domingo, 7 de novembro de 2021

ARTIGO - Os Ciclos da Razão (RMR)

 OS CICLOS DA RAZÃO
Rui Martinho Rodrigues* 

 

Pensar é inerente ao homem. A Filosofia, como sistematização teorética, formando narrativas complexas e interligando significados, foi criada ou aperfeiçoada pelos gregos. É um caminho diverso da Filosofia de outros povos, eminentemente prática. Egípcios usavam a geometria na demarcação de terras e na engenharia. Euclides, grego, pensou as relações entre as formas de modo abstrato, desligando-as do uso unicamente prático. 

O processo decisório dos negócios da polis foi objeto de cogitação teorética dos helenos. Felicidade, liberdade, igualdade, segurança jurídica, participação, formas de governo tornaram-se objeto de teorias baseadas na razão. O estudo de objetos limitados e sob vigilância epistemológica (aos cuidados da crítica) produziu conhecimentos preciosos, ainda válidos, principalmente quanto as questões levantadas.

Os serviços relevantes e indispensáveis da crítica terminaram por abalar as referências teóricas e metodológicas, substituídas pelo relativismo laxista. O cosmopolitismo potencializou o relativismo axiológico, destacando a diversidade de valores em diferentes culturas. 

Xenófanes (570 a.C. – 475 a.C.), criticando o antropomorfismo dos deuses, disse que se os animais tivessem a aptidão de pintar retratariam os deuses em forma de animais. Expressou o antropocentrismo e o relativismo cultural, ainda que metaforicamente, como hipótese não falsificável, imaginação alcançável pelo verificacionismo. Os sofistas acabaram vencendo.
 

Os romanos observavam o rigor metódico na engenharia e no Direito, conhecimentos práticos ou aplicados. A decadência de Roma teve múltiplos fatores em sua gênese. Entre eles a perda de referências valorativas que levou às crises políticas, sociais e econômicas. O relativismo que Karl Popper (1902 – 1994) qualifica como laxista esteve relacionado com a decadência dos gregos e dos romanos. 

A Idade Média restabeleceu referências. Muitos aspectos da contenção medieval do relativismo foram profundamente lamentáveis. O movimento histórico pendular, de Arnold Toynbee (1889 – 1975), transformou a desorientação por falta de parâmetros em um sufocante dogmatismo que restringiu consciências e limitou as possibilidades de inovação. 

O Renascimento, as reformas religiosas e a Revolução científica do Séc. XVII trouxeram de volta alguma liberdade de pensamento e reabilitaram a razão e a crítica. Logo a ciência foi contaminada pelo dogmatismo, nos termos dos obstáculos epistemológicos de Gaston Bachelard (1864 – 1962) e da cegueira dos paradigmas de Thomas Kuhn (1922 – 1996). 

O utopismo travestido de ciência logo tropeçaria nos fatos. A crítica preciosa como falseamento das teorias resvalaria para a licenciosidade teórica e metodológica, alternada com o niilismo do relativismo radical e da dialética negativa. A razão parece ter ciclos de grande fertilidade e prestígio, sucedido por declínio da capacidade produtiva e perda de credibilidade, produzindo desorientação por falta de referências claras e discerníveis. 

Hoje vivemos um momento de declínio da razão, perda de referências cognitivas e axiológicas. A democracia parece atravessar um momento de decadência conforme classificado por Aristóteles (384 a. C. – 322 a.C.) como demagogia. A sobrecarga de demandas, na visão de Norberto Bobbio (1909 – 2004), ameaça o regime das liberdades e da segurança jurídica. A crise da razão figura entre os fatores que ameaçam a convivência social em nossos dias. A revanche do sagrado (Kolakowski, 1927 – 2009) inclusive com religiões civis, trará uma nova idade média?

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