A CRISE DO MAGISTÉRIO
Rui Martinho Rodrigues*
1 – Considerações preliminares
Professores eram respeitados e suas opiniões acatadas. Houve uma grande mudança. Mestres já não são chamados lente, que enxerga por nós ou nos faz enxergar e tem autoridade no campo dos saberes. A autoridade intelectual deve ser relativizada. A validação do saber deve ser obtida pela vigilância epistemológica, quando e se for bem sucedida.
A autoridade é necessária nos espaços escolares. Mas deve ser exercida nos limites da lei e ao abrigo dos costumes. Mas quais costumes? Os de antanho? Os fluidos marcos da sociedade líquida (Zygmunt Bauman, 1925 – 2017)? Os de utopia antevista entre as brumas do futuro? A sociedade pós-moralista (Gilles Lipovetsky, 1944 – vivo) tem padrões?
2 – O caldeirão de bruxas da História
Caldeirão de bruxa, com asa de morcego e outros ingredientes permite a analogia com os fatores ligados às transformações históricas. O magistério sofreu o impacto do crescente prestígio do pensamento sofista, dando aparência de superioridade intelectual ao relativismo cognitivo e axiológico.
Outro fator relacionado com a crise do magistério é a difusão do argumento de que tudo é política, se resolve por vontade política e toda neutralidade é um engajamento. A banalização dos mores, transformados em folkway vulgarizou valores, profissões e símbolos das instituições e estruturas sociais.
3 – O ensino pós-moderno
O prestígio do professor, nos campos cognitivo e axiológico, tinha amparo no domínio dos conteúdos e na conduta pessoal do mestre. O relativismo desvalorizou estes sustentáculos do status do magistério. Os conteúdos foram desprestigiados. Ensino “conteudista” passou a ser coisa de ensino inferior. Conduta moral passou a ser confundida com moralismo, contrário a liberdade confundida com ausência de obstáculo ao desejo.
O domínio de conteúdos rebaixado como antiquado, abriu a porta para o animador de classe, substituto do mestre. O relativismo cognitivo leva ao descaso para com a formação do professor. O docente despreparado não inspira respeito A qualificação profissional não é cobrada por alguns, mas não tem o respeito de muitos.
A conduta do professor sofre os efeitos da falta de referencial na sociedade líquida. A linguagem vulgar pode ser aprovada e o abandono da língua culta tolerado por uns e reprovado por muitos. O recato igualmente divide opiniões. O “professor povo”, engajado em causas revolucionárias, pode usar baixo calão e pode vestir-se e comportar-se de modo heterodoxo. Mas divide opiniões.
4 – O ensino como proselitismo
O engajamento apaga a separação entre magistério e proselitismo. A neutralidade axiológica pode ser facilmente praticada no campo das ciências da natureza. As ciências físicas, químicas ou biológicas levam – ou deveriam levar – o professor para o campo do juízo de fato. Não cabe – ou não deveria caber – atitude de pregador ou missionário nestes campos. Mas ocorre a prática de proselitismo até no campo da Matemática. Já se pode encontrar tal disciplina adjetivada politicamente.
O proselitismo se manifesta abertamente nas ciências da cultura. Pregação se faz com juízo de valor. Juízo de fato se afirma por demonstração, não por apelo à justiça. Certamente os fenômenos sociais, no que concerne aos atos dos sujeitos da ação social, têm natureza de ação voluntária, dirigida e intencional, salvo se considerarmos tais agentes como incapazes para o exercício da cidadania.
Conscientizar os incapazes, guiados por uma falsa consciência, é próprio do proselitismo. Mas quem prega o relativismo cognitivo e axiológico na sociedade líquida não pode proclamar uma consciência verdadeira contrária à falsa consciência dos alienados. Salvo se disser que só as suas palavras expressam a consciência verdadeira. Juízo de fato tem amparo nas demonstrações – empíricas ou racionais – verificáveis.
Conteúdos de consciência são juízos valorativos. Não são susceptíveis à verificação empírica. Como falar em consciência verdadeira ou esclarecida, sem aceitar dogmatismo? Pregar o relativismo e ministrar dogmas é contradição. Não reconhecendo verdades, como pregar certezas?
Conscientizar é verbo incompatível com pluralismo democrático. Consciência não existe sem autonomia. Citando a frase de Sócrates, “só sei que nada sei”, alguém dizia: nós, os mais conscientes, devemos esclarecer o povo. Sem nada saber ela era mais consciente? Quem deveria ser doutrinado era subalterno na hierarquia de consciências.
