quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

NOTA ACADÊMICA - Assembleia Geral de Fim de Ano - 2025

 

ACLJ
2025
ASSEMBLEIA GERAL
DE FIM DE ANO



 

Atingiu pleno êxito a 2ª Assembleia Geral Ordinária da Academia Cearense de Literatura e Jornalismo (ACLJ), encerrando o exercício anomalístico da entidade, cerimônia realizada na noite deste dia 1º de dezembro, no auditório principal do Palácio da Luz, silogeu que sedia as principais academias literárias da Capital Cearense, principalmente a Academia Cearense de Letras, a mais antiga do País.

 

A solenidade foi conduzida pelo Secretário-Geral e Mestre de Cerimônia da ACLJ, Vicente Alencar, e a Mesa Diretiva foi composta pelo Presidente Reginaldo Vasconcelos, o Presidente Emérito Rui Martinho Rodrigues, os Membros Beneméritos José Augusto Bezerra e Graça Dias Branco, e pelos Membros Titulares Cândido Albuquerque, Sávio Queiroz Costa e Aluísio Gurgel do Amaral Júnior. 



Compareceram ao evento 20 Membros Titulares e dois Membros Beneméritos da ACLJ. Além dos já citados, Adriano Vasconcelos, Altino Farias, Carlos Rubens, César Barreto, Djalma Pinto, Edmar Ribeiro, Franzé Façanha, Humberto Ellery, Luciara Aragão, João Pedro Gurgel, Paulo César Norões, Pedro Bezerra de Araújo, Roberto Bomfim, Totonho Laprovitera e Ulysses Gaspar. 

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A PALAVRA DO ANO

Na pauta da solenidade, primeiramente a revelação da “Palavra do Ano”, aquela que a ACLJ elegeu como a que marcou os últimos doze meses, a mais articulada na imprensa, na Internet, nas falas públicas e nas rodas sociais do País no período, neste caso o neologismo brasileiro “TARIFAÇO”. 


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O CEARENSE DO ANO

O segundo item da pauta, a outorga do título de “Cearense do Ano” àquele conterrâneo que a ACLJ reputou o mais destacado na atividade exercida – técnica, científica, empresarial, artísticas, desportiva, social. 




A láurea coube neste 2025 ao Engenheiro Civil Henrique Vasconcelos, Presidente do Náutico Atlético Cearense, pelo trabalho exitoso que ele tem realizado na recuperação financeira, patrimonial, estética e social daquele clube, instituição que é uma joia do patrimônio histórico e arquitetônico do Estado. Ele foi saudado pelo acadêmico Sávio Queiroz Costa, cuja fala abaixo se transcreve.




HENRIQUE VASCONCELOS
O HOMEM DO ANO, SEGUNDO A ACLJ

 

Fui um menino de clubes – desses lugares que não eram apenas estruturas de concreto, mas territórios de afeto de uma cidade que pulsava diferente. 

Praticamente nasci no Ideal Clube. Meu carrinho de bebê circulava pelos salões ao lado do carrinho de uma futura amiga: Marjorie Marshall, bisneta de dois homens que ajudaram a erguer o sonho: Mirtyl Meyer e Pedro Augusto Sampaio, o primeiro presidente do Ideal. 

Talvez por isso o Ideal sempre me soasse familiar, como se eu reconhecesse seus sons e passos antes mesmo de aprender a falar. Hoje, tenho duas ações de sócio proprietário – e não são apenas títulos: são fragmentos vivos da minha própria história. 

Houve um tempo em que os grandes clubes de Fortaleza pareciam perder o brilho. Era como ver antigos faróis se apagando silenciosamente. Mas a vida tem dessas ironias belas, e o tempo, um senhor caprichoso, resolveu surpreender. 

Hoje temos o Iate Clube, brilhantemente conduzido pelo Comodoro Pompeu Vasconcelos, que saneou as finanças e devolveu ao clube o ar de casa aberta ao mar; temos o Ideal, renascido nas mãos de Amarílio Cavalcante Júnior, que trouxe mais do que gestão: trouxe alma, ousadia, cuidado, genialidade – tudo isso recolocou o clube no rumo de um futuro que muitos já não acreditavam possível. 

