quinta-feira, 20 de novembro de 2025

CRÔNICA - Dia da Consciência Negra (RV)

 DIA DA
CONSCIÊNCIA NEGRA
Reginaldo Vasconcelos*

 

Três povos foram convocados pela História para fundarem uma nova nação, o Brasil que conhecemos. 

Os primeiros, os súditos da monarquia mais modesta da Europa, que afinal teve que transferir a Coroa à colônia americana, para fugir à sanha bélica invasora.

Além desses, os povos indígenas, silvícolas encontrados por aqueles na colônia, ainda vivendo primitivamente. 

Por fim, os africanos, escravizados pelos seus inimigos nacionais, objetos de escambo mercadológico com colonizadores das Américas. 

Os europeus de então já detinham algum cabedal científico básico – a fusão de metais para a produção de ferramentas, indústria de tecelagem, boas noções de engenharia e arquitetura, técnicas náuticas rústicas, domínio da pólvora, saberes e fazeres de plantio e pastoreio...

Já os autóctones, esses tinham mais a receber que a oferecer, enquanto os africanos, além de vigorosa mão de obra, trouxeram ao futuro país a grande contribuição da sua rica cultura – nas artes plásticas, na música, na dança, na literatura, na culinária. 

Não fossem eles não teríamos Machado de Assis, nem Lima Barreto, nem Cartola, nem Clementina de Jesus, nem Milton Nascimento, nem Pelé, nem Larissa Januário – para ficar apenas em alguns dos nossos patrícios negros mais clássicos e notórios. 

Dentre muitos outros, inclusive os tantos de nós que temos ascendência africana e indígena em algum grau, oculta na genética miscigenada – não raro tão talentosos e ilustrados.

É a todos esses que a Nação reverencia na data de hoje, consagrada à consciência negra – termo que a antropologia moderna estende a todos os que trazem na cor mais escura da pele a origem honrosa dos colonizados valorosos.

E aproveito para dedicar esta crônica ao saudoso maranhense Gervásio Joaquim Leandro, filho de homem preto e mulher indígena, herói da pátria, combatente na Itália durante a Segunda Grande Guerra, pai da sempiterna companheira que é mãe das minhas duas amadíssimas filhas. 


 

quarta-feira, 19 de novembro de 2025

ARTIGO - Entre a Colonização e a Cosnciência (VCPJ)

ENTRE A COLONIZAÇÃO
E A CONSCIÊNCIA
Valdester Cavalcante Pinto Jr.*

 A consciência é uma âncora, não um farol. Ela é bastante para evitar o naufrágio da inteligência, não para lhe indigitar a rota.

JAIME LUCIANO BALMES Y URPIÁ. (Sacerdote, teólogo e filósofo catalão. Vic, 28.08.1810; 09.07.1848).

Conquanto os comentários agora procedidos sejam motos avessos à minha seara de estudo, permaneço consciente de que, segundo o brocardo popular, “... quem não pode com o pote não pega na rodilha”. 

Não é a mim vedado, entretanto, tornar publicamente manifesta a ideia de que uma língua proferida por contingentes tão numerosos e dispersos, perpassando países e contextos culturais heterogêneos, não é passível de permanecer imune às interferências dos idiomas que já eram vivos antes dos processos colonizatórios.

Toda codificação linguística nasce e se transforma no interior de uma universalidade compartilhada, de sorte a ser nesse locus revelada sua historicidade. Com efeito, compreender a fala é entender o universo no qual aparecemos uns aos outros, e, ainda, perceber o povo que a produz e a sustenta. Isso implica reconhecer que todo código lingual é, na própria estrutura, dialógico  um espaço plural onde múltiplas vozes sociais se confrontam, respondem-se, resistem e se recriam incessantemente. 

Refletir sobre uma conformação linguística é, portanto, realizar um exercício de autonomia. Configura o gesto pelo qual a pessoa procura se libertar das heteronomias impostas, assumindo a responsabilidade de nomear sua mundividência com amparo nas próprias condições históricas. Para tanto, impende compreender o idioma que hoje praticamos, reclama reencontrar sua matriz ancestral e identificar as forças sociais, políticas e violentas que moldaram seu formato corrente. Certas expressões linguageiras vigentes estampam, em larga medida, produtos da violência colonizadora — uma vis imprópria e indecorosa — que alcançou corpos, territórios e culturas, atingindo, torpemente, a própria palavra. 

