O REBANHO E A LIBERDADE
ESPELHO DA CONDIÇÃO HUMANA
Valdester Cavalcante Pinto Júnior*
Todos erram, no entanto ninguém, exceto o ignorante, é passível de perseverar no erro (CÍCERO).
Entre
a Filosofia e a impiedade a indiferença é a mesma que há entre a religião e o
fanatismo. (DENIS DIDEROT, escritor, filósofo e enciclopedista francês).
Há momentos, frequentemente muitos, em que o ser humano se vê à beira do abismo – entre a vida e a finitude – o que consolida circunstância, muita vez, desesperadora!
Na mencionada zona crepuscular, com recorrência, sucede aquilo suscetível de se chamar reconfiguração do olhar. Não é que aprendamos algo novo, mas ocorre, por um instante, sermos desnudados da mentira habitudinária com a qual cobrimos a vida.
Nessas
experiências-limite, sobretudo quando vividas coletivamente, entrevemos aquilo
que há de mais essencial em nós – e existe de mais frágil.
Mencionados eventos, por sua potência transformadora, deveriam nos reconduzir a modalidades mais humanas, solidárias e respeitosas de convivência. Haveriam de, ao menos, deixar um rastro de memória ativa. Tal lembrança, contudo, se dissipa com assustadora rapidez. Retomamos o curso da existência como se nada tivesse ocorrido – e com ainda mais sede de posse, avidez por controle, ânsia pelo poder. Aquilo que deveria ensejar responsabilidade é engolido pela rotina, desfeito por indiferença, desmerecido por via da cegueira.
O mal, com efeito, não se exprime feito um monstro, porquanto se insinua na normalidade, sob o hábito, na dependência do silêncio. E este é o tempo taciturno, que não representa a mudez fértil da escuta e da contemplação, mas da quietação imposta, cultivada pelo receio de pensar, dizer, o medo de abraçar a divergência. Palavras tornaram-se armadilhas, enquanto o pensamento livre configurou-se, inopinadamente, um risco social. O espaço público foi tomado por slogans, expressões de ordem, fórmulas repetidas que tranquilizam os inseguros e alimentam as tribos da certeza.
As
pessoas, neste passo, se organizam em guetos ideológicos, no âmbito dos quais
somente o eco do que já pensam é admitido. O diferente é temido, censurado,
descartado, precito. O niilismo conforma-se ativo, cursando, então, a recusa do
confronto, tendo vez a domesticação da linguagem, ao fortalecer a idolatria da
identidade. O espírito crítico — motor agente do humano – é crescentemente
havido como ameaça. A pluralidade, antes condição do mundo comum, é, nesse
ensejo, vista como falha de caráter.
E assim se forja o inimigo imaginário, isto é, alguém ou algo a ser combatido, um ponto cego a merecer eliminação. A figura do inimigo é funcional, pois legitima o surgimento de certos messias, salvadores que prometem sentido em meio ao caos.
Este salvador de araque, todavia, como já divisamos repetidas vezes na história, está a anos-luz de ser libertador: é o novo rosto da dominação, a outra lata da influência e mais uma cara da autoridade. O rebanho clama por salvação e recebe, em troca, a servidão voluntária.
Assistimos, então, a uma cegueira cuidadosamente cultivada – barbaria expressa com trajos pretensamente civilizados. Povos são silenciados por ousarem pensar diferentemente. Culturas sobram apagadas sob a justificativa de proteger a ordem. Identidades demarcam-se esmagadas em nome dissimulado da unidade. E estas disposições, medidas prévias desazadas, absolutamente aversas aos propósitos humanos, ocorrem maquinadas com frieza, como se a destruição fosse um ato administrativo, e não um ilícito moral de consideráveis proporções. Eis que a banalidade do mal, em repetida ocasião, cumpre seu expediente.
A humanidade, talvez, jamais tenha caminhado em linha reta. Seguimos em ciclos – ora de lucidez, e de obscurantismo noutras ocasiões – como marés que nos elevam e afogam. O “eterno retorno” é capaz de ser menos uma metáfora metafísica e mais um retrato da nossa incapacidade de aprender. Retornamos aos mesmos erros, a semelhantes ódios, a iguais violências, apenas com renovados, mas inadequados, discursos e inapropriados rostos.
E
o ódio, hoje, tornou-se a língua franca das relações humanas. Substituiu a
compaixão, anulou o diálogo, dissolveu as pontes. Amigos tornam-se estranhos;
vizinhos se fazem inimigos. A diferença, passível de ser fonte de criação, é
convertida em motivo de exclusão. Em nome de um ideal abstrato de pureza – seja
étnica, moral ou ideológica – aniquila-se o outro. O diverso, por consequente,
é tratado como ameaça, e a pluralidade agora é desvio.
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