sábado, 29 de fevereiro de 2020

A R T I G O – Ano Bissexto (VM)

29 DE FEVEREIRO DE 2020
ANO BISSEXTO
Vianney Mesquita*


Mil, dez mil anos não passa de simples ponto que nos não é dado ver. SIMÔNIDES DE CEOS. (*Lulis-Ceos, 586 a.t.c. + Agrigento-Itália, 488 a.t.c.).                                                                                              

Depois de 2016, conforme o Calendário Gregoriano, ora vigente na banda ocidental, este ano é o primeiro bissexto, pois hoje, 29 de fevereiro – só ocorrente de quatro em quatro anuênios – significa o fato de que o exercício fluente possuirá 366 dias, ao passo que os três anteriores perfizeram somente 365 períodos de 24 horas.

Ocorreu de amigos e pessoas modestas a mim chegadas, nomeadamente não muito afeitos ao trato literário, me perguntarem, com recorrência, acerca dessa dicção, empregada a miúdo com relação aos poetas e escritores pouco produtivos ou de produção apenas singular, ou seja, “por que Fulano é considerado poeta bissexto?”.

Lembro-me de que, em 2012, conforme referido há pouco, penúltimo bissexto sucedido – o derradeiro foi 2016 –  as indagações mais afluíram, de modo que passo a narrar o assunto, evidentemente, sem profundidade científica, louvado apenas no conhecimento do senso comum adquirido à extensão temporal, na vida e na escola, o qual também se encontra à disposição de qualquer pessoa, em obras de referência de domínio público, facilmente acessíveis, como dicionários e enciclopédias.

Colhi, então, a informação de que, no tempo do Império Romano, sob Caio Júlio César, consoante conta Caio Plínio Segundoo Velho, o ano vulgar possuía 365 dias. Como o movimento de translação anual da Terra à volta do Sol somente se completa após 365 dias mais um quarto, as seis horas restantes ensejavam divergências entre o ano civil e o moto dos corpos celestes – estrelas, planetas, nebulosas, cometas etc.

Júlio César, então, convocou o astrônomo Sosígenes, de Alexandria, e contratou com ele a solução do problema. O Sábio egípcio, então, decidiu estabelecer que, de quatro em quatro anos, seria acrescentado um dia ao mês de fevereiro, resultado da soma das horas sobrantes de 365 nesses anos. Tal significa dizer que, após um período de 366 dias (bissexto = duas vezes sexto), se seguem três de 365 e um de 366. De tal maneira, não parece correto se dizer que um ano perfaz 365 dias e seis horas, dada a decisão do Astrônomo alexandrino de somar às 18 horas as seis do tempo bissexto para completá-lo, porém, com 366 conjuntos de 24 x 60 minutos.

Curioso é notar o fato de que todos os anos cuja expressão numérica é divisível por quatro são bissextos, com 366 dias, como nos casos de 1.600, 1.200, 800 e 2.000.

Os anos seculares, salvante esses do exemplo e outros cujos dois algarismos iniciais não se expressam como exatamente divisíveis por quatro, não resultam bissextos, razão por que o ano secular de 1.900 não o foi.

Em alusão a essa periodicidade do tricentésimo sexagésimo sexto dia, inventou-se, no Brasil, uma locução, desusada noutras nações lusófonas – poeta bissexto/escritor bissexto.

A palavra bissexto, bem como o termo bissêxtil, de há muito deixaram de ser neologismos, pois dicionarizados em 1946. Tencionam, então, conotar o estado daquele, particularmente do poeta, dedicado excepcionalmente à literatura, fazendo poucos versos, o que sugere se evocar, em razão dessa escassez de produção, o dia bissexto de fevereiro (29) e os anos bissêxteis.

Ocorre, exempli gratia, com EUCLIDES Rodrigues Pimenta DA CUNHA, celebrado autor nacional das letras, no terreno social, bem como nas áreas histórica e política. O Autor fluminense produziu extraordinárias obras nestas fertílimas searas, internacionalmente conhecidas e acatadas, como, nestes quatro exemplos, Peru versus Bolívia, Contrastes e Confrontos, À Margem da História e o admirável Os Sertões, além doutras de fecunda inspiração e lúcidas ilações.

