UMA REVOLUÇÃO CULTURAL
* Rui Martinho Rodrigues
O mundo passa por uma revolução cultural sem precedentes. Todos os papéis sociais, seja de filho e pai ou mãe; criança e adulto; homem, mulher e estão surgindo outros gêneros; professor e aluno; policial, juiz, líder religioso ou autoridade civil; mocinho ou vilão na literatura, teatro, cinema e televisão, tudo mudou. A dinâmica dos acontecimentos históricos que produziu a mudança aludida envolve uma enorme quantidade de fatores, que passamos a apresentar. As reflexões que se seguem ainda não são um estudo dos fatores citados, porque isso exigiria artigos específicos. O que se segue é uma visão panorâmica preliminar ao estudo de alguns dos aspectos da revolução cultural em comento.
Mobilidade geográfica, tecnologias, urbanização e escolarização
A mobilidade geográfica e as comunicações instantâneas estimularam um certo cosmopolitismo que abalou padrões culturais de sociedades anteriormente menos expostas às influências estrangeiras. Tal fenômeno deu lugar a expressão “aldeia global”, cunhada por Marshal McLuhan (1911 – 1980). A urbanização acelerada impactou nos costumes das populações que se deslocaram do campo para as cidades. A escolarização de crescentes parcelas da sociedade e o acesso à cultura letrada potencializaram a influência de artistas, intelectuais e celebridades, que sempre tenderam a divergir dos padrões culturais estabelecidos.
Os grandes fluxos migratórios da atualidade, somados aos milhões de viajantes, intensificam o multiculturalismo do tipo interativo, não obstante as formas de multiculturalismo diferencialista também tenham se fortalecido.
A dessacralização da cultura
O ambiente secularizado ou dessacralizado facilitou a banalização do que antes eram mores, agora transformados em folkways, com o advento da instabilidade descrita por Zygmunt Bauman (1925 – 2017) na obra Modernidade líquida. Não surpreende que padrões culturais percam prestígio. A diversidade das tendências históricas, todavia, proporcionou o surpreendente fenômeno da revanche do sagrado, assim denominado por Leszek Kolakowiski (1927 – 2009). Então o desmonte de valores tradicionais encontrou resistência facilitada pelas redes sociais, que quebraram o controle da mídia tradicional, monopolizada pela intelligentsia engajada na dialética negativa.
O projeto de refazer a sociedade e a cultura encontrou resistência tardiamente por parte dos não convertidos. Pretensão resistida tem o nome de conflito. As sociedades tornaram-se conflagradas. Mas as objeções ao projeto demiúrgico vieram principalmente por parte da parcela da sociedade que não foi catequisada, formada majoritariamente por quem não foi “domesticado” pelos estudos formais, pela sofisticada cultura letrada, que sabe sofismar de modo convincente, inclusive fazendo proselitismo no magistério.
O exame da revolução cultural não poderia ser feito abordando todos os fatores de uma vez. Examinaremos, nos nossos próximos artigos o impacto do projeto de reengenharia social e antropológica, aqui referido também como projeto demiúrgico.
O projeto demiúrgico
A difusão da ideia de que a sociedade e o homem podem ser radicalmente transformados até atingir a perfeição, se forem adotadas teses concebidas por pensadores havidos como sábios e virtuosos, deram grande impulso ao movimento de destruição dos padrões culturais estabelecidos. Os pensadores reconhecidos como senhores da verdade, embora muitos deles neguem a existência de verdades, conseguiram seduzir as elites intelectuais. Estas alimentam a ilusão de que, em uma sociedade radicalmente nova, os intelectuais serão os dirigentes, como os reis filósofos da República de Platão (427/428 – 327/328) que tanto elogiam. A desigualdade entre filósofos e os demais integrantes da sociedade, na República de Platão, não constrange os defensores da igualdade.
A precedência da sociedade sobre o indivíduo, como se o homem devesse servir à sociedade (ao associativismo), ao invés do associativismo dever servir aos associados (cidadãos), é um dos pontos de destaque da sedutora narrativa sobre justiça, que promove também a aparência de virtude, seguindo o conselho de Nicolau Maquiavel (1469 – 1527), na obra O príncipe, para quem o importante é aparentar virtude. A ilusão dos intelectuais persiste, não obstante tenham sido preteridos pela elite política e pela burocracia, em todas as experiências históricas em que o projeto demiúrgico de reengenharia social e antropológica foi tentado. Contrariamente a utopia cultuada pelos aspirantes a reis filósofos, o que historicamente tem prevalecido é (x) a “lei de ferro da oligarquia”, enunciada por Roberto Michels (1876 – 1936).
