A ESPIRITUALIDADE NOS CONTOS DE TOLSTOI
Luciara Aragão*
Conhecemos todos o conto de Natal de Dostoievski e nos emocionamos com a narrativa do menino diante da árvore de Natal, na Casa do Menino Jesus, repleta de crianças como ele, anjos esquecidos e abandonados. Talvez, algum de nós conheça ainda, dentro do vigor da obra de Liev Tolstoi (1828-1910), os seus contos de inquestionável genialidade, simples e profundos, e com forte conteúdo espiritual.
Filho de nobres e
descendente de senhores feudais, não conheceu a mãe, falecida quando ele
completou três anos, e perdendo o pai poucos anos depois. Fascinado com a vida
militar de um dos seus irmãos, participou de batalhas, no Cáucaso, e escreveu
os seus dois primeiros romances: Infância,
autobiográfico, e Relatos de Sebastopol. Assim como Dostoievski,
preocupou-se com os problemas sociais e, em 1859, fundou, em sua propriedade, uma
escola para adultos e crianças. Tentou recorrer a métodos que excluíam os
castigos físicos, aplicando bondade e compreensão, como forma de disciplina.
Combateu o isolamento russo na Ásia, bem como a servidão, e acreditava que uma
aproximação com o Ocidente facilitaria o progresso econômico e cultural do seu
povo.
Após o casamento com
Sófia, uma amiga de infância que voltou a rever quando juiz de paz em Iasnaia,
onde nasceu, passou a ver a literatura como um meio de ganhos pecuniários. Foi
após o casamento que escreveu o inolvidável Guerra e Paz, tendo a esposa
como sua secretária, e Ana Karenina, classificada por Dostoiewski como
uma imortal obra de arte. A fama e o reconhecimento público não foram suficientes
para acalmar o seu espírito inquieto e para dar respostas as suas aspirações
morais e espirituais. Aproximou-se da religião ortodoxa, conviveu com monges,
viveu em mosteiros, estudou os evangelhos e escreveu A morte de Ivan Ilitch,
obra na qual reconhece a importância da caridade para a salvação.
Seu período de
rebeldia preocupou os ortodoxos, pois contestava a religião, o governo, o
socialismo; crendo ser um inspirado por Jesus, criou um tipo de tolstoismo,
desconfiando do sistema, das ideologias e do próprio legado da cultura universal.
Sua obra Ressurreição, de fama internacional, dando apoio a um grupo de
camponeses que não desejava ir à guerra, optando por formar uma comunidade
cristã, resolveu o impasse, e ele foi excomungado (1901), mas permaneceu
arraigado ao próprio credo.
Paradoxos e
contradições foram constantes em sua vida pessoal , mas sempre demonstrando
genialidade inegável e maestria em seus escritos. Ele próprio reconhecia as suas
limitações a santidade, mesmo quando mergulhou profundamente nos estudos do Evangelho
e na vida de Jesus, tomando-o como mestre e guia. Reconhecendo a estreiteza de
caminho que conduz à santidade , nos diz para repreender a ele, Tolstoi, e não a estrada que escolheu para trilhar; ele indica aos que o indagam
onde se situa o caminho. “Ir bêbado, aos tropeços para casa”, explica Tolstoi,
não significa equivocar-se sobre a escolha da estrada. Seu desejo intenso por
paz e por recolhimento afastou-o da Corte e da esposa de quem se separou. Fugiu
de casa e faleceu na aldeia de Astápovo, cercado pela admiração em todo o mundo.
Sua maestria como
escritor e conhecedor dos meandros da alma humana, seu propósito de tornar
experimental os sonhos, assim como os arroubos místicos de sua vida, compõem o
legado perfeito de uma alma que conheceu os refinamentos da espiritualidade, registrados
em seus belos contos, tornando-os tão preciosos quanto Guerra e Paz. Seu
interesse por questões e por soluções espirituais, pelas dicotomias entre
pureza e vilania, justiça e injustiça, vileza e nobreza, o fizeram criar tipos ,
presentes em Trabalho, Morte e Enfermidade (1903), no qual reconta a
história, já conhecida dos indígenas da América do Sul. As motivações, os
comportamentos humanos e os conceitos contidos ,em suas obras, levou Ghandi a
adotar a resistência passiva com base na não violência. Foram também os seus
textos religiosos que lhe fizeram conquistar o respeito do Ocidente,
principiando por ser traduzido com grande entusiasmo na Inglaterra.
O seu desejo de
simplicidade e de clareza, a luminosidade de seus textos, nos contos
espirituais, são como um cartão de Natal e auspícios de esperança para todos
nós no Ano Novo .Podemos aprender humildade com Os três Eremitas (1886),
visitados por um bispo e vivendo numa
ilha deserta; sobre o desprendimento com
o De Quanta Terra precisa um Homem, mostrando a ganância da
natureza humana; e sobre os acertos nas escolhas da vida , com o maravilhoso Os Dois Anciãos (1885), que prometem cumprir um voto na Terra Santa; e,
sobretudo, aprendemos acerca do amor, na surpreendente história de um idoso sapateiro, que, por sua
crença no Evangelho, tenta viver conforme os ensinamentos de Jesus e O espera
numa visita, oportunidade em que aprende, de forma terna e profunda, que ONDE
EXISTE AMOR DEUS AI ESTÁ(1885). Uma
lição para todos nós em 2022.
Nenhum comentário:
Postar um comentário