sexta-feira, 18 de outubro de 2024

CRÔNICA - Despedida (AV)

 Despedida
Adriano Vasconcelos*

 

Ah, a Suyanne... bem a seu modo, discreto e delicado, ela conseguiu uma forma gentil de despedir-se. Foi-se aos poucos, para que fôssemos nos acostumando com a ideia, amortecendo assim a seca pancada da temporária separação. 

Nossos destinos se cruzaram em 1992, em pleno período momino. “E a vida, tão generosa comigo, veio de amigo a amigo, me apresentar a você”, exatamente como na maviosa cantiga do Jorge Vercilo. 

Tornamo-nos um, com os mesmos gostos, preferências, amizades, famílias, e principalmente o modo de ver e curtir a vida, cultivando amigos mundo a fora. A mesma estética. Quem conheceu sabe do que estou falando.


Por mais de 32 anos nos ocupamos em ser felizes, com festas, viagens, amigos, sem, entretanto, negligenciarmos a ajuda ao próximo e às indefesas criaturinhas de quatro patas. Nisso ela era bamba! Sua comunicação empática com eles era patente. Dizia ser seu ministério divino, outorgado diretamente pelo Criador.

Adotou como seus os meus quatro filhos, que chamavam-na de “boadrasta” – e, depois, os muitos netos. 

Cuidamos dela na doença como ela teria cuidado de nós, nada lhe faltando em termos de conforto e tratamento. Conforme sua vontade sempre expressada, foi poupada de dor, quer física, quer psíquica. Mais um bônus do Pai Eterno. 

Não foi sem deixar, além de muita saudade, um exemplo de como ser gente. Deus a quis perto de si (O Senhor a deu, o Senhor a levou; louvado seja o nome do Senhor – Livro de Jó, capítulo 1, versículo 21), cabendo a nós agradecer-Lhe por termos tido a chance de conhecê-la, e de termos convivido com sua doce pessoa. 

Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida descontente,
Repousa lá no Céu eternamente,
E viva eu cá na terra sempre triste.
Se lá no assento etério, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.
E se vires que pode merecer-te
Alguma cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te;
Roga a Deus que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.
(Luiz de Camões – ca. 1560)

Ela não morreu... ela apenas partiu antes do combinado. Até breve, Sukita!

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

POESIA - Improvável (MJ)

 IMPROVÁVEL
Josefina*
 

Eu nasci improvável
No ventre de minha mãe.
Meu corpo esqueceu de me dar
Um cérebro inteiro!
Eu nasci improvável!
Venci a improbabilidade
De um dia, um mês, um ano,
uma década!
Eu vivi improvável.
 
Em um mundo que não conheci,
Entre pessoas com quem não convivi,
Em um corpo que não foi meu. Improvável!
Improvável comunicação!
Apenas gritos que minha garganta emitiu.
Sinais que meus olhos falavam,
Boca que só recebeu, nunca falou!
Improvável velhice.
 
Estou velha, meu corpo sabe. Todos sabem, eu sei, não tenho mais lugar. Improvável morte.
Morte desejada, morte adiada, morte que não morre.
 
Vou morrer improvável???

 

Para Dinda!
Que a receba na sua paz.
Fortaleza,16/08/21.


CRÔNICA - O Amigo, o Poeta e a Saudade (RMR)

O AMIGO,
O POETA E A SAUDADE
Rui Martinho Rodrigues*

 

Somos como a pragana, espécie de barba de espigas de existência fugaz, nos ensina o livro de Jó. Cronos, devorador implacável, destrói quase tudo. Mas Mnemosine disponibiliza a memória, para que o Titã destruidor, que reina sobre o tempo e nos tira tantas coisas, não nos deixe apenas a ausência.

 

A perecibilidade da nossa existência é compensada pelo legado deixado pelos amigos que partem. Paulo Coelho Ximenes, um amigo, um técnico e um bardo de largos méritos, nos deixa a memória de um homem afável, ético, cujo bom gosto musical e a produção poética nos consolam. 

Engenheiro agrônomo, tendo como habitat natural a área técnica, tinha sensibilidade artística. Sabia expressar com grande beleza na forma, capturando a essência feita de emoções e significados que, embora difíceis de traduzir em palavras, se tornavam fáceis de compreender quando saiam da sua pena.