Mas nem todos tiveram o mesmo destino. O Clube Líbano Brasileiro, tão querido, não resistiu. E essa perda ainda dói na memória da cidade. 

Por fim, temos o caso do Náutico Atlético Cearense – um clube que respirou fundo e decidiu viver. O Náutico estava ali, gigante e silencioso, esmagado por dívidas e desafios. Acordá-lo exigia coragem rara. Exigia fé. 

E, felizmente, foi parar nas mãos do amigo Henrique Vasconcelos – filho e herdeiro de uma presidência histórica, a de Meton Vasconcelos, nome que ecoa como tradição, dignidade e grandeza. 

E eu entendo um pouco essa travessia, desde quando assumi a missão de revitalizar o Edifício Granville – um dos maiores ícones residenciais de Fortaleza – senti o peso simbólico nos ombros. Revitalizar um prédio é revitalizar histórias, pertencimentos, memórias. A jornada de Henrique no Náutico é exponencialmente maior, mais profunda, mais épica. 

– Henrique, o futuro do Náutico brilha – e essa luz começou nas suas mãos! 

– Doutor Meton, tenha plena certeza: o caminho que o senhor desenhou está sendo honrado com respeito e com um senso de legado que atravessa gerações! 

Muito obrigado. 

Sávio Queiroz Costa


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HOMENAGEM PÓSTUMA

Finalmente, a ACLJ prestou um tributo à memória da Juíza do Trabalho Milena Moreira de Sousa, que faleceu no dia 16 de novembro passado, homenagem póstuma proposta pelo acadêmico Aluísio Gurgel do Amaral Júnior.

 


Seu amigo e colega no magistério superior e na magistratura cearense, Aluísio proferiu o discurso de saudação (abaixo transcrito), dirigido especialmente à mãe da homenageada, Dona Milena Brasil, de 91 anos, que estava presente no auditório, e a outros colegas seus do Judiciário, que também compareceram.


À MEMÓRIA DE MILENA  


Presidente, confreiras e confrades, autoridades, senhoras e senhores. 

A minha amiga e irmã de vida Milena foi criança no bairro de Jacarecanga e desempenhou o papel de traquina no meio da meninada. Por esta época, a cidade de Fortaleza era ainda uma poesia. Educou-se e adolesceu no Colégio Santos Anjos, no Rio de Janeiro.

De volta à Fortaleza, sua beleza desabrochou em mocidade na bucólica praia do Ideal da década de sessenta. Enamorou-se e seguiu o seu amor no rumo do Velho Mundo, foi viver em plagas madrilenhas. Lá, seu coração viu o amor findar e experimentou a dor da separação. 

O tempo passou, a vida prosseguiu em Madrid e um novo amor surgiu. Declino-lhe o nome: era o dramaturgo e ator Emílio Lindner, que ainda hoje frequenta a cena cult daquela linda capital europeia; ele é o pai da sua primeira filha, Melisa. 

O amor tem seus caprichos e seus vezos, às vezes tem eternidade limitada. Foi assim que, certo dia, Milena deixou Emilio na Espanha após dez anos de Continente europeu e resolveu voltar com sua filha para a terra natal. Aqui se fez funcionária pública. Conheceu o poeta e arquiteto Silvio Barreira, de quem se enamorou e com quem teve as f ilhas Lenina e Yana. 

Ingressou na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará. Formou-se com o gáudio de ser oradora da nossa turma. Foi advogada militante. Participou das lutas pela renovação da Ordem dos Advogados do Brasil no Ceará ao lado de Ernando Uchoa Lima, Feliciano de Carvalho e tantos outros. 