Apesar desse passado truculento, as línguas que aqui se enraizaram — sobretudo as indígenas — e aquelas trazidas à força pelos nossos nacionais com o subjugo de africanos deixaram marcas indeléveis no vocabulário e em nosso modo de ser. Esses intensivos vestígios não significam somente resquícios, pois expressões vivas de resistência cultural, constitutivos do núcleo mais profundo da formação do “povo novo” brasileiro, resultado da confluência e do conflito entre matrizes civilizatórias distintas. Revelam, ainda, a permanência de uma pluralidade linguística que enriquece a significação e impede a redução da língua a uma perspectiva dominante.

Nesse sentido, as variantes populares do português brasileiro — muitas vezes classificadas como “erros” pela ideologia normativa — são, na verdade, testemunhos da diversidade linguística e da história plural que nos constituem. Desqualificá-las é participar de um decurso de opressão e apagamento simbólico. Remansa em violar a dignidade dos seres como falantes e pensadores, reduzindo-os de fins a meros meios de adequação a um padrão arbitrário. Nada disso deve ser tomado como sinal de desordem. Ao contrário: constitui a vitalidade persistente de um país que se fez plural desde seus primórdios. As expressões vernaculares, frequentemente invisibilizadas, guardam a memória viva de nossa formação mestiça e afirmam a capacidade humana de resistir à heteronomia para recuperar a própria voz.rrostamos hoje, todavia, uma nova modalidade de colonização, marcada pela expansão global da língua anglo-saxã e de seus signos culturais, que se exprimem sob o disfarce da neutralidade. Neologismos e modismos em pobre inglês chegam até nós com tal espontaneidade aparente que, quando percebemos, já os incorporamos ao cotidiano, sem reflexão; e sob diáfana desnecessidade — seja expresso. Por isso, torna-se necessária uma vigilância crítica: distinguir entre o diálogo autêntico entre culturas e a dominação simbólica mascarada de naturalidade. A adoção irrefletida dessas expressões acrescenta mais um capítulo à dilatada história de tentames para moldar o Brasil segundo interesses externos.

Reconhecer essa dinâmica é aceitar que todo o vozerio hegemônico peleje para se mostrar como “a” voz universal, apagando as demais e ameaçando a polifonia que caracteriza a vida linguística. Embaixo dessa pressão internacional, observa-se, também, o recrudescimento do desprezo pelos formatos populares do português, como se sua legitimidade dependesse da proximidade com padrões alheios. Sobra, então, exprimida uma colonização interna que reforça desigualdades sociais e simbólicas. Essa universalização — ilegítima justamente porque não nasce de um consenso racional nem respeita a autonomia dos sujeitos — funda-se no poder econômico e cultural, e viola o princípio de que cada pessoa deve ser tratada como fim em si mesma. Nenhuma norma está habilitada a aspirar à universalidade se não respeitar a dignidade de todos os falantes. 

Em mencionadas circunstâncias, faz-se urgente interrogar as palavras que chegam até nós, examinar as intenções que as acompanham, reconhecer a multiplicidade de vozes que nos compõem e desmascarar os preconceitos que hierarquizam falas e reduzem a complexidade de nossa experiência linguística. Precisamos infirmar a dignidade das línguas e variedades que, à extensão temporal, tentaram silenciar — mas não conseguiram, porquanto a emancipação começa quando devolvemos à própria voz a capacidade de estabelecer diálogo com o mundo, sem a ideação de eco, porém como sujeito: nomeando-o com autenticidade, criticidade, historicidade e plena consciência das inúmeras vozes que povoam nossos multíplices jeitos de falar.

CRÔNICA - Bilhete (VM)

 BILHETE AO PROF. DR.
FULANO DE TAL DOS ANZÓIS
(Há Dez Anos)

 

É melhor cairmos nas garras dos abutres do que nas dos lisonjeadores, pois, no primeiro caso, seremos devorados já mortos; no outro, ainda vivos. 

(ANTÍSTENES, Filósofo grego. Atenas, 445 a.C; 365 a.C.).