Euclides da Cunha (*Cantagalo-RJ, 20.01.1866 ; + Rio de Janeiro, 15.08.1909) achou de escrever, em meio às produções do seu gênero, o Soneto sequente, intitulado Dedicatória, que extraí de Os mais Belos Sonetos Brasileiros, livro de Edgard Resende (Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1945):

Se acaso uma alma se fotografasse,/De sorte que nos mesmos negativos/A mesma luz pusesse em traços vivos/O nosso coração e a nossa face ...

E os nossos ideais, e os mais cativos/De nossos sonhos ... se a emoção que nasce/Em nós também nas chapas se gravasse/Mesmo em ligeiros traços fugitivos ...

Amigo! Tu terias com certeza/A mais completa e insólita surpresa/Notando – deste grupo bem no meio
Que o mais belo, o mais forte e o mais ardente/Destes sujeitos é precisamente/O mais triste, o mais pálido e o mais feio.

Muitos dos literatos nacionais fizeram versos assim, bissextamente, conforme disse, certa vez, o intelectual-dentista Ivan César a respeito de meu amicíssimo Antônio Girão Barroso (o Toinho, meu irmão – como o chamava o Magdaleno), “o único poeta dispensado de fazer poesia”. Há alguns livros, especialmente de sonetos (duas estrofes de quatro versos = quartetos; e duas de três = tercetos ou trísticos), enfeixando a produção de poetas bissextos, o mais importante dos quais, pela sua contemporaneidade, é a Antologia dos Poetas Bissextos Contemporâneos, organizada por MANUEL Carneiro de Sousa BANDEIRA Filho.

A produtiva industriosidade neológica brasileira – cearense, nomeadamente – já se serve de estender mais ainda o alcance de bissexto, de maneira que se diz, progressivamente, economista bissexto, administrador bissexto, articulista bissexto advogado, orador, comentarista e até bebedor bissexto; tudo isto sem remissão a fevereiro como o mês em que, por motivo óbvio – de acordo com a invencionice moleque do cearense – a mulher fala menos...

Não é o que ocorre, porém, no Brasil. com os “lava-jatos”, que, infelizmente, não são bissextos...


CRÔNICA - Essa Outra (ES)


ESSA OUTRA
Edmar Santos*


Cerveja é substantivo feminino. Para mim isso diz muita coisa, no que concerne a por que gosto tanto dela.

Pshu, a tampa reclamou quando largou do gargalo. O líquido amarelo dourado que derramava lembrava a princesa que, da torre, escorria seus longos cabelos até embaixo. No copo, a espuma branca reluzia a luz do sol, como um sorriso de quem acaba de fazer clareamento dental.

Ela me apetece. O prazer de degustá-la ao fim do dia, após uma jornada de trabalho, parece entorpecer a mente, enquanto o cérebro se prepara para o outro dia.

Em casa, certa vez, notei que minha mulher reparou na relação que eu tenho com a cerveja. Prestou atenção em cada ato do ritual que eu realizava para preparar um momento de degustação: aconchego das garrafas no congelador; taças específicas para o tipo lager; cumbucas com amendoim e castanhas de caju; cubos de queijo coalho ao azeite de oliva; linguiças toscanas que fritavam numa air fryer. Acho que o ciúme bateu!

Ela me indagou o porquê de tudo aquilo que eu estava fazendo; eu, com meu jeito de desentendido, disse que iria tomar uma cervejinha pra relaxar. Ela me olhou como quem estava sendo substituída por outra e disse imperiosa: “Coloque uma taça pra mim. Vou ver que gosto tem essa outra aí”. Essa oura aí? A ficha caiu!

