A VOLTA DO PÊNDULO
Rui Martinho Rodrigues*
Considerações
preliminares
O
que observamos é apreendido, interpretado e assimilado sob a influência de
pressupostos, perspectivas, sensibilidade e capacidade de assimilação. A
História pode ser vista como um progresso, sob o argumento dos inegáveis
avanços da ciência, da tecnologia e das instituições jurídico-políticas.
A
História pode, ainda, entender que a humanidade elabora formas de esconder a
decadência continuada. Alega, para tanto, que não convivemos melhor com a
natureza, antes pelo contrário; não aperfeiçoamos a convivência com os nossos
semelhantes e os conflitos de cada um consigo mesmo não melhoram.
Instituições
de amparo muito protegem, mas geram dependência, transferem a solidariedade
pessoal para a impessoalidade fria do Estado e de instituições dirigidas por
burocratas que não representam melhoria quando comparados com a proteção das
famílias e clãs do passado. A secularização nos tem entregado ao nosso próprio
arbítrio, sem o limite da normatividade heterônoma, nos deixa como juízes dos
nossos próprios interesses e paixões.
A
vontade geral, proposta por Jean-Jacques Rousseau (1712 – 1778), deveria
resolver o caráter arbitrário da autonomia. Seria distinta da vontade de todos,
mas então o que seria? Coletiviza a função legiferante, mas as maiorias são
ocasionais e instáveis e carecem de fundamento que afasta o arbítrio da vontade
geral.
Uma
terceira compreensão da História é de um movimento pendular, descrito por
Arnold J. Toynbee (1889 – 1975). Uma ordem social incomoda, a insatisfação se
acumula, inovações diversas introduzem mudanças e caminhamos para uma nova
organização havida como superior à vigente. Mas esta, uma vez estabelecida, tem
os seus incômodos.
As
insatisfações com a realidade anterior, agora vistas de longe, já não parecem
tão ruins e voltamos para a velha ordem, mas apenas quanto a um aspecto: mais
controle ou mais liberdade. Daí a ideia de sístoles e diástoles, de que falava
o general Golbery do Couto e Silva (1911 – 1987).
Jacques
Le Goff (1924 – 2014) distinguia diferentes ritmos das transformações históricas
e restringia avanços e recuos nos vários campos da atividade humana.
Instituições políticas e jurídicas podem avançar ou recuar enquanto a ciência
ou a tecnologia podem sofrer paralizações ou avanços inversamente aos campos
anteriormente aludidos.
O
movimento dos nossos dias
Os
nossos dias são marcados por transformações rápidas e profundas, afetando todos
os campos da atividade humana. Transportes, processos produtivos, meios de
comunicação, costumes, relações sociais e instituições são modificadas e a
ordem mundial é alterada como quando das metamorfoses que acompanharam a queda
de Roma e de Constantinopla.
Inteligência
Artificial, biotecnologia, engenharia genética, comunicações e transportes,
parecem eclipsar, com suas inovações, as mudanças institucionais. Garantias
fundamentais como as do devido processo legal, de liberdade de consciência e de
expressão, segurança jurídica, estabilidade e clareza da norma jurídica e
soberania popular como fundamento do sistema democrático passam por graves transformações.
Após
a Guerra Fria a democracia avançou para o leste europeu. A América Latina já
não passa por consulados militares e alguns países asiáticos se tornaram
democráticos, como Coreia do Sul e Taiwan. O pêndulo pendeu para o lado da
liberdade. Além da expansão geográfica da democracia, tivemos o alargamento do
seu significado político, jurídico e social.
As
liberdades passaram a abranger a redefinição e a proteção dos valores morais. O
direito de não ser escandalizado, de que falava Norberto Bobbio (1909 – 2004)
em seus escritos, foi abandonado. Surgiu uma ortodoxia definidora de uma nova
axiologia. O uso da linguagem passou a ser vigiado, como na Idade Média, contra
heresias com a imposição de novos significados do léxico. Sucede que palavras
são tijolos da alvenaria do pensamento. Uma ortodoxia vocabular, que pode
apontar “blasfêmias”, configura a volta do pêndulo.
Na
Romênia uma eleição foi anulada pela burocracia de Bruxelas, dando à União
Europeia a faculdade de agir conforme um jurista de alto coturno sugeriu:
“fazer alguma coisa para evitar a vitória de conservadores”. Na França Marie Le
Pen, líder com grande apoio político, foi afastada da disputa eleitoral pelo
Judiciário. Nos EUA por pouco Donald Trump não teve a mesma sorte. Na Venezuela
Maria Corina Machado, que depois veio a ser laureada como o Prêmio Nobel da
Paz, foi impedida de disputar eleição. Em Israel a Corte constitucional mantém
acirrada disputa com o primeiro ministro Benjamim Netanyahu.
O
atual recuo das democracias não resulta da intervenção militar ou levantes
populares, mas da transformação das instituições jurídico-políticas. O
neoconstitucionalismo e a nova Hermenêutica constitucional, com as
constituições totais e com a vagueza dos princípios positivados, acabou com a
separação das funções do poder do Estado, transformou as cortes constitucionais
em casas legislativas e a elas sujeitou os demais poderes. Aristocracia
herdeira do Iluminismo, inspirada nos reis filósofos da República de Platão
(428 a.C.– 347 a.C.), despreza a vontade popular, as normas emanadas do
Legislativo e os titulares legitimamente eleitos para o Poder Executivo. São os
“mais iguais” da obra do George Orwell (1903 – 1950).
Déspotas
esclarecidos batem à porta. Os meios de controle ficaram muito poderosos e
abrangentes com a revolução digital. Câmaras de reconhecimento fácil, controle
das transações financeiras, a moeda digital, rastreamento dos movimentos das
pessoas com a geolocalização e o acúmulo de informações pelos meios
tecnológicos desequilibraram a balança entre o poder popular e o poder do
Estado, melhor dizendo, dos que controlam o Leviatã.
A
aliança dos grupos financeiros com os movimentos revolucionários foi estimulada
pelo exemplo chinês, n qual o Estado gigante firmou aliança com o capital privado,
submetendo-o aos objetivos do poder político. O fascismo já havia feito isso,
que o modelo chinês repete e alguns confessam admirar.
As
elites elencadas por Gaetano Mosca (1858 – 1941) como formadas pelos ricos,
políticos, guerreiros, sacerdotes e intelectuais destroem a democracia quando
não competem entre si ou quando uma das duas destrói ou submete as demais. O
estamento burocrático encontrou o caminho da aliança com o grande capital.
Sacerdotes e guerreiros ou militares estão neutralizados. Os intelectuais são
cooptados ou controlados. Então a volta do pêndulo é uma ameaça iminente.