segunda-feira, 7 de abril de 2025

SONETO EM RIMAS E LÍNGUA-PROSA - Bateu Saudade! (VM)

 BATEU SAUDADE!
Vianney Mesquita*
(Jovem Krhónos)

 

(Para os árcades novos Virgínia Tétis, Otávio Zeus e Iolanda Athena – Maria Virgínia Pinheiro Campos, José Hermínio Muniz e Iolanda Campelo de Andrade Sampaio).

 

É sombria a saudade na velhice, porque as esperanças já são muito débeis para lhe darem luz.

 

[JÚLIO DINIS, pseudônimo de Joaquim Guilherme Nunes Coelho, médico, escritor e professor português]. (Porto, 14.11.1839; 12.12.1871). 

A História em Língua-Prosa

O extraordinário - e quase menino - poeta Júlio Dinis, o qual viveu apenas 32 anos, mesmo assim, reporta-se à saudade na velhice, como se a houvesse experimentado, e, com insofismável verdade, vincula as recordações na qualidade de precárias a fim de que tenham sentido.

Aqui, bem que eu seria propício a conceder razão ao poeta satírico e religioso irlandês Jonathan Swift (1667-1745), para quem, [...] sendo mentirosos profissionais, os poetas devem ter excelente memória. Assim não procedo, haja vista o fato de que ele, também, era poeta. E, de minha vez, não me arvoro de tal atributo, conquanto já tenha contabilizado quase duas vezes e meia a quadra temporal experimentada pelo Vate Portuense.       

Neste passo, no fazimento deste soneto decassílabo português, evidentemente, são passíveis de revelação, por ser curta a dimensão de produtos literários dessa natureza, somente algumas passagens, as mais importantes acumuladas na minha retentiva, em tempo já tão pretérito – os anos mil e novecentos e cinquenta.       

Daí por que confesso as mal aparatadas linhas, insertas no íntimo do coração, como graças, mercês e provimento no âmbito da boa história, quando eu era miúdo na também minguada Palmácia do mencionado e recuado período – porção a englobar o primeiro quarteto. 

Na quadra sequente, faço menção aos leilões da Festa de São Francisco, cujo termo era o dia 4 de outubro, dia do Santo Assisense, contando com muitas prendas, sendo, porém, as mais destacadas as cervejas – nesse tempo, esfriadas nos pés dos potes, raramente em geladeiras – e as galinhas assadas, recolhidas como doações por pessoas em comissão em toda a comunidade palmaciana. 

Havia as “pescarias”, com anzóis sacadores de ganchos enterrados com o papelzinho onde estava escrito o mimo a ser recebido pelo “pescador”. 

Pertinho, ficava a ola do “Zé Bia”, onde se rolava, cadeira acima e abaixo, o que assegurava a fixação de assaduras, intertrigens que doíam por semanas, até descascarem por completo, na retaguarda dos meninos e meninas. Aliás, estas pouco rodavam de ola..., mas frequentavam a banca da Dona Rita Pinheiro, servidas pelo Dezinho. Quem se lembra? 

Era satisfação imensa, muito amanho, verdadeira arrumação... 

Reminiscência viva, nítida, vem da entrega do almoço dos trabalhadores do roçado. Nalgumas ocasiões, fui deixar essa refeição, num só recipiente para dois, três, até cinco operários, dentro de um alguidar, composto por feijão, arroz (ou baião-de-dois), farinha e jerimum. A chamada “mistura”, quase sempre, descansava no torresmo, decerto, o mais valioso! ... Não tinha carne. A sobremesa – esta, sim, era vasta, composta de rapadura. 

Aqui fica fechado o primeiro terço do poema. 

Quando menino, eu acompanhava os padres da Paróquia de Palmácia, montado em burros choutões (o cavalo bralhador era para o sacerdote – é claro!). Era andar muito devagar, galope ou chouto, a fim de acompanhar o vigário e seu guia, até a capela (Gado dos Ferros, Canadá, Tanques e Jubaia). Isto significava a hospedagem de chagas purulentas, por nós chamadas “tapiocas”, as quais, depois de secas, mais doíam e chamavam febres elevadas dignas de atenção dos pais, que, muitas vezes, por terem muitos filhos de quem cuidar, nem tomavam conhecimento do caso... Lá em casa eram (aliás, ainda são) somente doze...      

Em adição às assaduras, ocorriam os chamados tenesmos, espasmos esfinctéricos, com vontade de expelir fez ou urina. Quando se conseguia fazer qualquer dessas manobras, era uma circunstância dolorosíssima.

Eis, pois, o fecho dessa medida em Arte Maior agora levada a efeito: eu parava a fim de evacuar, depositava o pesado bacio no chão e, empós a lastimosa operação, embora sem muita fome (pois cortava e chupava cana de quem quer que fosse, no caminho), desamarrava os panos do alguidar e subtraía alguns componentes da “mistura” – os torresmos – como se fosse uma paga justa pelos serviços prestados. 

Eximia mnemosyne!

Ótima recordação!


Bateu Saudade!

Movem-se aí desengonçadas linhas,
No imo cardial onde as apanho,
Gratas recordações das graças minhas
Quando menino, em meu lugar de antanho.
 
Os leilões, com cervejas e galinhas,
Das franciscanas festas, feliz ganho,
Palmacianas “pescarias”, bem vizinhas
Da ola do Zé Bias... Quanto amanho!
 
Lembro-me bem do almoço, dos manjares
Que no roçado ia deixar – eu mesmo –
Levando na cabeça os alguidares.
 
Muita vez, sob fome e com tenesmo,
Parava em razão dos mal-estares
E da bacia roubava torresmo.



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