domingo, 10 de maio de 2015

CRÔNICA (AM)


... E O JUCA DORMIU NO PONTO
Assis Martins*

A vida cria o conflito, o teatro o resolve; nessa solução, pois, a vida tem aumentado seu patrimônio moral. (João Álvaro de Morais Quental Ferreira, dito PROCÓPIO FERREIRA.Rio de Janeiro, Y8.7.1898 18.6.1979).


Até o final dos anos 1960, Fortaleza ainda não experimentava um rumo nítido ao progresso, porém dava alguns sinais da metrópole em que viria a se tornar. As opções de entretimento não eram muitas, como agora, época pós-advento dos shoppings, lan houses, televisores de plasma, filmes em 3 dd etc.

Esse novo panorama criou costumes, instituiu novas necessidades e, a pouco e pouco, foi modificando os hábitos para procederes citadinos. Muita gente, inclusive nos subúrbios, ia aos teatros para assistir a comédias e dramalhões de grande apelo popular. As peças mais vistas eram A louca do jardim, Lágrimas de mãe, O mundo não me quis, Os dois sargentos e – é claro – a Paixão de Cristo.

Em quase todos os bairros havia um palco onde os amadores representavam os dramas. No Centro, o principal era o Teatro do Círculo Operário da Prainha (Praça Cristo Redentor); no Benfica, a sala de drama do Ginásio Santa Maria, na então avenida do Visconde de Cauípe, onde hoje é o Teatro Universitário da UFC, e o salão paroquial da Paróquia dos Remédios; havia também o espaço da Sociedade de Fotografia e Cinema, na rua Guilherme Rocha, o Teatro dos Frades, na praça Coração de Jesus, onde a plateia ficava ao ar livre e a audição era prejudicada; e o Teatro dos Navegantes, no círculo Operário de Jacarecanga (estava lá, com certeza, o capelão da Marinha, Padre Teógenes. Se o público fazia um barulho qualquer, ele, abancado na primeira fila – não havia cadeiras; era banco mesmo – ficava em pé e bastava um severo olhar panorâmico para estabelecer o silêncio).

No maior e principal teatro da Cidade, o José de Alencar, exibiam-se, na maioria das vezes, as companhias de fora. Os mais importantes grupos eram: Conjunto Teatral Cearense, do incansável J. Cabral, que, durante décadas, segurou o espetáculo amador em Fortaleza e outras cidades do interior e do litoral do Estado, o Teatro de Amadores de Fortaleza e o Teatro dos Gráficos.

Muitos artistas se destacavam, sendo difícil dizer quais os mais importantes, porém, alguns nomes eram do conhecimento público, como J. Narbal, Clóvis Matias, José Majestic, Neno Salgueiro, Jeová Bezerra, Misael Fernandes, Lourdes Martins, Carlos Mendes, Jarbas Páscoa [...] e o famoso Zoró, o melhor intérprete de Judas nas ribaltas – e também nos circos. Alguns ficaram famosos, como Milton Moraes, que se tornou astro da Rede Globo de TV. O curioso é que alguns circos, quando chegavam a Fortaleza, convocavam alguns desses atores para a temporada, o que representava uma garantia de sucesso.

Hoje a montagem de um espetáculo teatral segue técnicas modernas e dinâmicas. O elenco é ajudado por uma gama de efeitos sonoros e ópticos, com bons resultados plásticos. Naquela época, predominavam os diálogos longos. Os enredos, exceção das comédias, sempre tinham um fundo moral, com o bem ganhando seu quinhão de recompensa. A forma de interpretar era também diferente, com os atores usando dicções empostadas, com ênfase na califasia. A maioria já representava os mesmos textos há anos, razão por que o público se identificava com eles.

Figura indispensável era a do Ponto, uma pessoa que ficava alojada numa caixa aposta na boca da cena, abaixo da ribalta, cujo ofício era ler, sem interrupção, durante a peça inteira, o conteúdo do drama. Um bom Ponto devia sempre estar à frente dos atores duas ou três linhas do diálogo. Alguns pontos levavam tão a sério suas tarefas, que liam dramatizando, de acordo com a ocasião. O interessante é que os atores, embora já tendo representado as mesmas peças por anos seguidos, não conseguiam bom desempenho sem a figura do Ponto, até nos ensaios!

Juca foi um Ponto que ficou famoso pela sua competência em ler rapidamente e viver o texto igualzinho ao pessoal em cena. Na sua carreira longa, jamais teve grandes deslizes, e os remanescentes daquele período ainda se lembram do vexame que deu no Teatro dos Navegantes.

Era um eterno apaixonado por Charlene, jovem e espalhafatosa atriz do Conjunto Teatral Cearense, convidada para estrelar a peça Sonho de um querubim. Quando soube que iria pontar uma peça em que estava sua deusa, ia vê-la frente a frente, aliás, de baixo para cima, não conseguiu controlar a emoção. Antes de a cortina abrir, teve tempo de ir ao boteco da esquina para esquecer o juramento de evitar o primo gole.


EPÍLOGO. Juca exagerou. Logrou o controle da ansiedade, mas, algum tempo depois, o álcool fez cair um pano rápido sobre sua consciência. Apagou em cima do livro ainda no primeiro ato e deixou sua bela e o resto do elenco numa situação aflitiva.


*Assis Martins 
Funcionário da U.F.C.
Cronista e Ilustrador. 
Bacharel em Geografia e Tecnologia e Gestão do Ensino Superior 
pela Universidade Federal do Ceará.

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