A adesão ao projeto citado é movida, em muitos casos, pela busca de vantagens pessoais, como bolsa de pesquisa, sucesso na seleção de programas de pós-graduação, concurso para o magistério universitário, publicação em revistas universitárias conforme relata Luiz Felipe de C. e S. Pondé (1959 – vivo), coisas controladas pelos dependentes do “ópio dos intelectuais”, na descrição de Raymond Aron (1905 – 1983), em obra cujo título é a própria expressão citada. Finalmente o despreparo intelectual de muitos intelectuais, que os torna vulneráveis à catequese dos “diretores da História”, que é como se sentem os candidatos a reis filósofos investidos da capacidade criadora de demiurgos.
Sim, intelectual não é sinônimo de sábio, nem de erudito, estudioso ou inteligente. Thomas Sowell (1930 – vivo), na obra Os intelectuais e a sociedade, os define como integrantes da intelligentsia (pessoas engajadas em movimentos políticos e artísticos, cujas ideias se circunscrevem ao campo das abstrações). Observa o autor citado que um físico ou um engenheiro nuclear necessariamente estudam muito, são pessoas inteligentes, mas não são considerados intelectuais. É mais fácil um novelista, um poeta ou ideólogo ser contado entre intelectuais. É preciso tratar de temas políticos ou artísticos, voltando-se para as ideias abstratas, é preciso, ainda, se engajar na intelligentsia.
As elites clericais
Gaetano Mosca (1858 – 1941), escrevendo sobre doutrinas políticas, identificou, em todos os tempos e civilizações, cinco grupos de poder: elite guerreira, sacerdotal, econômica, política e intelectual. Quanto mais elites e maior a competição entre elas, menos autoritária a ordem política. Quanto menor o número de elites, e quanto menor a competição entre elas, mais autoritário o sistema político. A difusão das ideias pelos meios de comunicação fortaleceu as elites política intelectual, hábeis em comunicação. O surgimento dos jornais e enciclopédias guarda estreita relação com a Revolução Francesa e uma série de outras revoluções tentadas ou consumadas. A era do rádio coincide com uma “safra” de líderes entre os quais se incluem Vargas no Brasil, Peron na Argentina, Roosevelt nos EUA, Hitler na Alemanha e tantos outros.
Poucos tinham acesso aos textos dos intelectuais, até que a imprensa facilitou a divulgação deles por meio de enciclopédias e jornais. As grandes reformas religiosas, tantas vezes tentadas sem sucesso, tiveram algum êxito quando a bíblia foi impressa em língua vernácula.
As elites clericais em grande parte também foram alcançadas pelo proselitismo dos intelectuais, parcela esta vulnerável em razão das limitações cognitivas decorrentes do tipo de escola que frequentaram (catequéticas), além de se deixarem levar pelos que invocam os mais altos valores, como igualdade, liberdade, fraternidade, amor ou justiça, que são conceitos indeterminados, com limites obscuros. Tal fragilidade se deve ao modo como foram escolarizados e ao modo como a catequese é conduzida, por vezes com técnicas de manipulação bastante elaboradas, conforme descrito na obra Maquiavel pedagogo, de Pascal Bernardin (1960 – vivo). As elites políticas em grande parte não têm preparo intelectual para enfrentar proselitismo dos intelectuais. Finalmente o oportunismo de quem escolhe aderir aos movimentos que parecem vitoriosos também motiva o apoio de grande parte do clero ao projeto demiúrgico.
Elites militares
As elites militares, no Brasil, tendem a seguir a tendência das parcelas mais influentes da sociedade, como aconteceu quando proclamaram a República em 1889, quando desfizeram a Primeira República em 1930, quando destituíram Vargas em 1945 e quando o levaram ao suicídio em 1954, ou ainda, como em 1964 reagiram às “reformas de base” e a fragilização da disciplina militar claramente presente na Marinha, conforme relato de Celso M. Furtado (1920 – 2004), na obra Fantasia desfeita. Nos dias atuais, o estamento militar parece voltado para o profissionalismo, a liderança no meio castrense tornou-se institucional e menos personalista, o que restringe as possibilidades de um possível protagonismo político. A participação das elites militares na revolução cultural tem sido bastante limitada.
Um estudo que pede continuidade
As reflexões aqui apresentadas são o esboço de
uma visão panorâmica da revolução cultural em curso. O estudo de cada um dos
aspectos enumerados, a exemplo do papel de cada uma das elites, dos impactos
das inovações tecnológicas, da mobilidade geográfica e demais fatores exigiria
um trabalho hercúleo e muito mais espaço. Deixemos algumas das análises
referentes aos aspectos citados para os nossos próximos artigos.
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