Foi diretora do Sindicato dos Advogados do Ceará ao lado de Júlio Ponte. Tinha seu maior mentor na figura do mestre Evaldo Ponte, com quem dialogava frequentemente. Pós-graduada em Direito, voltou à Universidade Federal do Ceará para cursar o Mestrado. Foi professora do Curso de Direito da Universidade de Fortaleza, onde lecionou Direito do Trabalho, Direito Processual do Trabalho, Direito de Família, Direito Penal… 

Sua versatilidade no magistério superior não conhecia limites, mas posso assegurar que a disciplina que mais lhe animava o espírito era o Direito Processual Civil.Sei disto porque além de amigos e irmãos por escolha de vida, éramos também colegas de magistério na UNIFOR. 

Enquanto lecionava Direito Penal, ela ficou impressionada com o desenvolvimento e a evolução de uma turma de alunos e comentou comigo. Daí me pediu que, na condição de Juiz de Direito, providenciasse a sua participação como advogada de defesa em um Tribunal do Júri para adquirir experiência e passá-la aos alunos.

Eu era titular da segunda vara em Maranguape e o júri era da competência da primeira vara, cuja titularidade estava a cargo da Juíza Márcia Menescal, que prontamente a nomeou para advogar em defesa de cinco acusados, em processos distintos.

Resumindo, foram cinco absolvições, cada qual mais brilhante. Minha irmã simplesmente levou a metodologia da sala de aula para o Tribunal do Júri e resplandeceu. A fama correu depressa na região e o Juiz Geraldo Bizerra, titular da primeira vara de Maracanaú, intimou-a para fazer a defesa de mais cinco acusados por lá. 

Estive presente ao julgamento do primeiro deles e lhes digo aqui que Milena parecia flutuar, rodeada de alunos, cada qual com um livro aberto, como se fossem estantes vivas, e ela a consultar jurisprudências, normas, conceitos jurídicos e citações doutrinárias com toda elegância enquanto desenvolvia o seu discurso de defesa. 

Em determinado momento, olhei para o Conselho de Sentença e estavam todos absolutamente mesmerizados por ela. Um espetáculo de defesa que depois comentei com mestre Evaldo Ponte, seu orgulhoso mentor. O carretel do tempo se desenlinhou e Milena se faz Juíza Federal do Trabalho. 

A magistratura é uma tarefa árdua. Requer muita abnegação e renúncia. Imaginem cobrar isto de uma mulher que criava suas três filhas e cuidava de seu companheiro. Quando pensava em descansar, tinha que corrigir as provas dos alunos! Mas dava conta de tudo. Era intensa. 

Se estava triste reclamava: “Alú, por que será que as coisas são sempre tão difíceis para mim?” E na alegria, dizia: “Alú, se as coisas não forem difíceis para mim, não serve. Só serve se for com desafio!”.

Assim, minha amiga e irmã trilhou seus caminhos e dirigiu a Escola da Magistratura do Trabalho e foi diretora do Fórum Autran Nunes, e formou as três filhas e se separou do Silvio e disse que não cabia mais ninguém no seu coração e um dia se aposentou e criou seu neto Iuri e curtiu os seus netos Luka e Lina e pronto. Partiu serena e em paz. 

A respiração foi diminuindo, diminuindo e parou naturalmente. Foi muito calmo. Que eu tenha este mesmo privilégio quando chegar a minha hora. Está tudo bem no melhor dos mundos. Maria, Mãe de Deus, olhai por nós agora e na hora da nossa morte!

Aluísio Gurgel do Amaral Júnior


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O BRINDE E A FOTO 






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ANO SABÁTICO

A Decúria Diretiva da ACLJ, por ocasião do seu terceiro Census ad Lustrum, nos seus 15 anos de existência, decidiu fazer ano sabático em 2026. 

Entrará em letargo administrativo e social, para reavaliações – mantendo apenas em atividade o coetus decem, estamento interno denominado Arcádia Alencarina. 

A Arcádia Alencarina realiza reuniões físicas bimestrais, a partir de agora na sua sede própria (Sala Irmãos Ximenes). 

São concílios privativos dos dez “fardonados” da sua Diretoria, com mais quatro convidados – fornecendo apenas imagens para as redes sociais.