 


 

No dia 17 de novembro de 2025, fez dez anos que dirigi a comunicação sequente a um professor universitário de uma Capital Nordestina. 


 Fortaleza, 17 de novembro de 2015.

Prof. Dr. Fulano de Tal dos Anzóis,

Pax et bonum.

 

O senhor não me pediu opinião acerca do seu livro, tampouco me conhece, até a julgar pela maneira como se dirigiu a mim, dizendo “Vianney, aqui é o professor doutor F. de T. dos AA., em vez de falar – “Professor Vianney, aqui se dirige o Prof..., ou “Vianney, aqui é o F”... Desculpe, não sei se preferiu SAIR JÁ POR CIMA. 

Modéstia de lado, como não sou, conforme disse Gilberto Freyre a respeito dos críticos, mero “mata-mosquito da ordem gramatical”, mas uma pessoa avançada em idade, afeita a textos acadêmicos e literários há mais de trinta anos, aduzindo o fato de que já vou publicar o vigésimo livro de minha agricultura, felizmente, ouso lhe dizer, reúno um mínimo de aptidão para emitir juízo, tanto acerca de escritos acadêmicos, quanto literários, com razoável poder opinativo. 

Poucas vezes – adianto – muito poucas, divisei em escritores nordestinos tanta capacidade de prender leitores quando o Senhor, nestes originais transitados pelo meu crivo gramatical e joeira estilística, haja vista o alcance raciocinativo, a graça e a beleza expressos elegantemente em suas peças escriturais em língua-prosa, acolitadas pelo estro poético que emoldura a linha particular da crônica, esse gênero bem peculiar aos escritores nacionais, mormente por meio dos periódicos sabatinos e dominicais e, depois, ajuntadas como livro. 

Há, entretanto, um registo por demais antipático e que não aprecio na sua escrita, já manifesto várias vezes comigo, tampouco gostam disto leitores mais aprestados do que eu.

Este configura o fato de não fazer reserva de sua pessoa como personagem de algumas das crônicas, aparecendo sempre, “para Roma e para o Mundo”, como o professor F., doutor, autor de textos científicos, morubixaba de todos os indígenas brasileiros, isto e aquilo, colhudo do pedaço, derradeira Coca-Cola do Saara, numa manifestação de talvez ingênua e descabida presunção, absolutamente desnecessária – decerto sem se dar conta disso, acredito. 

Seus escritos – tenho disso toda a convicção - pelo que de particular excelem em qualidade, mesmo sem sua assinatura, após conhecidos do consulente, serão divisados como seus em quaisquer lugares e em todas as circunstâncias, fazendo jus à divisa buffoniana segundo a qual Le style c’est l’homme même, de sorte que, reste persuadido, é da mais alteada linha literária. 

Por tal razão – e até para que eu experimente o ensejo de lhe dirigir, no futuro livro, comentários airosos, pois desalinhados não costumo proceder a respeito de obra alguma – sugiro disfarçar sua pessoa em tertius protagonista das estórias, pelo que sobrará mais simpático ao público ledor, removendo a redundância expressa na sua literatura de alevantada essência adida à “necessidade” supérflua de aparecer como paredro da humanidade, espelho da inteligência e referência derradeira de pessoa, haja vista o fato de que Jesus Cristo não precisa ser apresentado a Deus Pai, isto é, o Senhor – Professor – aos seus leitores. 

Abração.

Vianney Mesquita.

 

Pediu desculpas e disse que tomaria um café comigo, para conversarmos, quando viesse a Fortaleza. Não fez isso. E nunca mais submeteu escritos. Terá sido levado pela Covid-19?

CRÔNICA - Salve a Língua Portuguesa (AH)

 SALVE A 
LÍNGUA PORTUGUESA!
Assis Holanda*

 


No transato dia 5 deste mês, festejou-se o teu dia, Língua Portuguesa, última flor do Lácio, inculta e bela! 

Prefiro bela. Tua beleza consiste em servir a várias nações, a mais importante das quais é o Estado brasileiro. 

Este é um País de contrastes, quando falamos És a um tempo esplendor e sepultura. Escolho esplendor. Brilhas por via das metáforas, por intermédio das sinestesias. 