5 – A crise do magistério: catequista versus catecúmeno
A hierarquia de consciências pode existir legitimamente, mas no tocante a juízos de realidade. Calcular a resistência da coluna de um edifício cabe a engenheiro calculista, posicionado na hierarquia do saber, cujo trabalho pode ser julgado como certo ou errado por ser juízo de realidade. Professor de cálculo não tem problema com liberdade de consciência, nem diz que tudo é política.
Proselitismo é coisa de escola confessional. Toma o caminho dos juízos valorativos que têm natureza política. Esta não trata apenas dos negócios da polis: é aquilo que não é técnica, mas juízo de valor. Não se faz eleição para saber o sexo de um passarinho, por ser um problema técnico. Nem se consulta um especialista para decidir se é importante saber o sexo do passarinho, porque esta não é uma questão técnica. Política é juízo de valor. Técnica é juízo de fato.
Quem troca juízo de fato por juízo valor não faz magistério, mas catequese. Juízo de valor não é ciência. Catequista não tem a legitimidade do magistério. Democracias não têm consciências oficiais. A política apaixona e divide. Tudo é política? Então tudo é discutível, apaixona, divide e a autoridade intelectual falece. O fiscal de consciência, formado na escola que despreza os conteúdos, agrava a crise do magistério.
As redes socais quebraram o monopólio da informação resultante do aparelhamento do ensino desde as universidades até o ensino infantil. Professores e jornalistas perderam o controle das massas. A internet deu oportunidade ao pensamento divergente. Professores e jornalistas seguiram o mesmo caminho e vivem a mesma crise.
6 – O debate acerca do poder e as razões da resistência
Economia, estrutura social e justiça, sem passar pelo crivo da crítica, era discurso sedutor. Sentindo-se poderosos em razão do aparelhamento do ensino e dos veículos de informação, os diretores de consciência julgaram haver chegado a hora de completar a destruição das instituições que podem oferecer alguma opção ao poder do Leviatã na assistência e na formação das consciências: a família e as igrejas.
Todo o poder ao Leviatã é entregar o comando ao estamento burocrático-patrimonial (Raymundo Faoro, 1925 – 2003); à elite citada na obra A elite do poder (C. Wright Mills, 1916 – 1962) composta, nos EUA, por super-ricos, senhores da guerra (elite militar), celebridades e intelectuais. Gaetano Mosca (1858 – 1941), na obra La classe política, enumera as elites: política, econômica, guerreira, sacerdotal e intelectual. Elas podem ser excluídas ou formar alianças. A teoria da circulação das elites (Vilfredo Pareto, 1848 – 1923) descreve as mudanças de regime político pelas transformações nas alianças entre elas.
A concentração de atribuições nas mãos do Estado fortalece o poder das elites que controlam o Leviatã. O poder corrompe e o poder absoluto corrompe de modo absoluto (Lord Acton 1834 – 1902), isto é: o poder absoluto é corrupto, abusivo, controlador, ilimitado. Estado é controlado pelo estamento descrito por Faoro; pela plutocracia apontado por Wright Mills como super-ricos; e pela cleptocracia de que fala Lamberto Maffei (1936 – vivo).
Maffei, na obra Elogio da rebeldia, trata da cleptocracia como um grupo minoritário, que explora a maioria (exploração como fenômeno incidental, não como exploração imanente ao trabalho assalariado) com objetivos econômicos e em razão do poder. A hegemonia da aliança da plutocracia com o patriciado em alguns países degenerou para cleptocracia, que convencia e dominava. Proponha o Estado provedor, paraíso terrestre com igualdade, sem excluir os “mais iguais” da obra A Revolução dos bichos (George Orwell, 1903 – 1950) e a “fraternidade” da guilhotina, demonstrada na Revolução Francesa. Sentindo-se seguros, os senhores das consciências passaram ao ataque aos costumes, como gestores da consciência e da moral pública. Valores passaram à condição de preconceito, embora sejam conceitos ex post facto.
As massas encontraram forças nas redes sociais e ensaiaram alguma resistência. Costumes não ensejam argumento de autoridade de professor ou especialista convidado de jornalista. Criticar o Banco Central é diferente de defender o uso de drogas psicoativas ou de práticas sexuais inspiradas nos textos do marquês de Sade (1740 – 1814).
Imprecar a sociedade “injusta”, como excludente de culpa
dos nossos fracassos é delicioso. O trabalho de catequista da revolução dos
costumes, porém, soprado nos ouvidos de filhos, no campo dos costumes,
estimulou a resistência que as redes sociais viabilizaram. A transparência da
política fez o resto. O povo agora sabe como se fazem as linguiças e as leis
(Otto von Bismarck, 1815 – 1898).
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