Ao final do recesso se deliberará sobre manter ou extinguir a entidade nos moldes tradicionais da quadraginta numerati

sábado, 29 de novembro de 2025

NOTA - Dez Anos da Arcádia Nova Palmaciana (SN)

 DEZ ANOS DA ARCÁDIA
NOVA PALMACIANA
Sousa Nunes*

 

Ao Prof. FERNÃO DE LA ROCHE D’ANDRADE SAMPAIO, DD. Presidente da Arcádia Nova Palmaciana, nos seus 10 anos de gloriosa existência. 

 

Neste ano, em que a Arcádia Nova Palmaciana celebra o decênio de sua fundação – 2015  cumpre-me, como Presidente da Academia Cearense da Língua Portuguesa, e em nome de todos os que fazem esta Casa, render homenagem à Instituição que, desde o seu berço, nasceu sob a inspiração das letras, das artes e do saber, com o selo de permanência e grandeza que só as verdadeiras obras culturais conhecem. 

A Arcádia, que trouxe ao presente o antigo espírito de confrarias literárias, enraizou-se no solo fecundo de Palmácia como seiva renovadora, a exaltar o labor dos seus filhos ilustres, guardando na divisa Palmam qui meruit ferat o destino de premiar com a palma os que souberam dignamente conquistá-la. 

É justo, pois, que se proclame, em alto relevo, o nome de seu fundador, o nosso confrade e amigo Vianney Mesquita, membro ilustre da Academia Cearense da Língua Portuguesa, cuja inteligência criadora e devoção à cultura deram formato e substância a este organismo que hoje se firma como orgulho da terra palmaciana e do Ceará. 

Aos árcades novos, antigos e novatos, os quais, nestes dez anos souberam dignificar a Casa que erigiram, vai o nosso louvor, com a certeza de que o trabalho realizado já se confunde com a história literária e cultural do nosso Estado. 

Que outros decênios venham, fecundos e altivos, para que a Arcádia Nova Palmaciana siga como templo da palavra e laboratório de ideias, honrando o lema que a sustenta e o exemplo dos que a edificaram. 

Abraço o estimado Presidente, o árcade novo Eládio Dionísio, o Prof. Fernão Sampaio, por seu dignificante trabalho ao largo desse tempo, em que mourejou com rara habilidade para o manutenimento e perenidade da Nobre Casa, no Solar dos Sampaios, elevando Palmácia a uma dignidade de locus cultural e científico no País. 

Em nome da Academia Cearense da Língua Portuguesa, deixo à Arcádia Nova Palmaciana a nossa homenagem fraterna e jubilosa, certos de que Palmácia e o Ceará hão de reconhecer sempre, em sua obra, o triunfo da inteligência e o legado perene das letras. 

CRÔNICA - Sobre Almas, Lucros e Outros Detalhes Irrelevantes (VCP)

SOBRE ALMAS,
LUCROS E
OUTROS DETALHES
IRRELEVANTES
Valdester Cavalcante Pinto Jr.*

 

A moral serve sempre a quem não a pratica.

 

Dir-se-ia que nada é mais pitoresco, neste vasto teatro de absurdos humanos, do que assistir a um cirurgião afeito a concertos e consertos de corações infantis – criatura cuja rotina envolve suturar milagres e adiar tragédias — ser arrastado, quase pelo avental, à mesa dos burocratas para justificar seus honorários.



Eis-me, portanto, convocado a participar desse ritual moderno em que gestores, armados de planilhas que veneram como se fossem tábuas da lei, explicam ao pobre cirurgião que a vida tem preço e, curiosamente, não é o deles.


Ah! Como é sublime ver senhores que jamais enfrentaram um coração minúsculo entre os dedos, salvo talvez o das próprias ambições, ditarem serenamente quanto vale em numerário uma madrugada em bloco cirúrgico, um gesto preciso ou uma consciência inquieta pelo destino de uma criança. 


Assim começa esta reflexão sobre a tragicômica condição de quem, na peleja para reparar vidas em miniatura, é intimado a discutir números com quem não possui alma ... nem coração. E, no entanto, é precisamente dessa contradição – entre o gesto salvador e a mão cobradora – que nasce a velha fábula sobre o que significa ser médico.


