quarta-feira, 27 de maio de 2015

CRÔNICA (IA)


A PORTA DO PECADO
Iolanda Andrade*


A inexorável serpente do Éden está sempre assobiando aos ouvidos da eterna Eva. (Camilo Castelo Branco).


Majestosa, lá estava a porta, com seu batente afável, convidando-nos à delícia do seu aconchego. Larga, batente alto e fundo, de pedra lisinha, na altura ideal das nossas pernas de crianças. Era, pois, um convite às inocentes conversas. Não podíamos, porém, sentar nela [...] Era proibida. A Porta do Pecado!

Diversas vezes, quase caí na tentação de pousar ali, no seu batente friinho. O proibido sempre excita, não é mesmo?

Sempre me impressionei com aquela porta. Situava-se na primeira casa da minha rua. Esta permanecia constantemente fechada. Dia e Noite. Os donos da casa jamais a abriam, apesar de ser a da fachada, de saída para a rua principal de Palmácia.

De tê-la visto aberta não me lembro. E tenho boa memória. Por ser casa de esquina, seus moradores se habituaram a usar sempre a saída que dava para a outra rua. Ambas bastante movimentadas.

No curso do dia, de quando em vez, estavam lá, sentados, às vezes rapazes, noutras vezes, velhos. Quando os velhos, com suas bengalas e chapéus, eles fumavam cigarros de palha, curtindo a passagem dos transeuntes, fato corriqueiros em comunidades simples e pacatas.

Muitos ali ficavam, também, no aguardo da chegada de parentes vindos de Fortaleza, nos ônibus da Autoviação Pinheiro.

Durante a noite, o dito portal era o ponto dos namorados, isto é, do casal que chegasse primeiro. Como as janelas do Seu Renato, com uma enorme diferença: nestas havia candura e inocência nos namoros, ao passo que na outra – a do pecado – nada disso ocorria. A moça que lá se sentasse à noite para namorar ficava falada na cidade.

E tinha outra: ali nada de gororoba (borra de café colorau, açúcar e água), sob preparo do Seu Renato para afugentar os pombinhos de suas janelas. Naquela porta larga, seus donos não notavam os amassos. Talvez nem soubessem da fama da dita cuja.

E as crianças? Ah, as crianças. Essas não deveriam nem passar perto dali. Era aviso seriíssimo dos pais. – Lembram-se, Auxiliadora, Lucinha e Socorro Andrade?

Certo dia, numa manhã ensolarada, depois de ter assistido à missa dominical, uma turma de cinco crianças conversava no patamar da igreja. Faziam parte da Cruzadinha Eucarística. Assim, seguia todos os preceitos de verdadeiros cristãos: confissões e comunhões eram uma constante.

E, nessa troupe, passava horas e horas, em profunda concentração e diversão, uma menina com o meu rosto e o meu nome, feliz e participativa garota, gostando de tudo o que a Cruzadinha lhe oferecia.

No meio do grupo infantil e de adolescentes membros da Cruzadinha – e de tudo o que havia de bom na simples Palmácia de então  estava, também, a Du, filha do Véi Berto – que coabitava (amancebado, se dizia, então), na mesma casa, com duas irmãs (!): Regina e Chica Mestre.

A Du era moça bonita, bem feita de corpo, seios na medida, lábios carnudos e rosto atraente. Era uma das mais anosas da turma. Tinha, porém, uma coisa de que a rotulávamos: era namoradeira! E, constantemente, namorava na porta proibida! Nem por isso, no entanto, deixava de ser nossa amiga. O mínimo era de que não havia cumplicidade.

Pois bem: ao sairmos da igreja, depois de termos contado ao padre os nossos “pecados” e assistido à missa, recebendo Jesus na Hóstia Consagrada, ficamos, por alguns momentos, a conversar inocentemente a caminho de nossas casas para irmos quebrar o jejum.

Nisso, a conversa tornou-se animada. Falávamos do guisado que faríamos naquela manhã no quintal da casa do Tio Luís Rebouças. Como estávamos em turma, nossos egos se fortaleceram. E, quase “sem querer”, fizemos o que era defeso: sentamo-nos à porta, para papearmos melhor.

O “pecado” praticado durou pouquíssimos minutos. Somente o tempo da amiga Eluzane (Deus a tenha!) nos lembrar de que aquele lugar tinha atrapalhado nossa confissão e comunhão com Deus. Foi, então, correria total, de volta para a igreja, que estava ainda cheia, por causa da realização de alguns batizados.

Atropeladas, por cima do povo, corriam as crianças, ajoelhando-se no altar-mor, a pedir a Deus e a todos os santos que as livrassem do pecado de haver naquela porta se sentado. Foi muita reza cheia de ingenuidade que, com certeza, Deus ouviu.

Hoje não existe mais isso. A candura cessou e com ela se vaporizou a inocência. Não adiantam os conselhos dos pais; eles são caretas. A onda agora é seguir os amigos, curtir a vida do jeito que entender.

Certa vez, adulta, sentei-me na velha porta. Com um homem. Não me contive, e falei: “como é doce rever-te, velha porta! Agora posso me sentar no teu gostoso batente e, dessa vez, alimentarei o ego, depois de tanto tempo!”

Estava, então, com meu marido, sentados. E passei a lhe contar essa estória verdadeira, detalhadamente ...

O lugar permaneceu o mesmo por muitos anos. Hoje é a entrada de um Pet Shop. Atualmente, os valores foram deturpados ou quase nem existem. A axiologia moral, social e religiosa já não predomina. E portas de pecado existem e são inúmeras na cidade, por todos os cantos. Triste realidade.


*Iolanda Andrade é socióloga, 
docente, prosadora e poetisa, 
natural de Palmácia-CE

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