Já não és ouro nativo nem bruta mina, muito menos dormes entre cascalhos. 

Amo-te, não és obscura nem desconhecida mundo afora.

Opto por lira singela e silvo da floresta, pois tua singeleza aparece nas poesias e teu silvo repousa nas consoantes que sibilam. Duas palavras para dizeres o que sentimos da ausência e meiguice. 

Como o Poeta Carioca, sou fã do teu viço agreste. O teu aroma não é mais de virgens selvas. Alguns de teus ingratos filhos as desmatam; porém, a mais sublime de tuas expressões é a voz materna: meu filho!

domingo, 16 de novembro de 2025

ARTIGO - A Volta do Pêndulo (RMR)

 A VOLTA DO PÊNDULO
Rui Martinho Rodrigues*

 

Considerações preliminares 

O que observamos é apreendido, interpretado e assimilado sob a influência de pressupostos, perspectivas, sensibilidade e capacidade de assimilação. A História pode ser vista como um progresso, sob o argumento dos inegáveis avanços da ciência, da tecnologia e das instituições jurídico-políticas. 

A História pode, ainda, entender que a humanidade elabora formas de esconder a decadência continuada. Alega, para tanto, que não convivemos melhor com a natureza, antes pelo contrário; não aperfeiçoamos a convivência com os nossos semelhantes e os conflitos de cada um consigo mesmo não melhoram. 

Instituições de amparo muito protegem, mas geram dependência, transferem a solidariedade pessoal para a impessoalidade fria do Estado e de instituições dirigidas por burocratas que não representam melhoria quando comparados com a proteção das famílias e clãs do passado. A secularização nos tem entregado ao nosso próprio arbítrio, sem o limite da normatividade heterônoma, nos deixa como juízes dos nossos próprios interesses e paixões. 

A vontade geral, proposta por Jean-Jacques Rousseau (1712 – 1778), deveria resolver o caráter arbitrário da autonomia. Seria distinta da vontade de todos, mas então o que seria? Coletiviza a função legiferante, mas as maiorias são ocasionais e instáveis e carecem de fundamento que afasta o arbítrio da vontade geral.

Uma terceira compreensão da História é de um movimento pendular, descrito por Arnold J. Toynbee (1889 – 1975). Uma ordem social incomoda, a insatisfação se acumula, inovações diversas introduzem mudanças e caminhamos para uma nova organização havida como superior à vigente. Mas esta, uma vez estabelecida, tem os seus incômodos.

 

As insatisfações com a realidade anterior, agora vistas de longe, já não parecem tão ruins e voltamos para a velha ordem, mas apenas quanto a um aspecto: mais controle ou mais liberdade. Daí a ideia de sístoles e diástoles, de que falava o general Golbery do Couto e Silva (1911 – 1987). 

Jacques Le Goff (1924 – 2014) distinguia diferentes ritmos das transformações históricas e restringia avanços e recuos nos vários campos da atividade humana. Instituições políticas e jurídicas podem avançar ou recuar enquanto a ciência ou a tecnologia podem sofrer paralizações ou avanços inversamente aos campos anteriormente aludidos.

O movimento dos nossos dias 

Os nossos dias são marcados por transformações rápidas e profundas, afetando todos os campos da atividade humana. Transportes, processos produtivos, meios de comunicação, costumes, relações sociais e instituições são modificadas e a ordem mundial é alterada como quando das metamorfoses que acompanharam a queda de Roma e de Constantinopla. 

Inteligência Artificial, biotecnologia, engenharia genética, comunicações e transportes, parecem eclipsar, com suas inovações, as mudanças institucionais. Garantias fundamentais como as do devido processo legal, de liberdade de consciência e de expressão, segurança jurídica, estabilidade e clareza da norma jurídica e soberania popular como fundamento do sistema democrático passam por graves transformações. 

Após a Guerra Fria a democracia avançou para o leste europeu. A América Latina já não passa por consulados militares e alguns países asiáticos se tornaram democráticos, como Coreia do Sul e Taiwan. O pêndulo pendeu para o lado da liberdade. Além da expansão geográfica da democracia, tivemos o alargamento do seu significado político, jurídico e social. 

