segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

ARTIGO - A Espiritualidade nos Contos de Tolstoi (LA)

 A ESPIRITUALIDADE NOS CONTOS DE TOLSTOI
Luciara Aragão*

 

 

Conhecemos todos o conto de Natal de Dostoievski e nos emocionamos com a narrativa do menino diante da árvore de Natal, na Casa do Menino Jesus, repleta de crianças como ele, anjos esquecidos e abandonados. Talvez, algum de nós conheça ainda, dentro do vigor da obra de Liev Tolstoi (1828-1910), os seus contos de inquestionável genialidade, simples e profundos, e com forte conteúdo espiritual.



Filho de nobres e descendente de senhores feudais, não conheceu a mãe, falecida quando ele completou três anos, e perdendo o pai poucos anos depois. Fascinado com a vida militar de um dos seus irmãos, participou de batalhas, no Cáucaso, e escreveu os seus dois primeiros romances:  Infância, autobiográfico, e Relatos de Sebastopol. Assim como Dostoievski, preocupou-se com os problemas sociais e,  em 1859, fundou, em sua propriedade, uma escola para adultos e crianças. Tentou recorrer a métodos que excluíam os castigos físicos, aplicando bondade e compreensão, como forma de disciplina. Combateu o isolamento russo na Ásia, bem como a servidão, e acreditava que uma aproximação com o Ocidente facilitaria o progresso econômico e cultural do seu povo.

Após o casamento com Sófia, uma amiga de infância que voltou a rever quando juiz de paz em Iasnaia, onde nasceu, passou a ver a literatura como um meio de ganhos pecuniários. Foi após o casamento que escreveu o inolvidável Guerra e Paz, tendo a esposa como sua secretária, e Ana Karenina, classificada por Dostoiewski como uma imortal obra de arte. A fama e o reconhecimento público não foram suficientes para acalmar o seu espírito inquieto e para dar respostas as suas aspirações morais e espirituais. Aproximou-se da religião ortodoxa, conviveu com monges, viveu em mosteiros, estudou os evangelhos e escreveu A morte de Ivan Ilitch, obra na qual reconhece a importância da caridade para a salvação.

Seu período de rebeldia preocupou os ortodoxos, pois contestava a religião, o governo, o socialismo; crendo ser um inspirado por Jesus, criou um tipo de tolstoismo, desconfiando do sistema, das ideologias e do próprio legado da cultura universal. Sua obra Ressurreição, de fama internacional, dando apoio a um grupo de camponeses que não desejava ir à guerra, optando por formar uma comunidade cristã, resolveu o impasse, e ele foi excomungado (1901), mas permaneceu arraigado ao próprio credo.

Paradoxos e contradições foram constantes em sua vida pessoal , mas sempre demonstrando genialidade inegável e maestria em seus escritos. Ele próprio reconhecia as suas limitações a santidade, mesmo quando mergulhou profundamente nos estudos do Evangelho e na vida de Jesus, tomando-o como mestre e guia. Reconhecendo a estreiteza de caminho que conduz à santidade , nos diz para repreender a ele, Tolstoi,  e não a estrada  que escolheu para trilhar; ele indica aos que  o  indagam onde se situa o caminho. “Ir bêbado, aos tropeços para casa”, explica Tolstoi, não significa equivocar-se sobre a escolha da estrada. Seu desejo intenso por paz e por recolhimento afastou-o da Corte e da esposa de quem se separou. Fugiu de casa e faleceu na aldeia de Astápovo, cercado pela admiração em todo o mundo.

Sua maestria como escritor e conhecedor dos meandros da alma humana, seu propósito de tornar experimental os sonhos, assim como os arroubos místicos de sua vida, compõem o legado perfeito de uma alma que conheceu os refinamentos da espiritualidade, registrados em seus belos contos, tornando-os tão preciosos quanto Guerra e Paz. Seu interesse por questões e por soluções espirituais, pelas dicotomias entre pureza e vilania, justiça e injustiça, vileza e nobreza, o fizeram criar tipos , presentes em Trabalho, Morte e Enfermidade (1903), no qual reconta a história, já conhecida dos indígenas da América do Sul. As motivações, os comportamentos humanos e os conceitos contidos ,em suas obras, levou Ghandi a adotar a resistência passiva com base na não violência. Foram também os seus textos religiosos que lhe fizeram conquistar o respeito do Ocidente, principiando por ser traduzido com grande entusiasmo na Inglaterra.

O seu desejo de simplicidade e de clareza, a luminosidade de seus textos, nos contos espirituais, são como um cartão de Natal e auspícios de esperança para todos nós no Ano Novo .Podemos aprender humildade com Os três Eremitas (1886), visitados por um bispo e vivendo  numa ilha deserta; sobre o desprendimento com  o De Quanta Terra precisa um Homem, mostrando a ganância da natureza humana; e sobre os acertos nas escolhas da vida , com  o maravilhoso Os Dois Anciãos (1885),  que prometem cumprir um voto na Terra Santa; e, sobretudo, aprendemos acerca do amor, na surpreendente  história de um idoso sapateiro, que, por sua crença no Evangelho, tenta viver conforme os ensinamentos de Jesus e O espera numa visita, oportunidade em que aprende, de forma terna e profunda, que ONDE EXISTE AMOR  DEUS AI ESTÁ(1885). Uma lição para todos nós em 2022.

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