... E O JUCA DORMIU NO PONTO
Assis Martins*
A vida cria o conflito, o teatro o resolve; nessa solução,
pois, a vida tem aumentado seu patrimônio moral. (João Álvaro de Morais
Quental Ferreira, dito PROCÓPIO FERREIRA.Rio de
Janeiro, Y8.7.1898 †18.6.1979).
Até
o final dos anos 1960, Fortaleza ainda não experimentava um rumo nítido ao
progresso, porém dava alguns sinais da metrópole em que viria a se tornar. As
opções de entretimento não eram muitas, como agora, época pós-advento dos shoppings, lan houses, televisores de
plasma, filmes em 3 dd etc.
Esse
novo panorama criou costumes, instituiu novas necessidades e, a pouco e pouco,
foi modificando os hábitos para procederes citadinos. Muita gente, inclusive
nos subúrbios, ia aos teatros para assistir a comédias e dramalhões de grande
apelo popular. As peças mais vistas eram A
louca do jardim, Lágrimas de mãe, O mundo não me quis, Os dois sargentos e
– é claro – a Paixão de Cristo.
Em
quase todos os bairros havia um palco onde os amadores representavam os
dramas. No Centro, o principal era o Teatro do Círculo Operário da Prainha
(Praça Cristo Redentor); no Benfica, a sala de drama do Ginásio Santa Maria, na
então avenida do Visconde de Cauípe, onde hoje é o Teatro Universitário da UFC,
e o salão paroquial da Paróquia dos Remédios; havia também o espaço da
Sociedade de Fotografia e Cinema, na rua Guilherme Rocha, o Teatro dos Frades,
na praça Coração de Jesus, onde a plateia ficava ao ar livre e a audição era
prejudicada; e o Teatro dos Navegantes, no círculo Operário de Jacarecanga
(estava lá, com certeza, o capelão da Marinha, Padre Teógenes. Se o público
fazia um barulho qualquer, ele, abancado na primeira fila – não havia cadeiras;
era banco mesmo – ficava em pé e bastava um severo olhar panorâmico para
estabelecer o silêncio).
No
maior e principal teatro da Cidade, o José
de Alencar, exibiam-se, na maioria das vezes, as companhias de fora.
Os mais importantes grupos eram: Conjunto Teatral Cearense, do incansável J.
Cabral, que, durante décadas, segurou o espetáculo amador em Fortaleza e outras
cidades do interior e do litoral do Estado, o Teatro de Amadores de Fortaleza e
o Teatro dos Gráficos.
Muitos
artistas se destacavam, sendo difícil dizer quais os mais importantes, porém,
alguns nomes eram do conhecimento público, como J. Narbal, Clóvis Matias, José
Majestic, Neno Salgueiro, Jeová Bezerra, Misael Fernandes, Lourdes Martins,
Carlos Mendes, Jarbas Páscoa [...] e o famoso Zoró, o melhor intérprete de
Judas nas ribaltas – e também nos circos. Alguns ficaram famosos, como Milton
Moraes, que se tornou astro da Rede Globo de TV. O curioso é que alguns circos,
quando chegavam a Fortaleza, convocavam alguns desses atores para a temporada,
o que representava uma garantia de sucesso.
Hoje
a montagem de um espetáculo teatral segue técnicas modernas e dinâmicas. O
elenco é ajudado por uma gama de efeitos sonoros e ópticos, com bons resultados
plásticos. Naquela época, predominavam os diálogos longos. Os enredos, exceção
das comédias, sempre tinham um fundo moral, com o bem ganhando seu quinhão de
recompensa. A forma de interpretar era também diferente, com os atores usando
dicções empostadas, com ênfase na califasia. A maioria já representava os
mesmos textos há anos, razão por que o público se identificava com eles.
Figura
indispensável era a do Ponto, uma pessoa que ficava alojada numa caixa aposta
na boca da cena, abaixo da ribalta, cujo ofício era ler, sem interrupção,
durante a peça inteira, o conteúdo do drama. Um bom Ponto devia sempre estar à frente
dos atores duas ou três linhas do diálogo. Alguns pontos levavam tão a sério
suas tarefas, que liam dramatizando, de acordo com a ocasião. O interessante é
que os atores, embora já tendo representado as mesmas peças por anos seguidos,
não conseguiam bom desempenho sem a figura do Ponto, até nos ensaios!
Juca
foi um Ponto que ficou famoso pela sua competência em ler rapidamente e viver o
texto igualzinho ao pessoal em cena. Na sua carreira longa, jamais teve grandes
deslizes, e os remanescentes daquele período ainda se lembram do vexame que deu
no Teatro dos Navegantes.
Era
um eterno apaixonado por Charlene, jovem e espalhafatosa atriz do Conjunto
Teatral Cearense, convidada para estrelar a peça Sonho de um querubim. Quando soube que iria pontar uma peça em que
estava sua deusa, ia vê-la frente a frente, aliás, de baixo para cima, não
conseguiu controlar a emoção. Antes de a cortina abrir, teve tempo de ir ao
boteco da esquina para esquecer o juramento de evitar o primo gole.
EPÍLOGO.
Juca exagerou. Logrou o controle da ansiedade, mas, algum tempo depois, o
álcool fez cair um pano rápido sobre sua consciência. Apagou em cima do livro
ainda no primeiro ato e deixou sua bela e o resto do elenco numa situação
aflitiva.
*Assis Martins
Funcionário da U.F.C.
Cronista e Ilustrador.
Bacharel em Geografia e Tecnologia e Gestão do Ensino Superior
pela Universidade Federal do Ceará.
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