As liberdades passaram a abranger a redefinição e a proteção dos valores morais. O direito de não ser escandalizado, de que falava Norberto Bobbio (1909 – 2004) em seus escritos, foi abandonado. Surgiu uma ortodoxia definidora de uma nova axiologia. O uso da linguagem passou a ser vigiado, como na Idade Média, contra heresias com a imposição de novos significados do léxico. Sucede que palavras são tijolos da alvenaria do pensamento. Uma ortodoxia vocabular, que pode apontar “blasfêmias”, configura a volta do pêndulo. 

Na Romênia uma eleição foi anulada pela burocracia de Bruxelas, dando à União Europeia a faculdade de agir conforme um jurista de alto coturno sugeriu: “fazer alguma coisa para evitar a vitória de conservadores”. Na França Marie Le Pen, líder com grande apoio político, foi afastada da disputa eleitoral pelo Judiciário. Nos EUA por pouco Donald Trump não teve a mesma sorte. Na Venezuela Maria Corina Machado, que depois veio a ser laureada como o Prêmio Nobel da Paz, foi impedida de disputar eleição. Em Israel a Corte constitucional mantém acirrada disputa com o primeiro ministro Benjamim Netanyahu. 

O atual recuo das democracias não resulta da intervenção militar ou levantes populares, mas da transformação das instituições jurídico-políticas. O neoconstitucionalismo e a nova Hermenêutica constitucional, com as constituições totais e com a vagueza dos princípios positivados, acabou com a separação das funções do poder do Estado, transformou as cortes constitucionais em casas legislativas e a elas sujeitou os demais poderes. Aristocracia herdeira do Iluminismo, inspirada nos reis filósofos da República de Platão (428 a.C.– 347 a.C.), despreza a vontade popular, as normas emanadas do Legislativo e os titulares legitimamente eleitos para o Poder Executivo. São os “mais iguais” da obra do George Orwell (1903 – 1950). 

Déspotas esclarecidos batem à porta. Os meios de controle ficaram muito poderosos e abrangentes com a revolução digital. Câmaras de reconhecimento fácil, controle das transações financeiras, a moeda digital, rastreamento dos movimentos das pessoas com a geolocalização e o acúmulo de informações pelos meios tecnológicos desequilibraram a balança entre o poder popular e o poder do Estado, melhor dizendo, dos que controlam o Leviatã.

A aliança dos grupos financeiros com os movimentos revolucionários foi estimulada pelo exemplo chinês, n qual o Estado gigante firmou aliança com o capital privado, submetendo-o aos objetivos do poder político. O fascismo já havia feito isso, que o modelo chinês repete e alguns confessam admirar. 

As elites elencadas por Gaetano Mosca (1858 – 1941) como formadas pelos ricos, políticos, guerreiros, sacerdotes e intelectuais destroem a democracia quando não competem entre si ou quando uma das duas destrói ou submete as demais. O estamento burocrático encontrou o caminho da aliança com o grande capital. Sacerdotes e guerreiros ou militares estão neutralizados. Os intelectuais são cooptados ou controlados. Então a volta do pêndulo é uma ameaça iminente.


quinta-feira, 13 de novembro de 2025

CRÔNICA - Comida (SQC)

 COMIDA
Sávio Queiroz Costa*

 

 

Por que gastar dinheiro naquilo
que não é pão, e o seu trabalho
árduo naquilo que não satisfaz?
Escutem, escutem-me, e comam o
que é bom, e a alma de vocês se
deliciará com a mais fina refeição.”
 
(Isaías 55:2 – NVI)

 

 

Vivemos em um mundo em que comer virou um ato de transgressão, quase revolucionário. 

Comer vem, gradativamente, deixando de ser um prazer, um restauro para o corpo e para a alma, um momento de deleite e elevação, transformando-se em uma ditadura. 

Estamos cercados por sucos e sopas “detox”, alimentos funcionais, suplementos alimentares, comida sem sal, livre de “gorduras trans”, sem aditivos ou conservantes, sem glúten, sem lactose, sem colesterol, sem açúcar, sem gosto e sem charme.

Na minha infância, comíamos de tudo – se duvidar, até a cal das paredes. Hoje, temos uma geração de alérgicos, intolerantes a um sem-número de “derivados” e com sérios distúrbios alimentares. 

