LUZ DO DIA
Reginaldo
Vasconcelos*
LUZ DO DIA
Reginaldo
Vasconcelos*
A primeira providência da manhã na casa sertaneja é fazer fogo na cozinha. E a fumaça que se evola da lenha em combustão incensa o mundo com a notícia de que há por perto pelo menos uma deusa do lar, velando pelo estômago da família.
Café torrado em casa, leite fresco, cuscuz, ovo pé-duro, queijo de coalho frito, e os pães do Luiz Cirilo, que incorporavam no sabor, além da milenar saga do trigo e da secular tradição dos padeiros portugueses, a rusticidade dos masseiros e dos fornos do sertão.
Mas principalmente aquele pão sabia à epopeia diária do gigante negro velho, pés e mãos enormes, a palmilhar as estradas poeirentas, desde muito cedo, para distribuir o alimento bíblico.
Mais tarde o odor de resina ardente e crepitante que trescala pela casa somar-se-á aos eflúvios culinários que logo ensejarão a solenidade cotidiana do almoço. O pai não espera muito e exige a presença dos meninos, que têm que interromper a vadiação.
Encerrar a pescaria, ou o banho de açude; suspender a moldagem de barro, pendurar as espingardas, amarrar os cavalos – parar, enfim, o que quer que fizessem, e vir em casa para participar da refeição, o principal repasto do dia.
Todos em volta da mesa, com o chefe da casa à cabeceira, para a degustação de um fumegante prato com “arroz de atoleiro”, feijão de corda, carne seca frita, úbere assado, farofa de torresmo, galinha à cabidela, miúdos de boi, e outros quejandos.
A melhor sobremesa é a “espécie de gergelim”, ou o chouriço, este feito com sangue e gordura de porco, rapadura, farinha de mandioca, cravo, erva doce, pimenta do reino – louca alquimia medieval dominada apenas por um velho morador da fazenda. O resultado é uma pomada adiposa quase negra, que provoca sobre a língua uma guerra santa do açúcar com a pimenta, enquanto promove no espírito a estranha comunhão entre o sublime e o escatológico.
NOITES NEGRAS
A noite no sertão não se preenche com o binômio alternativo televisão ou libação. Ela não vem cheia de luz e cor; não enche as casas de notícias e novelas, nem os bares de música e de alegria. No sertão daquele tempo a noite é coisa séria, longa e negra, momento de cautela e retração. No seu bojo as doenças são mais graves, as dores mais agudas, e as distâncias são maiores.
Os atoleiros são profundos e os punhais não são visíveis na mão dos inimigos. É quando as cobras mais incidem, e costumam aparecer almas do outro mundo, no que todos acreditam – mulheres, crianças e velhos – e mesmo os intimoratos não desmentem. A noite no sertão é escura e uterina.
Alguns eventos sociais, contudo, desafiam a escuridão, que até os favorece. Por exemplo, os forrós à luz da lamparina e as debulhas de feijão ou milho. Famílias reunidas num terreiro em torno da tulha, a prosear, enquanto as mãos trabalham freneticamente, desprendendo os grãos de suas vagens ou sabugos.
As rodas de baralho e as brincadeiras juvenis, a passagem do anel, as adivinhações, e mesmo os jogos mais maliciosos: “Meu lado direito está desocupado! Quem ocupa?”. São esses os grande momentos de recreio e de namoro.
Alguém aí entre os leitores sabe o que é exatamente uma lamparina? De como o lume que arde no pavio de algodão forma sobre este bolinhas de carbono incandescentes, e desprende uma linha de fumo que enegrece o que se sobrepõe a ela ou aproxima?
De como cheira a querosene em combustão uma lamparina, portada pela asa entre três dedos da mão, ou posta sobre a mesa, para vencer a noite com a sua pouca luz, bruxuleante e encarnada? A lamparina, por si só, é um marco indelével na experiência sensitiva de quem com ela conviveu.
Claro que para os meninos as viagens de ida e volta, que ocorriam duas vezes por ano, eram em si os pontos altos da aventura sertaneja, portanto momentos mágicos da nossa infância dourada.
Talvez fosse um pouco assim também para os adultos envolvidos, na maioria muito jovens ainda, casais em torno dos 35 anos. Afinal a infância sobrevive latente no indivíduo, não obstante sufocada sob os pânicos e os anseios da maturidade, mas sempre refluindo nas paixões lúdicas do esporte, na puerilidade dos hobbys, na euforia das festas, no ridículo do amor platônico, nas peraltices de sexo, e até na inconsequência e nos debiques do etilismo.
Entretanto, para nós a estrada era mais longa e isenta de qualquer cansaço e receio. Todo e qualquer contratempo era bem-vindo, fosse chuva e lama, ou sol e poeira, enguiço no carro ou prego no pneu, fosse noite alta ou pino do dia. E não nos ocorria a possibilidade de algum evento mais funesto. Quem estava com os pais estava com Deus – pelo menos assim então nos parecia, o que nunca, na prática, no nosso caso, jamais foi desmentido.
Tudo começava com uma insônia voluntária, logo vencida por um sono agitado, povoado de sonhos coloridos, confusos e nervosos: preparativos de viagem sem fim, angústia temporal, algum transporte vai partir e alguém perde o horário, depois, estrada longa e cobreante, cavalgadas talvez, revoada de pássaros, pessoas indo, gente chamando...
E, finalmente, a volta súbita à realidade, que não é menos excitante. Alguém nos acorda, chegou a hora, é sempre madrugada, há brisa e frialdade, há silêncio no mundo, na casa há luz e tudo é agitação.
A saída ainda é noturna, de modo que as paisagens são mortiças. De Jeep ou de ônibus, de trem ou camionete, o importante é acomodar e partir. Se possível algum cochilo, depois o espetáculo boreal, um sol dourado saindo do horizonte, ora adiante, ora do lado, cheio de luz e de esperança, com seu hálito matinal.
O dia transcorre, o ronco do motor se impregna nas pessoas, o motorista é sempre o comandante do espetáculo, a quem toda a reverência é devida, seja ele profissional ou da família. As paradas logísticas, a princípio ansiadas, dependem dele. Depois é chegar e chegar. Não interessa perder tempo. Então é nos sinais da chegada que reside a diferença.
Chegando ao sertão, as oiticicas isoladas, os vales jaguaribanos, a amplitude e os horizontes, as serras jurássicas altaneiras, os espelhos d’água, as casas simples, as fazendas sorridentes, o sotaque dos caboclos. Aqui o tempo é a granel e é precioso.
Retornando à cidade, primeiro os terreiros brancos de Russas, os cajueiros de Pacajus, o perfume das mangueiras floridas, o cheiro do mar, os carnaubais infinitos, agora o asfalto, os outdoors de propaganda e boas-vindas, os sítios, galpões de empresas, as casas, os prédios, as ruas, a civilização, a contagem dos relógios: vai começar tudo de novo.
Do Livro "O Passado Não Passa" – 2005
Um cronista como poucos. Merece um lugar ao lado de Nelson Rodrigues, Rubem Braga e alguns outros na galeria dos melhores na arte de narrar e descrever o cotidiano. Sou suspeito, pois de longa data lhe admiro. Tenho dito!
ResponderExcluirMaravilha de texto, Confrade. Amanhecer lendo suas crônicas sertanejas nos faz voltar aos tempos de criança no interior.
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