A PORTA DO PECADO
Iolanda Andrade*
A inexorável serpente do Éden está sempre assobiando aos
ouvidos da eterna Eva. (Camilo Castelo Branco).
Majestosa,
lá estava a porta, com seu batente afável, convidando-nos à delícia do seu
aconchego. Larga, batente alto e fundo, de pedra lisinha, na altura ideal das
nossas pernas de crianças. Era, pois, um convite às inocentes conversas. Não
podíamos, porém, sentar nela [...] Era proibida. A Porta do Pecado!
Diversas
vezes, quase caí na tentação de pousar ali, no seu batente friinho. O proibido
sempre excita, não é mesmo?
Sempre
me impressionei com aquela porta. Situava-se na primeira casa da minha rua. Esta
permanecia constantemente fechada. Dia e Noite. Os donos da casa jamais
a abriam, apesar de ser a da fachada, de saída para a rua principal de Palmácia.
De
tê-la visto aberta não me lembro. E tenho boa memória. Por ser casa de esquina,
seus moradores se habituaram a usar sempre a saída que dava para a outra rua.
Ambas bastante movimentadas.
No
curso do dia, de quando em vez, estavam lá, sentados, às vezes rapazes, noutras
vezes, velhos. Quando os velhos, com suas bengalas e chapéus, eles fumavam
cigarros de palha, curtindo a passagem dos transeuntes, fato corriqueiros em
comunidades simples e pacatas.
Muitos
ali ficavam, também, no aguardo da chegada de parentes vindos de Fortaleza, nos
ônibus da Autoviação Pinheiro.
Durante
a noite, o dito portal era o ponto dos namorados, isto é, do casal que chegasse
primeiro. Como as janelas do Seu Renato,
com uma enorme diferença: nestas havia candura e inocência nos namoros, ao
passo que na outra – a do pecado –
nada disso ocorria. A moça que lá se sentasse à noite para namorar ficava falada na cidade.
E
tinha outra: ali nada de gororoba (borra de café colorau, açúcar e água), sob
preparo do Seu Renato para afugentar
os pombinhos de suas janelas. Naquela
porta larga, seus donos não notavam os amassos. Talvez nem soubessem da fama da
dita cuja.
E
as crianças? Ah, as crianças. Essas não deveriam nem passar perto dali. Era
aviso seriíssimo dos pais. – Lembram-se, Auxiliadora, Lucinha e Socorro
Andrade?
Certo
dia, numa manhã ensolarada, depois de ter assistido à missa dominical, uma
turma de cinco crianças conversava no patamar da igreja. Faziam parte da Cruzadinha Eucarística. Assim, seguia
todos os preceitos de verdadeiros cristãos: confissões e comunhões eram uma
constante.
E,
nessa troupe, passava horas e horas,
em profunda concentração e diversão, uma menina com o meu rosto e o meu nome,
feliz e participativa garota, gostando de tudo o que a Cruzadinha lhe oferecia.
No
meio do grupo infantil e de adolescentes membros da Cruzadinha – e de tudo o que havia de bom na simples Palmácia de
então – estava, também, a Du, filha
do Véi Berto – que coabitava (amancebado,
se dizia, então), na mesma casa, com duas irmãs (!): Regina e Chica Mestre.
A
Du era moça bonita, bem feita de
corpo, seios na medida, lábios carnudos e rosto atraente. Era uma das mais
anosas da turma. Tinha, porém, uma coisa de que a rotulávamos: era namoradeira!
E, constantemente, namorava na porta proibida! Nem por isso, no entanto,
deixava de ser nossa amiga. O mínimo era de que não havia cumplicidade.
Pois
bem: ao sairmos da igreja, depois de termos contado ao padre os nossos
“pecados” e assistido à missa, recebendo Jesus na Hóstia Consagrada, ficamos,
por alguns momentos, a conversar inocentemente a caminho de nossas casas para
irmos quebrar o jejum.
Nisso,
a conversa tornou-se animada. Falávamos do guisado que faríamos naquela manhã
no quintal da casa do Tio Luís Rebouças. Como estávamos em turma, nossos egos
se fortaleceram. E, quase “sem querer”, fizemos o que era defeso: sentamo-nos à
porta, para papearmos melhor.
O
“pecado” praticado durou pouquíssimos minutos. Somente o tempo da amiga Eluzane
(Deus a tenha!) nos lembrar de que aquele lugar tinha atrapalhado nossa
confissão e comunhão com Deus. Foi, então, correria total, de volta para a
igreja, que estava ainda cheia, por causa da realização de alguns batizados.
Atropeladas,
por cima do povo, corriam as crianças, ajoelhando-se no altar-mor, a pedir a
Deus e a todos os santos que as livrassem do pecado de haver naquela porta se
sentado. Foi muita reza cheia de ingenuidade que, com certeza, Deus ouviu.
Hoje
não existe mais isso. A candura cessou e com ela se vaporizou a inocência. Não
adiantam os conselhos dos pais; eles são caretas.
A onda agora é seguir os amigos, curtir a vida do jeito que entender.
Certa
vez, adulta, sentei-me na velha porta. Com um homem. Não me contive, e falei:
“como é doce rever-te, velha porta! Agora posso me sentar no teu gostoso
batente e, dessa vez, alimentarei o ego, depois de tanto tempo!”
Estava,
então, com meu marido, sentados. E passei a lhe contar essa estória verdadeira,
detalhadamente ...
O
lugar permaneceu o mesmo por muitos anos. Hoje é a entrada de um Pet Shop. Atualmente, os valores foram
deturpados ou quase nem existem. A axiologia moral, social e religiosa já não
predomina. E portas de pecado existem
e são inúmeras na cidade, por todos os cantos. Triste realidade.
*Iolanda Andrade é socióloga,
docente, prosadora e poetisa,
natural de Palmácia-CE.
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