terça-feira, 12 de maio de 2015

LÍNGUA DE CAMÕES



REDUNDÂNCIAS E OUTRAS
NÓDOAS ESCURAS DE UM TEXTO
Vianney Mesquita*

Até o abuso das coisas úteis é prejudicial. (Publílio Siro. Escritor sírio-latino. Y85 a.C- 43 a.C).


Em disputa com as deformações trazidas a um texto por má pontuação, sinalização diacrítica imperfeita, desconveniências de teor ortográfico, concordância e regência nominais e verbais – entre tão grande número de delitos gramaticais e estilísticos – um dos mais comuns, e fonte in limine de descrédito em relação ao seu autor, assenta na palavra/expressão sobejante, a mui conhecida e amiudemente aplicada redundância.

Própria do escrevinhador despercebido de predicados redacionais ou descuidoso no trato da mensagem linguística, redundância significa, na escrita, nomeadamente literária, a descabida insistência na apropriação de vocábulos e dições antecipadamente expressos ou tacitamente sensíveis na oração, quer na significação inerente à própria palavra ou mesmo em complemento equívoco e desnecessário a termos e manifestações idiomáticas cujo sentido já se completara.

Colho os casos de sorriso nos lábios, belonave de guerra e gato felino, frequentemente divisados em vários media, pois as três primeiras unidades do grupo exemplificativo já armazenam nos próprios núcleos a ideação pretendida, sem a necessidade de reforço de significação, ensejando, feiosa e equivocadamente, prejuízos à estesia textual e agravos à lógica da escritura.

Em eventos do emprego de lágrimas nos olhos, sorriso nos lábios, encarar de frente, sobrevivente vivo, jumento asinino, cadáver do defunto morto, cachorro canino, pássaro alado, burro muar e tantos que se veem repetidamente, é notória a míngua de trato do escrevente ou falante em relação aos mais elementares conhecimentos do código lusitano.

Já em relação a belonave, há pouco mencionada, complementada com de guerra – por mim corrigida em tarefa de mestrado sobre a Primeira Guerra Mundial - não é de se estranhar, pois unidade de ideia não conhecida pela maioria das pessoas, de cuja procedência glotológica elas não têm conhecimento, ou seja, do latim belli-, de bellum-i ‘guerra’, ‘combate’ , consoante são também alguns outros elementos vocabulares com tal raiz insertos na linguagem erudita desde o século  XVI, consoante anota Antônio Geraldo da Cunha, no Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa (2 ed. 1997). É, também, o caso de jumento asinino, pois não é consabido (se eu escrever consabido por todos, cometo redundância) o que significa esse adjetivo.

A respeito de sobrevivente vivo, por sua vez, me deu conta o Prof. Dr. Anchieta Esmeraldo Barreto, ao ouvir de Leilane Neubarth, repórter da Rede Globo de Televisão, noticiando, no mês passado (abril de 2015), a série de sinistros sofridos pelo Nepal, principalmente, a capital Katmandu, ao passo que pássaro alado retirei de tradução procedida por um estudante de doutorado em Física de uma seção do livro Leçons de Mécanique Céleste, de Henri Poincaré.

Em adição a esses deslizes depreciativos das formas de ideias expostas pela fala ou via letra culta, vêm, ainda, as chamadas “expressões feitas”, como espalhou-se como um rastilho de pólvora, o menino aprendeu a tabuada de cor e salteado  (engraçado é que jamais se diz ou escreve decorado e de salto, que é a mesma coisa). Todo violão tem de ser plangente, o ladrão não pode ser indiferente e interesseiro, pois de ser frio e calculista sempre calculista e a PETROBRÁS é como um barril de pólvora, prestes a explodir, sem falar que o Brasil é um país com dimensões continentais, um dos mais conhecidos, usados e rebatidos clichês de todos os tempos.

Certa vez, pedi a um doutorando para retirar a proposição nos quatro cantos do mundo (pois este é redondo), bem como a noção de um mundo meio certo, meio errado e meio louco (ou seja, uma Terra e meia, feita de três metades) e também a frase [...] vários países espalhados pelo globo, como se pudessem ficar amontoados.

Outros modismos são acrescidos a esses sestros desabonadores da elocução grafada, como a “obrigatoriedade” de empregar, muitas vezes e em TODOS os ensaios, pelo menos aqueles a mim entregues para revista, a dicção diferentes isso, diferentes aquilo, (“Vejo diferentes assuntos sob diferentes prismas em diferentes ocasiões”) numa mania insuportável a fazer com que o consultor impertinente desista da leitura bem antes de chegar ao cabo.

O derradeiro vezo a que ora me reporto é o forçado, desabrido e absolutamente desnecessário – no máximo dos casos – emprego de presente e presença, um cacoete também inaturável a puxar para baixo qualquer ensaio que se pretenda legível e decodificável, para não falar com maior demora na indefectível mania da ferramenta, no lugar de meio, expediente, intermédio, instrumento e tantas unidades vocabulares em registo na opulenta sinonímia da Língua Portuguesa.

Deploravelmente, quase como em um censo, o universo inteligente nacional, em particular o que “sustenta” a Universidade, enche a escrita brasileira deste Aedes Aegypti pertinaz nas águas do escrito literocientífico nacional, fazendo-o hemorrágico, pois que lhe sangram, transpondo as redundâncias e impropriedades de quaisquer laias, bobagens por todas as veias e capilares, mui diversamente do que sucede, e.g., com o português escrito na Pátria-Mãe, onde se respeitam os ditames da língua e se prima pela correção, maiormente na contingência das academias.

“Oh tempos, oh costumes!” – reclamara Marco Túlio Cícero.

*Vianney Mesquita 
 Docente da UFC 
Acadêmico Titular da Academia Cearense da Língua Portuguesa  
Acadêmico Emérito-titular da Academia Cearense de Literatura e Jornalismo 
Escritor e Jornalista

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