segunda-feira, 11 de março de 2024

ARTIGO - Eu Acuso (RMR)

 EU ACUSO
Rui Martinho Rodrigues* 

 

A democracia francesa do final do Século XIX merece encômios. Nela um intelectual, Émile Zola (1840 – 1902), escreveu uma carta aberta, publicada no jornal L’Aurore, dirigida ao então presidente da França, Félix François Faure (1841 – 1899). A epístola criticava severamente o erro judicial que levou à condenação do capitão Alfred Dreyfus (1859 – 1935). 

Responsabilizava nominalmente altas personalidades, inclusive generais franceses. O título da missiva já deixa claro o seu teor: J’Accuse. A democracia francesa permitia a cidadão acusar autoridades sem que isso fosse considerado um atentado às instituições democráticas. Titulares de cargos e postos não eram a encarnação das instituições. Criticá-los era encarado como reprovação a um comandante de navio, que não se confunde com ataque ao projeto de engenharia da embarcação ou ao próprio barco. 

“Eu acuso” não levou o acusador à prisão. Não lhe valeu multa exorbitante. Antes motivou o presidente a conceder perdão ao condenado. Juízes não desfizeram o perdão concedido. Submeteram-se ao legítimo ato do presidente. Não concederam entrevistas à imprensa. Não subiram em palanques para participar de comícios alegando defender a democracia. Não foram ao exterior participar de atos políticos de protesto. 

Não haviam quebrado o princípio, que também é regra, da inércia do judiciário, pois não haviam usurpado a prerrogativa do Ministério Público, não tendo competido com o parquet no exercício da persecução penal. Nada disso precisaria constar do direito escrito da França da época, por ser matéria doutrinária reconhecida em todas as democracias. A imprensa reagiu de modo compatível com a pluralidade democrática: não se colocou uniformemente contra a crítica contida na carta de Zola. 

A severa acusação do escritor não poupou a decisão judicial de condenar o capitão de artilharia, apesar do processo não haver violado o princípio do juiz natural, uma vez que não houve supressão de instância. Juízes não haviam prejulgado o réu que condenaram, não tendo antecipado juízo em declarações públicas, nem adjetivado grosseiramente alguma parte envolvida. 

O princípio do processo acusatório, pelo qual a investigação do caso deve ser conduzida por pessoas que não acusarão nem julgarão, quem acusa, por sua vez, não julga e quem julga não investiga nem acusa, também não havia sido desrespeitado. A democracia francesa não estava tão degradada. Apenas a produção de provas foi criticada por Émile Zola. 

A essência da democracia se radica nas garantias individuais. Quando pessoas não têm garantias, nada mais resta do ordenamento jurídico democrático. O princípio da prevalência das maiorias precisa ter limites. Tanto é assim que processos podem ser desaforados quando a maioria da população de uma comarca prejulgou passionalmente um réu. 

O interesse social não pode se sobrepor às garantias individuais, sob pena dos cidadãos ficarem indefesos diante de autoridades. Isso seria a busca de proteção pela via da retirada de toda proteção. A defesa da França não poderia condenar um acusado de espionagem sem provas válidas, assim como não se pode desrespeitar garantias constitucionais em nome da defesa da democracia. 

A democracia exige representatividade das leis para que os cidadãos não fiquem expostos ao entendimento pessoal de autoridades. Tal garantia tem o nome de governo das leis, sem a qual teríamos o governo de homens supostamente sábios e virtuosos. Mas democracia é o regime da desconfiança.

Tanto é assim que os atos administrativos, judiciais e até legislativos são sujeitos a controles, e para tanto devem ser públicos. A concentração de poder é evitada com o sistema de freios e contrapesos, por desconfiança expressa nas palavras do Lord John Dalberg-Acton (1834 – 1902), segundo as quais o poder corrompe e o poder absoluto corrompe de modo absoluto. Daí a separação das funções do poder uno e indivisível do Estado em funções do Legislativo, do Executivo e do Judiciário. 

A acusação proferida por Zola mirava nas provas, como perícias grafotécnicas, depoimentos de testemunhas e outros aspectos relacionados com a produção de dados ligados ao fundamento de validade das acusações. As irregularidades passariam para a História como influenciadas pelo antissemitismo presente na sociedade francesa. Não havia a unanimidade da imprensa ou dos intelectuais contra os judeus. 

O repúdio às unanimidades não deve se basear na afirmação de Nelson Rodrigues (1912 – 1980), segundo a qual a concordância universal seria evidência de burrice. Nem sempre é isso. É preferível lembrar que a unanimidade é suspeita. Pode esconder interesses escusos, intimidação e manipulação de informações e consciências. Leis, inclusive as constituições, sem o amparo do poder vigente na sociedade é mero farrapo de papel, conforme palavras de Ferdinand Lassalle (1825 – 1864). A sociedade francesa, no final do século XIX, não estava tão degradada: corrigia os erros praticados no seio das suas instituições.

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