 

O sínolo, constituído por forma e essência, era uma poesia bela e portadora de sabedoria, que, como a ética, não é proporcionada pelo conhecimento. É a esfera da afetividade o arrimo da aptidão para o bom uso do domínio cognitivo da realidade. A lhaneza e o dom da compreensão e de expressar sentimentos, presentes no já saudoso amigo Paulo Ximenes, não eram produtos dos saberes técnicos de engenheiro agrônomo. 

Nem somente da sensibilidade artística. A sabedoria, entendida como capacidade de fazer bom uso do conhecimento, discernimento para entender e inspiração para traduzir em palavras coisas indizíveis revelam que o poeta tem bom caráter. Assim era o amigo, o intérprete de emoções e sentimentos, deixando saudades e um baú de versos que sintetizam amor, lembranças e valores. 


Amigos se alegram e choram juntos. Os amigos da Academia Cearense de Literatura e Jornalismo, neste momento, fazem ouvir o pranto da citada casa de letras. Agremiação em que a amizade é um forte liame entre os confrades que tantas vezes riem juntos, pranteia Paulo Coelho Ximenes, consolada pelos versos que ele nos deixou e pela memória de seu companheirismo.

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

POEMA - Largo da Poesia (SQC)

 Largo da Poesia
Sávio Queiroz Costa*


No largo da poesia, os ventos sussurram,
Palavras que dançam no ritmo da brisa.
Cada esquina guarda versos que murmuram,
Segredos antigos que o tempo eterniza.


Ali, os poetas encontram abrigo,
Nas sombras das árvores, sob o céu aberto.
Entre flores e sonhos, construo contigo
Um universo onde o amor é o certo.


No largo da poesia, te espero a sorrir,
Com versos no bolso e a alma a fluir.
Somos dois viajantes, sem pressa de ir,
Num mundo onde o sentir é o único existir.
 
 
* Dedicado ao amigo Paulo Ximenes


sábado, 5 de outubro de 2024

ARTIGO - As Nossas Abluções Recivilizatórias (PE)

 AS NOSSAS ABLUÇÕES
RECIVILIZATÓRIAS
Paulo Elpídio*


Houaxia é um conceito usado na China para designar “Civilização”, como propósito de definir e fixar os “povos das estepes” aos quais os chineses negavam o reconhecimento de sociedades organizadas. Eram os “não-chineses”, destituídos dos atributos que lhe são próprios. 

Os gregos designavam, por sua vez, de “bárbaros” os grupos sociais primitivos constituídos de “não-gregos”. 

Há no conceito “civilizado” um conjunto de atributos que refletem o grau civilizacional superior em que se encontra um povo em relação aos seus vizinhos ou com referência aos que não compartilham das mesmas origens, dos mesmos valores, do avanço dos seus conhecimentos, de uma história e da memória subjacente, em comum, de instituições e padrões de organização e de dogmas de fé que lhes conferem uma certa identidade compartilhada. 

Trata-se, no fundo, de um conceito discriminatório utilizado para afirmar a superioridade de um país e do seu povo em relação a outras nações.  

Uma ilustre personalidade deu-se conta, mercê de graves reflexões, de que ao Brasil impõe-se um mergulho batismal em um penitente “processo recivilizatório”. Sua Excelência não brande o nosso descuido em nosso favor. Antes, bem ao contrário, aponta para o primitivismo da sociedade em que nos organizamos, carentes do essencial de uma desejável conquista civilizatória. 

Provavelmente, o ínclito magistrado contrapõe as conquistas e os avanços alcançados por outros países à indigência de uma sociedade primitiva de terceiro plano. 

Até agora, entretanto, para angústia nossa, o ministro não deu mostras tranquilizadoras de onde encontrar o modelo que deveríamos usar. 

Em um Mundo bipolar, cujas diferenças se acentuam e aprofundam celeremente, nada mais sobra como modelo do que as ideologias que correm em paralelo e irão nos jogar à esquerda, ou à direita, alternativas singulares, imposições incontornáveis para ingressarmos em um estágio civilizacional aceitável aos olhos do ilustre filósofo-constitucionalista. 

As potências mais aguerridas de ideias e dotadas de “belligerantium animus” trazem para si as virtudes que a civilização lhes confere. As demais, devem contentar-se com as sobras da “barbárie” que lhes cabe por justa injunção. 

