quinta-feira, 29 de junho de 2023

ARTIGO - Teoria e Método da Revolução Cultural (RMR)

 

TEORIA E MÉTODO
DA REVOLUÇÃO CULTURAL
Rui Martinho Rodrigues* 

 

A mudança cultural de larga amplitude se deu rapidamente. É, ou tende ser, um fenômeno global. A rapidez, própria do que habitualmente é atribuído às transformações revolucionárias, guarda relação com um grande número de variáveis. Apreciá-las exigiria um trabalho de largas proporções. Façamos, sobre o tema, apenas uma breve reflexão de caráter exploratório. 

Contemplemos inicialmente (i) a mobilidade geográfica e (ii) a urbanização e((iii) a dinâmica demográfica decorrente da variação vegetativa da população como fatores que podem ser esquematicamente separados do debate intelectual. Max Frisch (1911 – 1991), comentando a imigração italiana para a Suíça, disse “queríamos braços, chegaram pessoas”. 

A identidade cultural, seja de países, região ou de pessoas, pode passar por mudanças em razão da imigração. A diversidade cultural acompanha os imigrantes. Os multiculturalismos são classificados em numerosos tipos. Entre os quais temos alguns mais relacionados com a interculturalidade. O multiculturalismo do tipo assimilacionista promove, ou tenta promover, a adaptação do imigrante à terra que o recebeu, por ser a cultura majoritária; ou por diferenças de oportunidade de influenciar e de assimilar a cultura do outro. Assim o assimilacionista promove predominantemente a mudança cultural do imigrante, adaptando-o a cultura hospedeira. 

Quando existe o propósito de construir uma cultura comum negando outras expressões culturais, então temos o multiculturalismo conservador, que rejeita a interculturalidade. A mudança cultural dirigida pode ser uma expressão do conservadorismo, embora seja típico do pensamento revolucionário assumir a direção da dinâmica social. A assimilação não é absoluta, mormente quando a imigração ultrapassa certa proporção da população autóctone. Prevalece então o multiculturalismo interativo ou interculturalidade, que reconhece a mudança cultural de todas as partes da diversidade cultural resultante dos fluxos migratórios. 

A recusa da adaptação cultural, repudiando toda influência ou contribuição das culturas diferentes, tentando congelar a própria cultura recebe a designação de multiculturalismo diferencialista, que acirrou os ânimos contribuindo para tornar a sociedade conflagrada.

(i) A mobilidade geográfica 

Os imigrantes, em muitos países, principalmente entre os mais desenvolvidos, tornaram-se uma elevada proporção da população. Isto acentuou o multiculturalismo. A situação assim criada favorece a mudança cultural, embora possa desencadear resistências diferencialistas, fato que tem acontecido. A escala global e o volume de imigrantes é enorme. O turismo, que nunca foi tão grande como nas últimas décadas, também favorece as mudanças culturais. A difusão do cinema e do rádio, depois da televisão e, por fim, das comunicações instantâneas e gratuitas proporcionadas pelas novas tecnologias digitais impulsionaram grandemente a mudança cultural. 

Tudo isso ocorre simultaneamente com a urbanização acelerada, levando a formação de grandes cidades, o aumento da escolarização e o acesso a cultura letrada. O imigrante, o turista, o morador da grande cidade são pessoas anônimas, fora do alcance do controle social difuso, exercido pelos pais e demais parentes e pessoas do meio social, especialmente os mais velhos. Ninguém os conhece. Caso alguém as conheça, não tem autoridade sobre elas. A ruptura de laços sociais fragiliza o controle social. Controle e vigilância, tão execrados por Michel Foucault (1926 – 1984), tornaram-se menos efetivos. A liberdade de agir cresceu. 

(ii)A dinâmica demográfica. 

O número de filhos por mulher caiu bruscamente. As sociedades estão envelhecendo. Famílias com poucos filhos têm uma dinâmica social diferente. A escola de tempo integral veio substituir os pais na educação dos filhos. A televisão e a internet também são competidoras dos pais na influência que exercem sobre os filhos. 

(iii) O “(des)controle social 

Os limites impostos pela convivência social tornaram-se pouco relevantes. O controle social exercido pelo Estado não conseguiu substituir o controle difuso da sociedade, seja com a perspectiva de isolamento, seja pelo simples falatório. Polícia, Ministério Púbico, Judiciário e cadeia não se mostraram efetivos em face da mudança cultural que integra o elenco de fatores relacionados com os altos índices de criminalidade em alguns países. 

Os pais já não têm autoridade, combatidos que foram em nome da repulsa ao patriarcado e em razão dos limites impostos às práticas disciplinares adotadas pelas gerações anteriores. A escola também suavizou os controles sociais. Violência como palmatória, quarto escuro e outros procedimentos disciplinares duros foram abolidos. Eram pequenas tragédias que repudiamos. Friedrich Nietzsche (1844 – 1900) concluiu, como estudioso da tragédia grega, que esta era a representação um limite, uma forma de defesa da sociedade. 

A escola adotou métodos voltados para a sensibilização, conforme relata Pascal Bernardin (1960 – vivo) na obra Maquiavel pedagogo. Tentamos afastar o que Sigmund Freud (1856 – 1939), na obra Mal-estar na civilização, entendeu ser uma inconformidade das pulsões de vida e de morte em face das limitações impostas pela convivência social civilizada. Abrimos para a abolição dos citados limites, nas sociedades em que outros fatores concorrem para o retorno à barbárie. 

Fluxos migratórios, tecnologias de comunicação, urbanização e mudança da dinâmica demográfica não são suficientes para explicar a profunda e rápida mudança cultural. 

Eliminamos a violência regulamentada na escola. Eliminamos as pequenas tragédias. Só restou a violência informal, quando estudantes se agridem das mais diversas formas e professores são ameaçados ou agredidos. A violência oficial era um método grosseiro, que merece repúdio. Mas a violência que havia era regulamentada. (1) Havia pessoa, (2) motivo e (3) circunstância definidas. A palmatória era uso privativo da professora ou de pessoa autorizada por ela. O lugar era o momento da aula. A criança não podia ser espancada com a palmatória na rua ou fora da aula, nem por qualquer motivo ou sem motivo. Hoje o espancamento e até o tiro pode vir de qualquer um, a qualquer hora, por motivo imprevisível. 

(iv) A escolarização e o acesso à cultura letrada 

A escolarização da população cresceu. O acesso à cultura letrada aumentou. Pensadores de grande prestígio tornaram-se conhecidos, ainda por comentários nem sempre fiéis de divulgadores, ainda que nem sempre bem compreendidos, ainda que lidos, descrição do fenômeno feita por Leandro Konder (1936 – 2014) na obra A derrota da dialética. Televisão, rádio, jornais e revistas há muito tempo divulgavam, ao lado de amenidades e vulgaridades, versões do pensamento sofisticado de grandes pensadores, que podem ser muito citados, pouco lidos e ainda menos compreendidos. 

Esta é apenas parte dos fatores que devemos examinar para entender a profunda revolução cultural. Outras variáveis importantes não podem ser negligenciadas quando se queira estudar os fenômenos aqui abordado.

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