Entendi que o problema não era comigo; era entre elas. Para mim, se a experiência com uma companhia feminina já é boa, imagina com duas. Bebi com mais prazer!


sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

CRÔNICA - Um Bar Com Nome de Cearense (WI)


UM BAR COM
NOME DE CEARENSE
Wilson Ibiapina*


Morando ou não no Rio, se você não frequentou, pelo menos já ouviu falar num dos bares mais famosos da cidade maravilhosa. O Antonio's surgiu em novembro de 1967 com o nome da música "Strangers In The Night". Imediatamente virou o ponto de encontro de artistas, cineastas, jornalistas, intelectuais e boêmios em geral, que movimentavam a noite do Rio.

Walter Clarck, Diretor-Geral da Globo, foi um dos maiores incentivadores do bar e restaurante. Ele garantia algumas noites repletas de globais, o que alimentava a fama. O empresário Alex Gonçalves lembra que o sucesso foi tão rápido quanto a decisão de Otto Lara Resende de trocar o nome da casa instalada na loja "C" da Avenida Bartolomeu Mitre, 297. O título da música que fazia sucesso na voz de Frank Sinatra não agradou. 

O banqueiro José Luiz Magalhães Lins, do Banco Nacional, rebatizou o restaurante de Antonio's em homenagem ao cearense Antônio Pereira, o cozinheiro preferido de Armando Nogueira, na época o todo poderoso diretor da Central Globo de Jornalismo. Os outros dois sócios do bar eram os espanhóis Manolo e Florentino. Os três viviam sob a proteção do guarda chuva do Banco Nacional. O cearense, pouco depois foi trabalhar em Nova Iorque, mas deixou seu nome batizando o recanto mais agradável da noite carioca.

Jornalista e escritor mineiro Otto Lara Resende aparecia lá quase todas as noites para a alegria geral. O pernambucano Nelson Rodrigues dizia que a grande obra de Otto Lara Resende era a conversa. “Deviam pôr um taquígrafo atrás dele e vender suas anotações em uma loja de frases". Pois foi esse frequentador assíduo que, certa noite, encontrou os fregueses tristes, parecendo todos preocupados com os rumos do regime militar que comandava o País. 

Conta o jornalista Carlos Henrique Santos que depois de alguns uísques, Otto, que nasceu com vocação para a galhofa, elevou o tom de voz e fez um verdadeiro discurso desancando a ditadura, convocando à resistência a juventude pensante ali presente (que outros chamavam de esquerda festiva). E fechou o seu pronunciamento indignado, quase aos gritos, desafiando os eventuais dedos-duros que se infiltravam no ambiente: “e, para provar que não tenho medo desses gorilas vou dizer meu nome. Podem anotar: “eu me chamo José Aparecido de Oliveira...”

Roniquito Chevallier, que perturbava a vida de todo mundo, era outro que estava lá todas as noites. Brigava e apanhava quando metia a mão no prato de comida das pessoas ou cantava as senhoras acompanhadas dos maridos. Roniquito era Ronald Wallace Carlyle de Chevalier, irmão da jornalista Scarlet Moon de Chevalier. Era amigo de juventude de Walter Clark, com quem trabalhou na TV Rio e na Globo. 

Muito culto, formado em economia e, segundo Rui Castro, inventor da palavra "aspone" (assessor de porra nenhuma). Rui acredita que Roniquito talvez tenha sido o sujeito mais sem censura da história de Ipanema. “Dizia o que pensava para qualquer um, não importava o cargo, a idade, a cor, o sexo, ou o tamanho da pessoa”. Quando ele morreu de enfarte em 1983, Carlinhos Oliveira escreveu: "Ninguém podia ser patife perto dele. Ninguém ousava". E Paulo Francis escreveu na Folha de S. Paulo: "Roniquito fazia o que não temos coragem de fazer - virar a mesa contra os horrores brasileiros.

O bar tem toda a sua história contada num livro que o jornalista paulista Mário Almeida escreveu depois de longas pesquisas. O jornalista Aramis Millarch, em matéria publicada em 1992 num jornal do Paraná, diz que o biógrafo do Antonio's dedica parte do livro ao cronista capixaba Carlinhos de Oliveira que nos anos 60 emocionava milhares de leitores do Jornal do Brasil. 

