sábado, 30 de maio de 2015

CRÔNICA (VM)

QUEM DÁ CONTA DA HERMA?!
Vianney Mesquita*

A saudade é um parafuso/Que, quando sua rosca cai,/Só entra se for torcendo/Porque batendo não vai/Depois que enferruja dentro/Nem destorcendo não sai! (JOSÉ EURÍCLEDES FORMIGA. YS. João do Rio do Peixe, 19.06.1924 – São Paulo, 09.06.1983. Trabalhou na Gazeta de Notícias, de Fortaleza-CE).


No recuado 1968, desfrutei a sorte de haver sido escolar do Colégio Municipal Filgueiras Lima, malgrado a velada repressão no ano do malfadado AI-5, matriculado no terceiro ano colegial, como se chamava então. O prédio fica aos fundos do Colégio Paulo Sexto, da rede estadual, no que se transformou o antigo Matadouro Modelo, localizado no centro nervoso do Jardim América, Bar Uirapuru numa esquina e, na outra, a Casa Dois Apóstolos, de material de construção, propriedade dos irmãos Pedro e Paulo. Quem passava por ali o fazia ligeiro, espantado com o fartum de tecido orgânico vacum apodrecido, mau cheiro só desaparecido totalmente após alguns verões pesados.

É tanto que, no citado 1968, os pretinhos Coragyps e Cathartes  ainda se empoleiravam nos pontos mais altos de ambos os colégios (bem mais no Paulo VI), pois não se haviam esquecido dos lautos regabofes com os quais se regalavam em suas permanentes visitas àquele rico manancial alimentar. Somente depois de uns dez ou mais anos, foi que eles se desvaneceram no tocante ao retorno daquelas amplas possibilidades alimentais e, a pouco e pouco, abandonaram suas costumeiras torrinhas.

E eis que o progresso decepcionou a Natureza mais uma vez (como o faz amiúde), em proveito do movimento antropocêntrico e detrimento do moto biocêntrico, hoje em curso nos estudos de sustentabilidade da vida humana, animal e vegetal, em franco desenvolvimento em todo o Mundo, objeto temático de cimeiras internacionais a respeito de meio ambiente. 

Contíguo ao prédio novo, no qual se instalara em 1966 o Municipal pois este houvera deixado o edifício onde hoje é a sede do Instituto do Ceará – Histórico, Geográfico e Antropológico – o Colégio Paulo VI tinha instalações descansando sobre terras impregnadas de gordura animal e tecidos orgânicos decompostos. 

Uma vez, por volta das nove da noite, no intervalo imediatamente anterior à última aula, eu e alguns colegas divisamos no quintal do antigo abatedouro, de cima de uma arquibancada erigida para exibição de tourada, uma fonte do chamado igni fatuus – fogo fátuo – chama azulada, em geral, ocorrente em pântanos,  cemitérios e locais onde há grande quantidade de glicerídeos de ácidos graxos – que deixou a turma em rebuliço.

A despeito de haver demorado bem pouco tempo no Colégio, pois nem cheguei ali a terminar o Científico, sou pessoa testemunha da existência de excepcionais professores – André Pinheiro (filho do Dr. Edmilson), Jeovah Lima, Dona Marieta, Pedro Augusto Timbó Camelo, entre outros – bastante assíduos e competentes, sem improvisação didática, cumpridores dos horários e, sobretudo, amigos dos estudantes, pois também sob a mira dos alcaguetes da gloriosa, que, sem ninguém saber, se infiltravam nas conversas com o fito de dedurar alguém à Direção.

Punctum Saliens do Colégio Municipal Filgueiras Lima é, sem nenhuma dúvida, o imprescindível busto do educador e poeta Filgueiras Lima (Lavras da YMangabeira, 21.05.1909 – Fortaleza, 28.09.1965), na entrada do Estabelecimento, onde está gravada uma divisa a expressar o pensamento desse extraordinário mestre e emérito fundador de escolas (350), relativamente à conduta em sala de aula e fora dela, tendo ele como o próprio cânone: Ensino como quem reza: com a alma genuflexa.

De quando em vez, em especial quando trato de meu período de escolar secundarista, memorizo, saudoso, o pouco e precioso tempo em que transitei por essa modelar Casa de ensino, fundada em 1949, por João Ramos de Vasconcelos César, e instalada em 2 de maio de 1951.

Há uns poucos dias, por solicitação do pai de um aluno, meu amigo, fui apanhar o rapaz no Municipal, onde experimentei desagradável surpresa, ao adentrar o Colégio: o busto de Filgueiras Lima foi dali removido, sem tir-te nem guar-te, e ninguém me soube informar, naquele ensejo, a razão ou desrazão desse ato insólito.

Quero crer, prefiro acreditar – realço – que alguém tenha realmente mandado providenciar uma reforma, proceder a uma limpeza, operar qualquer coisa, a fim de depois fazer retornar a herma ao seu lugar, pois essa peça é fundamental para o enredo histórico do Estabelecimento e, acima de tudo, se trata de uma obra artística que é recheio dos equipamentos da cultura imaterial, próprios de instituições do seu jaez.

Impõe-se repô-la, imediatamente, ou impende a Diretoria oferecer uma explicação plausível para o fato, estando longe de mim apelar para o pensamento de que haja sido furtada, como fizeram várias vezes com a estátua do General Sampaio aqui em Fortaleza, com a Taça do Mundo ganha pelo Brasil em 1958 e tantas outros delitos culturais ocorrentes em terra onde não há dirigentes.

O povo de Fortaleza apela, pois, para a Direção do Colégio, a Secretaria de Educação do Município de Fortaleza e outras instâncias de poder, para que a herma seja devolvida ao seu lugar, onde estava há 49 anos e de onde jamais poderia ter saído!

Assiste razão ao romancista e dramaturgo de França, Alain-René Le Sage, para quem todos gostam das coisas alheias. Este é um sentimento geral, mas a única diferença é a maneira de o fazer. Se assim o fizeram, ainda é tempo de se arrepender. 

De tal modo, a população intenta imediatamente saber: QUE FIM LEVOU A HERMA DE FILGUEIRAS LIMA?!


*Vianney Mesquita 
Escritor e Jornalista. 
Professor adjunto IV da Universidade Federal do Ceará. 
Árcade titular e fundador da Arcádia Nova Palmaciana; 
acadêmico titular das Academias Cearense da Língua Portuguesa e 
Cearense de Literatura e Jornalismo. 
Membro do Conselho Curador 
da Fundação Cearense de Pesquisa e Cultura, da U.F.C.

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