Fonte: iStock - Credito: SongSpeckels

O homem pré-histórico era onívoro (esse comia mesmo de tudo). Hoje, penso que estamos a um passo de comer o Green Soylent, do clássico da ficção científica “No Mundo de 2020”, de 1973. No filme, estrelado por Charlton Heston, a população pobre de Nova Iorque consome apenas um tablete verde, produzido inicialmente com algas, mas que esconde uma verdade estarrecedora. 

Vivemos a ditadura do brócolis, onde vísceras foram banidas e, em breve, estaremos comendo escondido até uma pequena porção de torresmo. 

As comidas de mercado, notadamente as preparadas com vísceras, fazem parte de uma lista negra. O velho e bom sarapatel, a dobradinha, a buchada, a panelada, o sarrabulho — e até alguns dos mais famosos pratos da culinária francesa, como as Tripes à la mode de Caen e os Tournedos Rossini – integram a lista. 

Aliás, falar de Tournedos Rossini é quase um crime, já que a receita inclui peças de filé-mignon grelhadas, acompanhadas de uma generosa fatia de foie gras, também grelhado.

É que foie gras virou palavrão. A iguaria, resultante de uma cirrose alimentar induzida em patos ou gansos – por meio de um método milenar conhecido como gavage, em que os animais são forçados a se alimentar – é atacada por ecoterroristas e chegou a ser banida, por lei, dos restaurantes de algumas cidades. 

Tenho um certo estranhamento – poderia até dizer, preconceito – com a comida muito verde. É bonita, deve fazer bem, mas nunca me convidem para tomar um suco de couve ou comer uma salada de rúcula e endívias. Sempre acho que quem diz que come porque gosta, ou está mentindo, ou tentando se convencer. 

Por outro lado, sou fã incondicional de queijos – mas dos amarelos e duros. Aqueles com pequenos cristais de sal, curtidos e esquecidos por meses em cavernas escuras, para que revelem seu real sabor. Gosto dos “podres” também, azuis e verdes, com seu bolor característico. 

Mas o que “faz bem” são aqueles brancos e moles, como ricota ou cottage, tidos como os mais “magrinhos” dos queijos. Uma pasta insossa, branca e com um gosto similar ao papel. Abro uma exceção ao notável queijo português “Serra da Estrela”, feito com leite não pasteurizado de ovelhas e, por isso, perseguido pela vigilância sanitária brasileira. 

Níkos Kazantzákis, em seu magistral Zorba, o Grego, nos fala: 

Diz-me o que fazes do que comes e te direi quem és. Existe quem transforme isso em toucinho e em excrementos, outros em trabalho e bom humor; e outros, segundo já ouvi dizer, em Deus.” 

Sendo assim, continuarei minha saga por descobrir novos sabores, em busca do divino, da longa e prazerosa conversa à mesa com amigos – regada a bons pratos e bons vinhos.

terça-feira, 11 de novembro de 2025

CRÔNICA - Coisas de Minha Infância (PN)

COISAS DE
MINHA INFÂNCIA
Pierre Nadie*

  

Não sou coetâneo de Gonçalves Dias. Sou-lhe conterrâneo. No ventre do Maranhão, uma princesa pariu o sertão. E nesse pedaço de chão, Gonçalves Dias nasceu e eu fui concebido.

E foi para lá que, do Ceará, a seca catapultou minha família. Nasci aí e vivi um pedaço de minha meninice, da qual trago recordações indeléveis de tantos bons tempos. 


Ah! Como fora rica a minha tão curta e lesta meninice! Nossa linguagem era rica de uma cultura regional e nossos passatempos eram brincadeiras e jogos, uns nos legara a tradição e outros nós os engendramos. Nossa criatividade não tinha limites. Não havia Internet, nem tecnologia a nos dominar. Éramos livres e autores de nossos arranjos infantis. 

Hábitos, costumes e crenças guardávamos como tesouro de nossa vivência, e acompanhavam gerações numa estrada que parecia nunca ter encruzilhadas. 

