascia a “interpretação conforme”, pela qual os tribunais dizem que onde está escrito “a” leia-se “b”. 

Mas a norma não é preservada quando é modificada. O Judiciário adquiriu a função legislativa e adquiriu poder ilimitado, além da prerrogativa de errar por último (frase atribuída a F. C. Pontes de Miranda, 1892 – 1979). A vontade de potência sempre quer mais. As competências do Executivo também foram usurpadas. O poder de polícia, que cabe ao Executivo, vem de ser exercido pelo judiciário. A “livre decisão fundamentada” alega ter limite na necessidade de fundamentar. 

Mas, com um pouco de habilidade e sem ter que dar satisfações a ninguém, é possível “fundamentar” qualquer coisa. Ficamos entregues ao alvedrio da autoridade judicial. O senador Delcídio Amaral foi preso sem flagrante e sem crime inafiançável; o deputado Eduardo Cunha foi afastado da presidência da Câmara dos Deputados pelo STF, e o ministro Teori Zavascki declarou que a decisão era o exercício de um “direito extraordinário” (sem explicar o que seja isso). 

O Ministro Luís Roberto Barroso, do STF, já havia imposto à Câmara dos Deputados um detalhado roteiro para a votação da decisão sobre encaminhar ou não o pedido de impeachment contra a presidente Dilma. O citado roteiro tinha o sentido de uma reforma do Regimento daquela Casa Legislativa, invadindo prerrogativa da referida casa. O Presidente Michel M. E. Temer foi impedido de nomear a deputada Cristiane Brasil para o Ministério do Trabalho. A “fundamentação” da decisão foi a deputada ter sido vencida em uma ação trabalhista. 

Tivemos tipo penal criado por analogia, inquérito sem tipo penal correspondente (fake news), sem objeto e sem prazos definidos (inquérito do fim do mundo, no dizer de Marco Aurélio Mello, Ministro do STF aposentado). Agora temos um “index” de palavras e informações proibidas por serem “desordem informativa”, com o Judiciário exercendo poder de polícia, ao arrepio da Constituição.

 

A omissão dos que esquecem os deveres de cidadão é preocupante. As palavras de um sermão do pastor luterana alemão Martin Niemöller (1892 – 1984), intitulado “Eu Me Calei” – erroneamente citadas como se fossem um poema – falam do dia em que levaram um dos seus vizinhos, porque era judeu, depois outros foram levados, por diversa condição étnica ou ideológica, cada um por sua vez, e ele se calou. Até que o levaram, e já não havia ninguém para protestar.


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