Aramis lembra que José Carlos de Oliveira, como cronista do "Caderno B" do JB, foi sem dúvida o mais folclórico e famoso de todos os fregueses do Antonio`s  de cuja varanda escrevia sua coluna e ali permanecia, às vezes, até 40 horas ininterruptas. Um dia o Antonio's foi invadido por ladrões que prenderam os fregueses no banheiro. Foi de lá que Carlinhos fez um apelo desesperado aos marginais: “Seu ladrão, leva os vales, leva os vales. Essa caixinha de charutos no caixa...”

O Antonio's foi a capela sagrada da boemia que agitava as noites do Rio nos anos 60 e 70. O cozinheiro cearense não deve ter ideia do que se passou além do seu local de trabalho E lá se vão mais de meio século.

O golpe militar de 64 tem mais de meio século. João Goulart estava na China quando Jânio Quadros renunciou em 1961. O vice retornou ao Brasil e teve que encarar um regime parlamentarista. Adotou discurso considerado de esquerda e foi derrubado em 64. Durante o regime militar, que durou até 1985, muita coisa aconteceu no País, inclusive essa historinha:

O jornalista Blanchard Girão era deputado estadual de esquerda quando estourou o golpe militar. Foi preso, e a mulher, Cleide, entrou em parafuso. Começou a correr atrás de advogados, amigos e autoridades para libertar o marido. O tempo foi passando e ela apelou até para Deus. Começou a rezar pedindo a liberdade do marido. Demorou tanto na prisão que um dia ela entrou em desespero: “Meu Deus! mande soltar meu marido. Será que você não vai ouvir as minhas preces, Senhor? Aí ela ouviu o filho de uns 8 anos acalma-la: Mãe, chore não. Deus vai lhe ouvir. Demora mesmo, mãe. O céu é muito alto”

NÃO ERA SUA VEZ
O ex-governador de São Paulo, Adhemar de Barros, aderiu ao golpe de 64 na última hora pensando em tirar proveito. Achava ele, segundo a Veja, que seria implantado um triunvirato: um general, um ministro do Supremo Tribunal Federal e um civil, que seria ele.

Acreditava que em seis meses, diante de divergências entre os três, ele seria o chefe da Nação. Dois anos depois estava cassado. Morreu em 69 de um ataque cardíaco. A revista lembra que, quatro meses depois, dois elementos da Vanguarda Armada Revolucionária roubava um cofre com 2,5 milhões de dólares que estava guardado na casa de uma amante de Adhemar, no Rio. A ação armada foi comandada por Carlos Araújo, com o apoio de retaguarda de sua companheira e namorada, Dilma Rousseff.

NÃO DE VT
Em Fortaleza, véspera do golpe, estudantes conseguem uma audiência com o governador Virgílio Távora, no Palácio da Luz. Queriam permissão para fazer o “enterro” de Lincoln Gordon. Fazendo cara de surpresa, o governador pergunta:  

– O embaixador americano morreu?

– Não, Governador, será um enterro simbólico.

– Permissão negada. No meu governo só enterramos os mortos.

NÃO DEU PARA RESISTIR
Naquela noite de 31 de março a rádio Dragão do Mar, de Fortaleza, não saiu do ar. Nazareno Albuquerque, Gamaliel Noronha e eu seguramos a programação com entrevistas e notícias que captávamos de emissoras do Rio, São Paulo, Brasília e Porto Alegre, onde estava Leonel Brizola. 

Já era dia primeiro de abril quando o operador Orlando Braga olha da varanda, no primeiro andar do prédio da rádio, na avenida do Imperador, e vê soldados do Exército desembarcando de caminhões que fechavam o quarteirão. Ele foi lá no estúdio e nos disse: “temos visita”. A rádio foi retirada do ar e alguns de nós detidos. Orlando Braga atende uma última chamada telefônica. Era um assessor do deputado Moisés Pimentel, de Brasília, pedindo para a Dragão entrar em cadeia com a Nacional, onde ele ia fazer um pronunciamento. Diga ao deputado, disse Orlando, que aqui já estamos todos na cadeia.