Neste lugar de solertes conjecturas, falávamos do Brasil e sobre ele, se estão lembrados, a propósito da receita de uma reinserção civilizatória a que nos deveríamos resignar, sem delongas.  Uma espécie de expurgo de entidades malvistas e indesejáveis, cerimônia de descarrego das nossas idiossincrasias ancestrais. 

Pois aí está, que não nos faltem coragem, esperança e fé para que essas abluções bem lembradas pelos Ministro nos abram os caminhos da Houaxia e nos deem força para alcançarmos este bravo mundo novo, em boa hora, a salvo da barbárie que nos ronda, “ad hunc modo”.


sábado, 21 de setembro de 2024

NOTA ACADÊMICA - A Despedida do Poeta Paulo Ximenes

A ACLJ SE
DESPEDE DO
POETA
PAULO XIMENES







MISSA DE 7º DIA
DA MORTE DE PAULO XIMENES
CAPELA DE SÃO PEDRO
PRAIA DE IRACEMA










DISCURSO

Antes de tudo, queremos agradecer ao Padre Virgínio pela generosa concessão de espaço na Santa Missa, nesta Capela de São Pedro, para prestarmos esta homenagem póstuma ao nosso confrade Paulo Ximenes, no sétimo dia da sua morte. 

Grande satisfação que nós sentimos pelo fato de que o Paulo, assim como eu, foi “iracemita”, ou seja, morador de Iracema, e ambos fomos também “iracemistas”, frequentadores deste especialíssimo bairro da cidade, quando ele ainda era menos dos turistas e mais nosso. E fomos ambos crismados neste altar. 

Inclusive, Padre, uma das últimas vontades expressadas pelo Paulo, por telefone, já muito combalido, foi de dar uma volta de carro comigo pela Praia de Iracema. Fui buscá-lo, mas então ele já se sentia indisposto, e desistiu desse passeio. 

Eu e a Liana, primogênita de Paulo e Carmem Lúcia, jovem Procuradora Federal, um dos orgulhos da família, considerávamos hoje, por telefone, que passado o período do nojo, do luto, superado o choque da mudança dele para os campos etéreos, o que nos assoma ao espírito é a felicidade de ter podido conviver com ele tantos anos – ela, particularmente, toda a sua vida até aqui. 

Assim, a partir de hoje, Paulo Ximenes continua sendo para todos nós sinônimo de alegria, embora o Pai Celeste haja resolvido libertá-lo da matéria já agora. Paulo fazia tanto análise de teses filosóficas sérias, como relatos de histórias engraçadas. Ele era música, era poesia, era festa, era carnaval – e não há razão para deixar de sê-lo,  na nossa lembrança, no nosso afeto, nas nossas conversas. 

Mas, vou replicar aqui o que disse na missa de corpo presente, ainda muito magoado com o infausto, porque o texto é peça literária, que, como as preces, os poemas e as canções, produtos do sentimento refinado, da emoção e não da razão, devem ser registradas e reiteradas sempre que houver motivo para dizê-las, e corações para escutá-las.  

Disse eu então:

Nascemos para nos afeiçoar a um grupo de pessoas, metade das quais vamos perdendo, e a nós, nos perderá a outra metade. 

O Paulo não era o Paulo, tão-somente; o Paulo éramos nós, a nossa turma de juventude; os membros da nossa Academia de Letras.  

Portanto, a sua morte nos mutila. Produz uma ablação no campo existencial da minha pessoa. 

Ele não morre sozinho. Com ele, nós morremos um pouco. No meu caso, morro muito. 

Ele testifica agora o abismo que já devorou o Ricardo, irmão dele, e o Arcoverde, nosso amigo fraterno. 

Sim, o meu patrimônio afetivo tem sido muito desfalcado ultimamente pela morte, produzindo um resignado sofrimento. 

Mas o Paulo pertencia ao mesmo pelotão filosófico que componho, e, morrendo, ele leva a metade do mapa vivencial que desenhávamos. 

Que fazer agora das lembranças comuns, da poesia, da boa música, da boa mesa, das namorices, dos carnavais, da memória preciosa das aventuras que vivemos quando rapazes? 

Apenas conforta lembrar que para onde ele partiu de inopino, todos nós também iremos, mais cedo ou mais tarde, e lá certamente retomaremos a nossa velha parceria, sempre imbuídos dos mais nobres sentimentos e dos projetos mais edificantes. Que Deus o tenha, na sua imortalidade literária. Que Deus o guarde. 

Lavivá!


Reginaldo Vasconcelos