sábado, 14 de setembro de 2024

ARTIGO - A Venezuela e Um Estudo de Caso

A VENEZUELA
E UM
ESTUDO DE CASO
Rui Martinho Rodrigues*

 

Considerações preliminares 

Estudo de caso, como metodologia de pesquisa, permite o aprofundamento da investigação ao limitar o campo de observação. Exige clareza quanto aos limites do campo, o fenômeno em exame, objetivos, fontes selecionadas conforme Fábio Appolinário, na obra Dicionário de Metodologia Científica. Enseja cotejo com casos análogos. Um ensaio de poucas linhas não equivale a um relatório de pesquisa. Uma reflexão, porém, inspirada na metodologia citada, é uma tentação. Oscar Wilde (1854 – 1900) dizia que a melhor maneira de enfrentar uma tentação é entregando-se a ela, pensamento válido para algumas escolhas, como refletir, de forma semelhante a um estudo de caso, sobre a situação da Venezuela.

A História Comparada (J. D’Adassunção Barros 1957 – vivo) é uma polifonia com vozes voltadas para as bases sociológicas da compreensão do passado; outras cotejando civilizações; modos de produção; problemas ou totalidades. Estudo de caso serve para comparações. A Venezuela oferece, por comparação, lições da deusa Clio. 

Paul Veyne (1930 – 1922), na obra Como se Escreve a História e Foucault Revoluciona a História, diz que a reflexão Histórica procura discernir a verdade, diversamente do romance, que se preocupa com outros aspectos, como a beleza. Nós acrescentaríamos que a distinção é necessária porque ambas as formas de expressão reúnem, em um relato, ambientes, personagens e enredo. 

O paraíso terrestre 

A verdade, nos processos judiciais, é adjetivada como processual, o que está nos autos. Mas no processo penal, prevalece a verdade real ou dos fatos. Na pesquisa histórica a “verdade processual” tem fundamento nas fontes históricas. Vejamos o que dizem tais fontes sobre a situação da Venezuela, usando os fatos públicos e notórios. 

A ideia de um Estado provedor tornou-se hegemônica. Reafirmada na Venezuela, nos anos de riqueza do petróleo, quando todos tinham direito a tudo sem pagar, entendido tal direito como norma assecuratória. Transporte público; eletricidade; água e esgoto eram gratuitos. 

Inquilinos, por prodigalidade do Leviatã, deixaram de pagar alugueis. Foi um sucesso eleitoral. Os “beneficiados” não deram crédito a Milton Friedman (1912 – 2006), para quem não existe almoço sem uma conta. A cobrança chegou acompanhada do arrependimento. Era tarde, porque é possível votar para entrar nas ditaduras, não para sair delas. 

A queda do preço do petróleo foi responsabilizada pelo desastre, junto com as sanções econômicas impostas pelos EUA. O Irã também tem no petróleo a sua principal fonte de renda, sofreu sanções, mas não teve uma crise econômica tão grave, apesar de ter despesas militares pesadíssimas. 

Outros países exportadores de petróleo não sofreram tanto com a desvalorização do ouro negro. Não sofreram embargos econômicos, mas têm orçamentos de defesa onerosos e não tiveram colapso econômico. A Venezuela colapsou. A fome expulsou mais de vinte por cento da população do país. A criminalidade e a violência do Estado contribuíram para a diáspora. Novamente lembrando Friedman, quem troca a liberdade pela promessa de bem-estar perde as duas coisas. 

A conquista do Estado começou| pelo domínio das ideias. A passividade dos professores – e o despreparo – permitiu às gerações que chegavam substituir o ensino por proselitismo. Os empresários, por sua vez, não entenderam que a propaganda ideológica fantasiada de proteção dos pobres levaria ao totalitarismo. 

A miséria e opressão do povo tornou-se irrelevante para os poderosos. A cegueira dos paradigmas, de que fala Thomas Kuhn (1922 – 1996), na obra A estrutura das revoluções científicas, explica, em parte, a rendição ideológica das elites e do povo. 

O desejo de conquistar audiência tornou atraente dizer que todos os direitos são garantias; o desfrute dos bens e serviços não precisa de contrapartida; o esforço e a superação das dificuldades são desnecessários. Não mencionar produtividade, custos e recursos limitados e reserva do possível são omissões obrigatórias. 

A irrelevância do povo 

Amigos e parentes dos poderosos foram alcançados pela tragédia. Mas isso não sensibilizou a nomenklatura. Não se trata só dos altos dirigentes. O Estado profundo, formado por escribas, empresários, políticos, militares do oficialato superior e do generalato; intelectuais; serviços de inteligência e artistas influenciam e até governam agindo nas sombras. 

Hegemonia ideológica é ortodoxia imposta pela guerra cultural, conforme Antonio Gramsci (1891 – 1937) na obra Os intelectuais e a organização da cultura; Louis Althusser (1918 – 1990), na obra Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado; e a vasta produção da Escola de Frankfurt. A guerra cultural até há pouco era travada por um lado só. Basta examinar produção intelectual e a indústria cultural. As universidades do mundo ocidental foram, em sua maioria, dominadas. 

O controle eleitoral 

O processo eleitoral é exercido pelo Conselho Nacional Eleitoral, que é dos cinco poderes independentes do país, juntamente com o Judiciário. O povo foi desarmado e ficou indefeso diante dos “coletivos”, facções armadas, encarregadas da repressão sangrenta. Esta é a situação na Venezuela. 

O narcotráfico violento e rico faz parte do jogo. As promoções políticas dos militares e os negócios lucrativos entregues a eles são muralhas da ditadura venezuelana. A brecha na panóplia foi o voto auditável. Ato político, o voto deve ser secreto. A sua apuração, porém, é um ato administrativo submetido ao princípio da publicidade. A ditadura, não obstante, não teve o cuidado de considerar tal coisa como antidemocrática. Não foi diligente.

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