ÚNICA SAÍDA
Quando o país lembra o aniversário da ditadura, eu lembro o que aconteceu com Durval Aires, jornalista, poeta, compositor e amigo dos amigos. Ele era editor chefe de um jornal em Fortaleza quando foi convidado para visitar Cuba. Na volta, o golpe militar no Brasil. 

Durval vai preso, justamente por ter visitado a ilha de Fidel. Queriam saber de suas ligações com o regime, quais os planos. A mulher dele, Dona Alberice, vai visitá-lo no quartel militar, onde estava preso. Leva pijama, escova e pasta de dente. Na aflição dessa primeira visita, joga na sacola a primeira toalha que encontrou no roupeiro. Depois da visita, Durval vai abrir o pacote. Quase desmaia ao ver lá a toalha com a bandeira de Cuba, que ganhara em Havana. Foi sua preocupação nas semanas seguidas. Todo dia, mordia um pedaço da toalha, puxava os fios com os dentes, cuspia no vaso e dava descarga. Uma verdadeira operação de guerrilha. Fez isso até desmanchar a única prova material que tinha de sua visita à Ilha.


ARTIGO - A Sagração da Primavera (RMR)


A SAGRAÇÃO
DA PRIMAVERA
Rui Martinho Rodrigues*



Modris Eksteins (1943 – vivo), na obra “A sagração da primavera: a grande guerra e o nascimento da modernidade”, usou o título da peça de Igor Stravinsky (1882 – 1971) para o estudo que elaborou sobre o primeiro conflito mundial. O espetáculo do dramaturgo encena um rito sacrificial da Rússia, na chegada da primavera, quando imolavam uma virgem ao Deus Sol. Encenada em Paris, a representação foi vaiada e agredida.

Era uma nova escola de arte. Chocou o público e causou a reação violenta. O historiador formulou uma metáfora na qual a I Guerra Mundial foi um sacrifício análogo à chegada da primavera. A estação do degelo representava a chegada da modernidade. Uma constelação de fatores levou ao grande conflito: a competição industrial entre as potências europeias; o fortalecimento do nacionalismo; considerações de geopolítica e o choque resultante da chegada da modernidade.

A política do nosso tempo envolve interesses corporativos atentos aos rumos das reformas; o fundamentalismo das religiões civis, seculares ou políticas, empenhadas em conquistar o poder “desinteressadamente para construir um mundo melhor”; ambições pessoais; preocupações com garantias democráticas e com as instituições em que se amparam; temor de desastre econômico; valores morais e tantos outros fatores.

A mudança cultural rápida e profunda dos dias atuais, imposta pelo moralismo laico dos que se presumem esclarecidos, usando a tribuna dos arautos do “progresso”, sentindo-se herdeiros dos reis filósofos da República de Platão (428/7 – 348/7 a.C.) tornou-se um fator político importante. Erradicar costumes e tradições, inclusive ligadas aos mores, é parte do trabalho messiânico do puritanismo aludido.

Argumentos políticos tendem a conter o germe da vontade de potência mencionada por Friedrich Nietzsche (1844 – 1900). Lobos vestem pele de cordeiro. Projetos de dominação apresentam-se como libertários. Intolerantes acusam suas vítimas de praticar intolerância. A mudança cultural forçada sacrifica valores das tradições como a virgem morta em sacrifício dedicado ao deus Sol. A herança da presunção iluminista de superioridade moral e intelectual confunde o campo dos valores com o domínio das ciências em sentido estrito.

As ciências da natureza, tendo previsibilidade e sendo falseáveis, são superiores em relação a outras formas de conhecimento, no campo dos fenômenos naturais. A axiologia, porém, não tem compromisso com a falseabilidade nem aptidão para vaticínios. Valores não caem quando são descumpridos. As leis das ciências naturais não perdem validades se não forem obedecidas pelos fatos. Valores morais não perdem validade quando são desrespeitados.

A adjetivação pejorativa usada pelos arautos do mundo melhor, atribuindo status de preconceito aos conceitos tradicionais, qualificando abusivamente como fascista quem ousa discordar de seus dogmas, estimula respostas igualmente violentas, como a peça de Stravinsky, que recebeu ovos e tomates do público parisiense por agredir a estética tradicional do teatro do seu tempo.

