A VENEZUELA
E UM
ESTUDO DE CASO
Rui Martinho Rodrigues*
Considerações preliminares
Estudo de caso, como metodologia de pesquisa,
permite o aprofundamento da investigação ao limitar o campo de observação.
Exige clareza quanto aos limites do campo, o fenômeno em exame, objetivos,
fontes selecionadas conforme Fábio Appolinário, na obra Dicionário de
Metodologia Científica. Enseja cotejo com casos análogos. Um ensaio de
poucas linhas não equivale a um relatório de pesquisa. Uma reflexão, porém,
inspirada na metodologia citada, é uma tentação. Oscar Wilde (1854 – 1900) dizia
que a melhor maneira de enfrentar uma tentação é entregando-se a ela,
pensamento válido para algumas escolhas, como refletir, de forma semelhante a
um estudo de caso, sobre a situação da Venezuela.
A História Comparada (J. D’Adassunção Barros 1957 – vivo) é uma polifonia com vozes voltadas para as bases sociológicas da
compreensão do passado; outras cotejando civilizações; modos de produção;
problemas ou totalidades. Estudo de caso serve para comparações. A Venezuela
oferece, por comparação, lições da deusa Clio.
Paul Veyne (1930 – 1922), na
obra Como se Escreve a História e Foucault Revoluciona a História, diz
que a reflexão Histórica procura discernir a verdade, diversamente do romance,
que se preocupa com outros aspectos, como a beleza. Nós acrescentaríamos que a
distinção é necessária porque ambas as formas de expressão reúnem, em um relato,
ambientes, personagens e enredo.
O paraíso terrestre
A verdade, nos processos judiciais, é
adjetivada como processual, o que está nos autos. Mas no processo penal, prevalece
a verdade real ou dos fatos. Na pesquisa histórica a “verdade processual” tem
fundamento nas fontes históricas. Vejamos o que dizem tais fontes sobre a
situação da Venezuela, usando os fatos públicos e notórios.
A ideia de um Estado provedor tornou-se
hegemônica. Reafirmada na Venezuela, nos anos de riqueza do petróleo, quando
todos tinham direito a tudo sem pagar, entendido tal direito como norma
assecuratória. Transporte público; eletricidade; água e esgoto eram gratuitos.
Inquilinos, por prodigalidade do Leviatã,
deixaram de pagar alugueis. Foi um sucesso eleitoral. Os “beneficiados” não deram
crédito a Milton Friedman (1912 – 2006), para quem não existe almoço sem uma
conta. A cobrança chegou acompanhada do arrependimento. Era tarde, porque é possível
votar para entrar nas ditaduras, não para sair delas.
A queda do preço do petróleo foi
responsabilizada pelo desastre, junto com as sanções econômicas impostas pelos
EUA. O Irã também tem no petróleo a sua principal fonte de renda, sofreu
sanções, mas não teve uma crise econômica tão grave, apesar de ter despesas
militares pesadíssimas.
Outros países exportadores de petróleo não
sofreram tanto com a desvalorização do ouro negro. Não sofreram embargos
econômicos, mas têm orçamentos de defesa onerosos e não tiveram colapso
econômico. A Venezuela colapsou. A fome expulsou mais de vinte por cento da
população do país. A criminalidade e a violência do Estado contribuíram para a
diáspora. Novamente lembrando Friedman, quem troca a liberdade pela promessa de
bem-estar perde as duas coisas.
A conquista do Estado começou| pelo domínio
das ideias. A passividade dos professores – e o despreparo – permitiu às
gerações que chegavam substituir o ensino por proselitismo. Os empresários, por
sua vez, não entenderam que a propaganda ideológica fantasiada de proteção dos
pobres levaria ao totalitarismo.
A miséria e opressão do povo tornou-se
irrelevante para os poderosos. A cegueira dos paradigmas, de que fala Thomas Kuhn
(1922 – 1996), na obra A estrutura das revoluções científicas, explica,
em parte, a rendição ideológica das elites e do povo.
O desejo de conquistar audiência tornou
atraente dizer que todos os direitos são garantias; o desfrute dos bens e
serviços não precisa de contrapartida; o esforço e a superação das dificuldades
são desnecessários. Não mencionar produtividade, custos e recursos limitados e
reserva do possível são omissões obrigatórias.
A irrelevância do povo
Amigos e parentes dos poderosos foram
alcançados pela tragédia. Mas isso não sensibilizou a nomenklatura. Não se
trata só dos altos dirigentes. O Estado profundo, formado por escribas,
empresários, políticos, militares do oficialato superior e do generalato;
intelectuais; serviços de inteligência e artistas influenciam e até governam
agindo nas sombras.
Hegemonia ideológica é ortodoxia imposta pela guerra
cultural, conforme Antonio Gramsci (1891 – 1937) na obra Os intelectuais e a
organização da cultura; Louis Althusser (1918 – 1990), na obra Ideologia
e aparelhos ideológicos de Estado; e a vasta produção da Escola de
Frankfurt. A guerra cultural até há pouco era travada por um lado só. Basta
examinar produção intelectual e a indústria cultural. As universidades do mundo
ocidental foram, em sua maioria, dominadas.
O controle eleitoral
O processo eleitoral é exercido pelo Conselho
Nacional Eleitoral, que é dos cinco poderes independentes do país, juntamente
com o Judiciário. O povo foi desarmado e ficou indefeso diante dos “coletivos”,
facções armadas, encarregadas da repressão sangrenta. Esta é a situação na
Venezuela.
O narcotráfico violento e rico faz parte do
jogo. As promoções políticas dos militares e os negócios lucrativos entregues a
eles são muralhas da ditadura venezuelana. A brecha na panóplia foi o voto
auditável. Ato político, o voto deve ser secreto. A sua apuração, porém, é um
ato administrativo submetido ao princípio da publicidade. A ditadura, não
obstante, não teve o cuidado de considerar tal coisa como antidemocrática. Não
foi diligente.