Em nossas casas, sentávamos em cadeiras ou tamboretes, as comidas eram feitas em fogareiros ou trempes e os tições ou carvões eram mantidos acesos com o abano. Para o fogo pegar, um pouco de querosene ou maravalha, sobras de raspas de marcenarias e carpintarias. 

Facas e martelos eram produzidos por ferreiros, que liquefaziam metais com fornalha alimentada por seus foles. Nossas roupas eram lavadas nas águas do rio e a areia servia para limpar e lustrar copos e talheres. Pratos e vasilhas eram lavados em jiraus. Necessidades fisiológicas eram atendidas em sentinas e, à noite, tínhamos os urinóis perto de nossas redes. 

No café da manhã quase nunca havia pães, porém, a farinha de puba nunca faltava e era muito apetitosa. Tínhamos beijus, cuscuz de arroz e, às vezes, de milho.  

Não dispúnhamos de garrafa térmica, mas o bule trazia o café quentinho, “pegando fogo”, o suficiente para escaldar a farinha de puba, esgarçando seu sabor agridoce. 

Frutas eram colhidas, normalmente, nos quintais vizinhos ou no meio das ruas, ou na beira do rio. Muitas crendices pendiam de nossas mentes pueris: no escuro tem um bicho, uma alma; bolo quente dá dor de barriga, comer e tomar banho estupora; manga com leite faz mal, antes do banho tem-se de esfriar o corpo, comer banana de noite faz mal, etc. 

Tantas exortações, na verdade, hoje eu sei que tinham todas uma razão de ser, embora em sua maioria fossem mitos. Ou resguardavam de acidentes, ou disciplinavam a vontade, ou “protegiam” os acepipes de tamanho apetite infantil e diversos outros “ou”. 

O medo e o cuidado eram vividos como medo e cuidado, nunca como trauma. E, algumas vezes, conseguíamos driblar algumas recomendações movidas por receios e cautelas parentais.


ARTIGO - Pretenso Verdadeiro (AH)

 PRETENSO
VERDADEIRO
Assis Holanda*

 

 

A mentira é veloz, porém a verdade não tarda em alcançá-la (brocardo italiano: La bugie viaggiano veloci, ma la verità é veloce a raggiungerci). 

 


Quantas vezes nos expressamos como entendidos em determinados assuntos! 

Com vistas a opinar a respeito de qualquer tema, impõe-se que conheçamos, no íntimo, a matéria. Com frequência, entretanto, nos posicionamos acerca de certos conceitos, levados pela emoção e, não raro, por via da irresponsabilidade. 

A fim de que, porém, não expressemos asneiras, ou até disparates, é necessário pesquisar fatos, impende que nos debrucemos sobre provas concretas. 

Escutamos ou lemos falares e escritos vinculados à liberdade de expressão. Tal não significa, porém, que o locutor fale ou escriture tudo atinente a alguém, ao ponto de ferir o caráter da pessoa então sob comentário, sem oferecer provas. 

Isso, pois, é dizer bobices e proceder a inculpações, uma vez que o acusador se encontra movido por emoção e raiva, chegando a contraditar a verdade. Nas rodas de conversa, se alguém é cético e não comprova seus argumentos, inclui-se no rol daqueles que proferem ingenuidades desconexas, exprimem besteiras. 

Fonte: Wikipedia.

Segundo o filósofo estadunidense Harry Gordon Frankfurt (Langhorne-CA, 29.05.1929; Santa Mônica – Pens., 16.07.2023), professor emérito da Universidade de Princeton, “O mentiroso rejeita a autoridade da verdade”. De tal modo, é conhecida a verdade, indo-se, então, à demanda de razões comprobatórias do que se afirma. Por exemplo, alguém descrente em relação à existência de Deus – e que procura arrazoamento com o intento de comprovar seu ponto de vista – opõe-se à exatidão, denega a veracidade. 

Quando, por conseguinte, uma pessoa se dispõe a exprimir algo de que não tem conhecimento, sem hesitação, o ouvinte-leitor-consulente tem a certeza de que o dono do discurso está mentindo... 

E vem o pior: se o leitor é desprovido de boa leitura e interpretação correta das informações, é transportado a acreditar nas bobices e falsidades e debitar ao acusado todos os defeitos e inverdades aludidos pelo mentiroso. Enorme pecado!