Samuel Phillips Huntington (1927 – 2008) descreveu o potencial de conflito dos dias atuais como um choque entre civilizações, o que vale dizer, um choque entre culturas. Foi muito criticado. Mas o terrorismo associado a um certo tipo de islamismo corrobora com o autor citado. Jonah Goldberg classificou o movimento que pretende dirigir a sociedade ao modo de diretores de teatro como “fascismo de esquerda”, na obra assim intitulada. Na Física, ação gera reação em sentido contrário e de igual intensidade. Os fenômenos sociais não se regem por leis, mas a analogia é pertinente.


quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

RESENHA - Três Crônica, Mil Carnavais (AR)


TRÊS CRÔNICAS,
MIL CARNAVAIS
Alison Ramos*



O carnaval é o mote dos três textos: “Muitos Carnavais”, “Simbora Amar” e “O Inverno e o Carnaval”, de Reginaldo Vasconcelos. No entanto, o assunto, ainda que localizado no centro dos escritos, não ultrapassa a sua função de pretexto. Há, muito além desse elemento temático, necessário a todo princípio, uma poesia que nos permitiria atribuir, antes de tudo, valor lírico às crônicas. Esse lirismo, pelo menos no sentido básico do termo, está atravessado pela nostalgia. Nota-se, assim, a emergência de uma subjetividade que volta ao passado, fazendo desse tempo parte de sua expressão presente.

Nessa mistura, em que o ontem e o hoje se tornam quase indiscerníveis, o asfalto funciona como o misterioso fio que se desenrola e sustenta essa viagem lírica sob as rodas do tempo.  Quem não deseja ir rumo ao interior – geográfico – espelho de um interior maior e tão distante que a vista não alcança? A resposta poderia ser óbvia, mas é necessário que se diga: só aqueles que são capazes de ir “simbora” num ato de amor.

Não se trata de um amor ideal. Antes, é aquele amor que todos conhecem, mesmo sem saber. É o amor de quem escreve, como diria Proust, n’ A Busca do Tempo Perdido. É, no caso das crônicas, o amor de um folião que reconhece os retalhos mais coloridos de carnavais passados para compor a sua colcha. 

É o amor que não transcende, mas, permanecendo na imanência de todas as coisas – da Natureza – desdobra-se nas sensações. São os “trovões”, que rasgam “abismos celestes, abrindo-se em relâmpagos colossais”, que anunciam o inverno: “carnaval da natureza, que se fantasia de verde a festejá-lo, numa alegoria gigantesca.” No viço de tais fenômenos maravilhosos, brotam amores que, efêmeros, deixam o traço de um amor absoluto, sobre o qual aqueles que creem diriam tratar-se do amor de Deus.


Passada a folia de mil carnavais, em que dois tempos se cruzam – o presente e o passado – fecundando a vida dionisíaca e a criação poética, fica a quarta-feira. Não há mais cinzas, mas apenas a catarse de quem sobrevive e um asfalto lavado de saudade. 


MONOGRAFIA - Alfabetização de Crianças Autistas (RMCC)


ALFABETIZAÇÃO
DE CRIANÇAS AUTISTAS:
CAMINHOS POSSÍVEIS
Rafaella Maria de Carvalho Cruz*



RESUMO. Configura a taxionomia do autismo – Transtorno do Espectro Autista – TEZ – e faz rápida análise acerca do tratamento especializado desse desconcerto, por parte de docentes e terapeutas, a fim de proceder à inclusão de crianças com TEZ na escola pública regular, de acordo com a LDB, no que diz respeito a alfabetização e aprendizagem. 

Conclui ser possível operar ambos os mencionados propósitos, com o emprego de técnicas e estratégias especiais, consoante arrimo buscado na literatura relativa aos vínculos entre a ora estudada psicopatologia e os citados expedientes em curso por professores e profissionais da área de Psicologia Clínica.

