segunda-feira, 5 de setembro de 2022

ARTIGO - Conhecimento, Paixão e Popularização - Parte IV

CONHECIMENTO, PAIXÃO
E POLARIZAÇÃO
PARTE IV
Rui Martinho Rodrigues*  

 

Hegemonia ideológica é ortodoxia. Criminaliza a divergência. Não busca legitimidade na vontade popular, salvo quando controla os aparelhos que supostamente representam o Povo. Todo poder aos soviets (Vladmir Ilyich Ulianov, Lênin, 1870 – 1924, em “O Estado e a Revolução”), se as assembleias forem controladas. O mesmo Lênin, em “O que fazer”, diz que não é preciso consultar os números (maioria) quando se tem domínio cognitivo da matéria, se não houver controle da vontade popular não é preciso segui-la.

 

Os fabianos impuseram a hegemonia ideológica nas escolas, na imprensa, na intelligentsia e parcialmente nas igrejas. Mas seu poder não é absoluto. Na ficção de Eric Blair (George Orwell, 1903 – 1950) “1984”, os “proles” são a parcela da sociedade que opõe resistência ao “Grande Irmão”, o curador da sociedade. O plural de prole é usado por Orwell para designar os pobres, os marginalizados, certamente pela visão de revolucionário, embora desiludido, do autor de “1984”. 

Orwell não conhecia a imunização cognitiva decorrente da incomunicabilidade dos paradigmas (Thomas S. Kuhn, 1922 – 1996), nem os obstáculos epistemológicos de Gaston Bachelard (1884 – 1962), mas percebeu que os intelectuais têm a mente mais dominada do que os simples. As teorias dos intelectuais oferecem respostas prontas e ensejam a oportunidade de sentir-se sábio e virtuoso, como é próprio dos intelectuais ungidos (Thomas Sowell, 1930 – vivo). O projeto de reengenharia social e antropológica se apresenta como defesa da igualdade, sem distingui-la da simples diferença (J, D’Assunção Barros, 1957 – vivo); liberdade de ser, ao invés da liberdade de agir e fazer (J. Guilherme Merquior, 1941 – 1991). A defesa dos valores “do bem” convive sem constrangimento com niilismo. 

Intelectuais honestos e eruditos podem padecer de imunização cognitiva mais do que os simples. O viés de confirmação que aprisiona nos paradigmas é mais forte nos mais letrados e mais sugestionados com o prestígio dos grandes autores. A propaganda exalta pensadores que não resistem a uma crítica isenta.

Constituições cheias de matéria constitucional imprópria e com um programa para o futuro da sociedade são chamadas totais e programáticas. A dita totalidade é poder absoluto para os intelectuais ungidos dos tribunais e submete o “poder que emana do povo” (Parlamento e Executivo). Pode anular as garantias do devido processo legal usando de contorcionismo hermenêutico franqueado aos tribunais pela Nova Hermenêutica Constitucional e pelas constituições dirigentes que são o poder ilimitado dos tribunais constitucionais. 

Constituições dirigentes e a Nova Hermenêutica Constitucional deram aos tribunais poder para combater instituições, o que é feito quando elas possam concorrer com o domínio ideológico estatizante e coletivista. Isso se aplica às redes sociais e a tudo o que possa expressar vontades ou opiniões do povo, apesar da citada proposta de todo poder aos soviets (conselhos populares) da obra “O Estado e a revolução”. Caso o povo discorde dos “reis filósofos” de “A república” (Platão, 428/427 – 348/347) passa a valer a obra “O que fazer”, em que o mesmo Lênin substitui a consulta às maiorias pelo domínio cognitivo da matéria, sem distinguir juízo de fato de juízo de valor (cientificismo explícito). 

Matéria constitucional imprópria, nas constituições atuais, é um meio de controle da sociedade pelos tribunais, sem a legitimidade da representação popular. O caráter programático das constituições, estabelecido por maioria ocasional é outro meio de controle da sociedade e de imposição de uma mudança cultural forçada. O controle abstrato de constitucionalidade e a “interpretação conforme” também são usadas para impor uma mudança cultural aludida, “arejando” a sociedade. 

A. Dias Toffoli, ministro do STF, disse que o supremo é o poder moderador e que temos um semipresidencialismo (9º Fórum Jurídico de Lisboa, 16/11/21), contrariando a CF/88. Ele já havia declarado (02/08/2020), em Webinar promovido pelo poder360 e pelo Observatório de Liberdade de Imprensa do Conselho Federal da OAB) que o STF é o editor da nação, em analogia com o editor de jornal que faz a censura prévia interna da empresa jornalística. 

A imunização cognitiva impede a percepção de pessoas. O viés de confirmação faz absurdos parecerem o certo e o certo parecer absurdo. Até os teólogos se confundem. Mas isso seria assunto para outra reflexão.


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