O trabalho médico, dizem, é mais do que uma profissão. E como ousar discordar?


Há quem considere que lidar diariamente com a morte, a dor e a imprevisibilidade do corpo humano seja apenas um hobby, particularmente mórbido. O médico (pobre criatura!) não é meramente um técnico, mas uma espécie de místico secular, condenado a enfrentar o sofrimento alheio com a mesma serenidade com que um santo arrosta tentações. E, como todo santo útil, é imediatamente transformado pela sociedade em algo bem mais prático: uma ferramenta barata.


Sim, é verdade: a medicina, essa arte nobre, esse sacerdócio moderno, converte-se facilmente naquilo que toda virtude vira quando cai nas mãos certas – uma mercadoria vistosa, empacotada e vendida ao melhor preço. E o médico? Ah, esse felizardo! Uma engrenagem substituível, um objeto que se desgasta e, como tudo o que se gasta, deve ser trocado – de preferência por alguém mais barato.


Não me remeto a um trabalhador comum, desses que permutam horas por moedas e ainda conseguem dormir sem crise existencial. Não. O médico penetra um jogo peculiar, no qual sua alma – termo antiquado, mas conveniente – é mexida, remexida e raspada diariamente. Ele é convidado, com toda a delicadeza de um carrasco gentil, a sacrificar-se por um tal “bem maior”. E quem ousaria negar tão belo ideal? Ninguém menciona (é claro!) que esse sacrifício tem menos de nobre e mais de malandro: constitui estratégia engenhosa para que aceite jornadas absurdas, remunerações indignas e condições de trabalho que fariam corar um feitor do século XVIII.


A medicina deveria ser o triunfo da humanidade sobre a dor; entretanto, como tudo capaz de produzir lucro, torna-se um território governado pela contabilidade e por esses seres iluminados que entendem planilhas como mais importantes do que pessoas. O médico, esse ser outrora autônomo, transforma-se, então, em acessório indispensável da máquina – não muito diferente de uma válvula barata que se troca quando começa a dar trabalho.


E por que não? Parece tão eficiente…


É nesse momento que a tragédia desperta, boceja e se instala confortavelmente. O facultativo cardiopata de crianças descobre haver sido enredado num labirinto de obrigações morais que não servem para proteger ninguém, exceto o sistema que as inventou. A própria vida – somente um detalhe – não merece descanso, tampouco reconhecimento. Ele deve ser compassivo, sempre, e, simultaneamente, indiferente ao fato de que sua compaixão não lhe rende paz, muito menos segurança. Sequer uma noite de sono decente. O sacrifício, outrora virtude, se transmuda em dever obrigatório, como se tivesse assinado um contrato vitalício com a própria exaustão.


E quem, fechado o firo, ganha com tudo isso? Certamente, não o médico. Há, constantemente, porém, aqueles administradores, gestores, autoridades e outros espécimes raros que, vivendo longe do som das máquinas de hospital e do odor da dor humana, conseguem enxergar no cirurgião infantil aquilo que realmente importa: um trabalhador maleável, moldável, explorável – quase um personagem de ficção útil para gerar estatísticas positivas.


O trabalho que deveria ser expressão da autonomia humana torna-se, então, uma cadeia tão bem desenhada que quase parece racional. A medicina, em vez de libertar o médico, o captura. No lugar de transformar dor em transcendência, transmuda vocação em cinzas.


Não. Este problema não se resolve com meia dúzia de reformas cosméticas, dessas que os burocratas proclamam com o entusiasmo de quem acredita que pintar as paredes de um navio afundando o tornará flutuante. Constitui algo mais profundo: da própria identidade do profissional, sequestrada pelo sistema que finge venerá-lo enquanto o consome.


Isto porque o médico deveria ser um criador, não um servo; um agente de si mesmo, não um fantoche movido a escalas impossíveis; mas que extravagância esperar isso! O sistema – essa entidade faminta, tão delicada quanto um leviatã adolescente – precisa desesperadamente da submissão do médico. E este, isolado, esmagado pelas exigências morais que lhe jogaram ao colo, aceita, ao fim, entregar, não apenas, sua força, mas, também, a própria essência.