A alfabetização conforma uma etapa da aprendizagem humana que privilegia distintos aspectos, tanto no atinente ao desenvolvimento psicológico quanto relativamente às habilidades cognitivas da pessoa, o que corresponde a uma quadra de constantes descobrimentos e desafios. Alfabetizar crianças autistas, então, corresponde a uma considerável peleja, em razão das suas dificuldades de comunicação e interação e, em alguns casos, de seus défices cognitivos. 

Assim, no que concerne, especificamente, ao decurso do letramento de crianças com essa psicopatologia de alheamento, procede-se à seguinte indagação: considerando-se que este aprendizado ocorre na interação de estudantes com professores, que possibilidades há de os discentes autistas serem alfabetizados, haja vista seus embaraços ao tentarem operar a interatividade?

Cada vez mais, em razão das prerrogativas da LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação), que determina incluir segmentos na Educação Infantil, crianças com o transtorno ora sob exame estão sendo inseridas em escolas regulares. Do ponto de vista das turmas iniciais, destaca-se a preparação dos pequenos para o início da alfabetização, fundamental para o bom desempenho nos demais períodos de aprendizagem. 

A motivação para se efetivar este ensaio adveio do paradoxo entre o aumento da demanda de crianças autistas pela sua inserção na escola regular e os poucos conhecimentos do público em geral sobre o assunto, bem assim em razão da assertividade dos procedimentos utilizados. Acredita-se ser possível identificar critérios e metodologias que venham possibilitar a aprendizagem e a qualidade de vida dos meninos e meninas autistas. (Continua)


  
*Rafaella Maria de Carvalho Cruz é graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará. Possui formação em Gestaltterapia em Crianças e Adolescentes, e em Terapia de Casal e de Família pelo Centro Gestáltico de Fortaleza; especialista em Psicologia Clínica e Institucional pela Universidade Estadual do Ceará – UECE. Tem vários trabalhos publicados em revistas especializadas brasileiras em sua área de atuação.


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terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

NOTA FÚNEBRE - Tadeu Nascimento e Chico Alves (LA)


NOTA FÚNEBRE
TADEU NASCIMENTO
CHICO ALVES
Luciara Aragão*


Luciara Aragão: Hoje, (17/2 17:23) estou triste com a morte do Tadeu Nascimento. Foi uma pessoa muito especial no surgimento da Sociedade Cearense de Cidadania.
 
Precedida da partida, no dia 13, do Chico Alves (Francisco Alves Maia), que tantas vezes hospedou as palestras do Dr. Cássio Borges nos saraus culturais da  Sociedade Cearense de Cidadania.


Tomamos a consciência de que a vida é uma vela acesa ao dispor do sopro divino. Que o céu se abra para recebê-los, numa aura de luz.


ARTIGO - Respeito e Política (RMR)


RESPEITO
E POLÍTICA
Rui Martinho Rodrigues*


O debate político atual faz uso recorrente da palavra “respeito”. É conveniente e oportuno explicitar o sentido daquilo que se diz. O dicionário de Francisco Fernandes e Celso Pedro Luft apresenta como sinônimos do vocábulo aludido: veneração, acatamento, reverência, submissão, obediência, consideração, contemplação e apreço. A literatura política clássica não usa tanto o termo, tão repetido nos dias atuais.

A tradição democrática, indubitavelmente, não se enamora da semântica do léxico citado. O que é próprio da democracia é a convivência pacífica com o diferente. Mas, paz não combina com a interpretação histórica que considera o conflito o motor do progresso. Então, a reivindicação de respeito ultrapassa a proposta de coexistência pacífica. Será um eufemismo para a exigência de submissão?

A visão do conflito como alavanca do progresso é um poderoso fator de legitimação em política. Mas o que é progresso? Qual o preço que estamos dispostos a pagar por ele? O caminho do progresso é seguramente identificável quando se trate de um problema específico. A tecnologia oferece tal coisa. Um motor mais potente, que produza menos resíduos e gaste menos energia, sendo mais durável, mais barato e mais simples de operar é um progresso relativamente ao modelo anterior.

