sábado, 18 de maio de 2024

CRÔNICA - Treze Anos da ACLJ (MQB)

 

Treze anos da ACLJ.

Uma crônica.

Manoela Queiroz Bacelar*

 

Cheguei antes das 19h, como combinado. Sapatos pretos de salto alto. Pelerine. Uma ajuda providencial e simpática para o laço do torçal amarelo arrumado ainda no foyer.



As pessoas se acomodavam no auditório do Palácio da Luz que, naquela noite, era a casa dos treze anos. Por algumas horas, a majestosa e vetusta edificação deixava-se rejuvenescer. Cal, pedra, madeira, tijolo, livros e memórias, tudo restou mais incauto, mais inocente, mais leve.

Ao centro do salão, bem à frente da assistência, uma mesa menor com três cadeiras, três nomes e três velas para acomodar três mulheres. O fogo parecia atraente. Sentei-me de frente para minha chama, ao lado de uma bela Graça, que seria mais tarde homenageada. Nossa terceira companheira seria Patriciana, cuja ausência comprovava o quanto as mulheres somos demandadas. 

A poucos metros da mesa feminina, uma mesa maior, mais alta, mais solene, en face, como se diz no balé. Uma mesa masculina, composta por sete homens com o presidente Reginaldo ao centro, iniciou os trabalhos de uma pauta animada a ser cumprida pelos acadêmicos. Acompanhada por familiares, amigos e convidados a noite teve direito a clarinada com arauto, hino, música, banda em uniforme verde-oliva, fotografias, um telão com projeção audiovisual, vinho do Porto e um coquetel. 

A cerimônia foi conduzida pelo confrade Vicente e sua voz bem colocada. Antes das atividades propriamente ditas, um silêncio fraterno pelos irmãos do Sul. Assim acontecia a celebração de treze anos de criação da Academia Cearense de Literatura e Jornalismo – ACLJ, A palavra foi dada ao confrade Rui que discorreu sobre a delícia do contraditório. Inaugurado na Grécia antiga, o modelo epistemológico do pensamento teorético foge aos achismos tão protagonizados no agora.

Séculos mais tarde, a estrutura serviu de base para o método científico e para a elaboração do pensamento dialético (Hegel e Marx). Tal como uma vigilância das opiniões, que se sustenta na coreografia do diálogo, a dinâmica afasta-se dos solilóquios herméticos e, portanto, estéreis. No fundo é uma com-versa que se coloca aberta, reflexiva, cheia de escuta atenta e se desloca em contrapontos apresentados por interlocutores respeitosos que argumentam no lugar de se digladiarem.

 

Esse modelo cognitivo busca a tentativa de se construir um conhecimento, com raízes no terreno da argumentação, da retórica e do discurso contraditório. Constitui a estrutura cognitiva dominante nos agrupamentos de tradição eurocêntrica, ao lado de outros sistemas válidos e legítimos do pensamento humano que forjaram a linguagem em grupos sociais de diversas tradições, como, por exemplo, os da oralidade indígena brasileira.

 

Escutava com atenção as palavras do mestre quando me indaguei sobre a beleza que seria o encontro das diversas formas do pensar humano e do benefício que teríamos enquanto espécie no âmbito das nossas habilidades relacionais, sem falar na potencialização do conhecimento per se produzido pelos diferentes saberes e fazeres.

 

Passada minha digressão, ative-me à oração do confrade Reginaldo que se lastimou dos extremismos que caracterizam a oposição pueril de opiniões erguidas em monólogos muita vez intransigentes. Ao mesmo tempo, ressaltou o papel essencial da ACLJ, concebida como uma arena suíça, neutra, livre da paixão às posições, receptiva às discussões dialógicas, saudáveis e, por isso, prazerosas. Ele ratificou a fala de seu antecessor, e, no meio da minha audição, anotei uma palavra que nunca escrevi: faina. Vou adotar.

 

Na sequência da pauta, um momento de memória e afeto. Foram homenageados três confrades que se transportaram para o infinito. Um engenheiro, um médico, um jornalista. Cássio, José Maria e Wilson, este último é a razão pela qual escrevo esta crônica, pois fui convidada a participar da ACLJ por sua intenção.

 

As falas breves e emocionadas dos confrades Marcos André, Vicente e Fernando César encheram o salão da saudade que sucedeu o deleite da apreciação de um vídeo produzido por Wilson, num passado recente, sobre os nossos artistas cearenses Fausto Nilo, Fagner, Ednardo e Belchior.

 

O ato subsequente foi de júbilo quando tomou posse à cadeira de número 31, o novo confrade Geraldo. Num discurso passional, demonstrou seu grande amor pela esposa e pela filha. Reverenciou seus antepassados e nos revelou a incrível história de seu homônimo pai, que sobreviveu a um naufrágio.

Obedecendo ao rito de concluir atividades pendentes de assembleias passadas, a confreira Graça recebeu das mãos do capitão de fragata, Daniel Rocha, a comenda que leva o nome de Rachel de Queiroz, a filha mais amada do Quixadá, a primeira mulher imortalizada na Academia Brasileira de Letras, também conhecida como Rita de Queluz. De onde Rachel teria inventado esse mágico pseudônimo?

 

Por fim, a entrega da comenda chanceler Airton Queiroz a José Roberto Nogueira foi adiada para uma futura oportunidade em razão de sua ausência.

 

A sessão foi encerrada pelo confrade Lúcio e a noite findou com o tradicional brindecom vinho do Porto, retratos para a posteridade, abraços, sorrisos, restinhos de conversas, despedidas, lembranças à família e até a próxima. Para minha satisfação pessoal, pude ter dois dedos de prosa com o confrade Rui sobre as circularidades do pensamento. Lembrei da moçambicana Paulina Chiziane, primeira mulher africana a receber o prêmio Camões. Ela nos provoca: “Afinal, o mundo é redondo... e que é o remoto numa bola redonda?”.
 

Na minha memória, a trilha sonora da noite fez-se vívida. A gravação instrumental da música Oração ao Tempo, do Caetano Veloso, foi ouvida em algum momento inicial da celebração. Os treze anos da ACLJ marcam o tempo, um tempo, qual tempo? Enfeitiçada pela melodia circular, não consegui esquivar-me da poesia, da letra... as palavras, essas danadas que nos escapam; sempre elas:

 

(...) E quando eu tiver saído o teu círculo

Tempo, tempo, tempo, tempo

Não serei nem terás sido

Tempo, tempo, tempo, tempo (...)


 

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