Para remate da estória, o que resta? Um profissional que, ao tentar salvar o outro, se perde de si mesmo, figura que deveria ser guardiã da vida e finda como vítima de uma lógica que dele arranca a própria humanidade – com recibo e tudo.


Não, entretanto, pois sempre haverá outro cardiopata pronto para ocupar seu lugar.


O sistema penhoradamente agradece…


 


DISCURSO - Retalhos, Reconciliação e Perenidade (BS)

Retalhos,
Reconciliação e
Perenidade
Beto Studart*


Hoje vim almoçar com todos vocês, meus amigos, liderados pelo meu estimado Lúcio Brasileiro, um amigo que construiu comigo uma história de bem-querença invejável. São 55 anos de amizade – uma vida inteira, intercalados por um mal entendido que me deixou profundamente triste. 

Foi, de fato, um luto, um daqueles lutos da alma que não se choram em velório, mas se sentem no coração. 

Mas esse luto passou. 

Porque somos adultos, porque nos queremos bem, porque amizade de verdade não se joga fora. Hoje, definitivamente, as sequelas se apagam. Hoje tudo se transforma em amor, maturidade e perenidade. 

Somos irmãos, irmãos verdadeiros e de eterno, temos a nossa amizade, que é linda. 

O Edilmo Cunha, esse cavalheiro da melhor estirpe, raríssimo de se encontrar, me disse que o Lúcio iria reservar um momento desse encontro para falar de mim – e confesso: isso me deixou muito feliz. Porque, querendo ou não, o tempo está passando rápido… e ninguém sabe o dia de amanhã. 

Estamos todos aqui para construir estradas e erguer pontes. Deixar amigos é parte essencial da nossa missão. 

Construir e deixar legado – esse é o compromisso de uma vida ilibada, vivida com propósito, disciplina e amor pelo que se faz. 

A finitude existe, é verdade, mas ainda está longe. Mesmo assim, a vida é surpreendente, e por isso precisamos estar sempre prontos para partir. 

Não como quem se despede, mas como quem tem pressa – pressa de realizar, de criar e de entregar o que o coração manda. 

Minhas ideias nunca serviram apenas a mim. Elas têm vocação universal: abraçam a cidade, a sociedade, as pessoas. Por isso, hoje, o Lúcio, o Edilmo e todos vocês colocaram mais um tijolo na minha construção de vida. 

Sempre carreguei comigo a humildade, mãe de todas as virtudes. Mas, às vezes, para os pobres de espírito, isso se confunde com vaidade. 

Sim, eu sou vaidoso – e com orgulho! Sou vaidoso porque faço bem feito, faço tudo para todos, faço para servir.

E tudo o que tem caráter universal merece ser celebrado. 

E é aqui que entram também os retalhos que carrego. 

Sou feito de pedaços de cada vida que passa pela minha, retalhos coloridos que vou costurando na alma.Nem sempre bonitos, nem sempre felizes, mas todos essenciais. Em cada encontro, em cada contato, eu cresço um pouco mais. 

Em cada retalho há uma lição, um carinho, uma saudade, uma história. E é assim que a vida se faz: de pedaços de outras gentes que, sem perceber, tornam-se parte da gente também. 

Nunca estaremos prontos – haverá sempre um novo retalho para enriquecer a alma. Por isso, agradeço a cada um de vocês que fazem parte da minha vida e engrandecem minha história com o que deixam em mim. 

Que eu também possa deixar pedaços meus pelos caminhos – pedaços bons, luminosos, úteis – que façam parte da história de vocês. 

E que, de retalho em retalho, possamos nos tornar, um dia, um imenso bordado de nós. 

Fim do dia, batalha vencida. 

Que venham outros natais, para eu abraçar o Lúcio Brasileiro, o Edilmo e todos vocês! 



Proferido no Restaurante Ugarte, do Jornalista Lúcio Brasileiro, na Praia do Cumbuco, por ocasião do tradicional evento "Unidos do Natal", em 28 de novembro de 2025.