O significado de progresso, quando referido a sociedade, leva ao debate sobre os critérios que o definem. Exigir tolerância, submissão, reverência ou acatamento não é uma forma de demonstrar a excelência de uma proposta política. Caso tolerância adquira o sentido de coexistência pacífica, esta não deve cercear a liberdade de expressão, o direito a crítica ou para constranger as consciências.

Classificar como preconceito juízo formulado sobre o que se conhece é um erro, pois se trata de conceito sem “pre”, já que não veio antes do conhecimento do objeto cognoscível. Pode, ainda, ser uma tática de constrangimento. É típico de um “puritanismo” político cujas origens Jonah Jacob Goldberg (1969 – vivo), na obra “Fascismo de esquerda”, situa no fascismo.

A intolerância está na atitude de quem exige submissão, reverência, acatamento sob o eufemismo “respeito”. Tolerantes contentam-se em coexistir pacificamente. Missionários políticos lutando por uma solução que alcance a raiz das desventuras humanas, empenhados em chegar ao céu sem precisar morrer, que Michael Joseph Oskshott (1901 – 1990) comparou ao esforço capitaneado por Mirode para chegar ao céu por conta própria construindo a Torre de Babel são intolerantes.

Vilfredo Paretto (1848 – 1923) nos descreve resíduos e derivações na forma de reminiscências cognitivas, axiológicas e emocionais que condicionam o nosso pensamento. Parece ser o caso de exigências de submissão a valores e concepções, camuflando-as sob o eufemismo tolerância, pretendendo cercear a loberdade de expressão e de consciência, desclassificando os valores do outro como preconceito.

O desconhecimento das razões do outro causa estranhamento. A divergência incomoda a que se presume esclarecido, dando a isso o significado de superioridade moral e intelectual. A isso se soma o messianismo laico, além dos resíduos e derivações inquisitoriais da Idade Média. Projetar a prória intolerância no outro pode ser um mecanismo de defesa. Pode ser também uma tática solerte de dominação.

A política tolerante deve ter em vista resultados pretendidos, a viabilidade delas, a credibilidade e os sacríficos necessários para implementar projetos. Defender um mundo melhor, fraternidade e bondades dignas de um anjo de luz não justifica a exigência de submissão camuflada de respeito.

Publicado no focus.jor.


domingo, 16 de fevereiro de 2020

CRÔNICA - Sobre Mulheres e Homens (ES)


Sobre Mulheres
e Homens
Edmar Santos*


Ainda é assim, por mais que possa parecer que não. Li de uma mulher: “É com um pouco de pudor que sou obrigada a reconhecer que o que mais interessa à uma mulher é o homem”. Ela também afirma que: “O que mais interessa ao homem é a mulher”. Depois infere em relação a ambos: “Como o homem nos dói, e como a mulher dói no homem!”.

A dor da in(compreensão). Como entender a mulher “o mais ininteligível dos seres vivos”? Talvez o único caminho de se chegar próximo desse ser tão imprevisível seja mesmo pelo amor; nele, “no amor onde a oposição pode ser um pedido”. Aí pode estar a provável chave da relação: não se pode definir com precisão, nem o amor nem a mulher; não sem que se cometa o erro da pieguice. Basta vivê-los com devoção.

Outra mulher me mostrou em seus escritos que, assim como um certo animal selvagem, elas teriam algumas características que lhes constituem: “percepção aguçada; espírito brincalhão; elevada capacidade de devoção;  gregária. É dotada de grande resistência e força; capacidade de parceria; adaptabilidade a constantes mutações; determinação feroz e coragem”. Tais características corroboram com o espectro de complexidade e inteligibilidade; ora, além de tudo isso ela ainda assume um avatar chamado mãe. Eu hein!

Elas vestem vermelho. “Vermelho é cor de dor de cabeça...” e quando elas vestem, sempre nos aguça essa dorzinha, tanto para quem acompanha, como para quem admira de longe: É como a beleza do pássaro que voa. Posso comparar as mulheres aos pássaros em beleza e apreciação de voos. E os homens? “Os homens são aqueles que perderam a confiança dos pássaros”.