O SUICÍDIO INTERPRETADO SOB O PRISMA
DE UM TEÓRICO DO CATOLICISMO (1)
O suicídio não é abominável
porque Deus o condena. Pelo contrário, por ser abominável é que Deus o condena.
(Immanuel KANT. YKönigsberg,
22.04.1724; †12.02.1804)
Procedeu-se,
recentemente, em atendimento a fins acadêmicos, à leitura do livro Bioética – desafios éticos no debate contemporâneo, onde Luís
Antônio Bento evoca o fato de o ser humano atual perpassar difícil fase da
história, permeada por múltiplas e rápidas transformações, alastradas
globalmente. Essas mudanças – aduz – interferem nos modos de pensar e agir,
afetando as relações socioculturais e até vinculações religiosas.
Na
interpretação livre procedida em parte do texto, compreendeu-se o ato suicida,
do modo como divisa o Autor – sob o ponto de vista da confissão católica e sem
descer a explicações da Ciência Psicológica nem de outras fontes disciplinares – ao expressar a noção de que, perante tantas inovações, a pessoa entra em
crise, sente-se insegura, de modo que não sabe o caminho a seguir.
Há
de se convir na ideia de que jamais a humanidade experimentou tanta abertura de
liberdade como nos dias de hoje. Contrastando com esse panorama, apontado pelo
autor, surgem outras formas de escravidão social e psicológica, de modo que são
muitas as forças destrutivas a molestar os seres humanos. Dentre estas, estão conflitos
políticos, sociais, econômicos, raciais e ideológicos. Influenciado, então, por tantas interferências
complexas, o ente humano sente dificuldades de autoafirmação. Seu pensamento
balança entre a esperança e a angústia, e ele não sabe se posicionar ante tais
desafios – exprime escritor.
A
história caminha tão celeremente que os seus protagonistas não conseguem acompanhar
o próprio ritmo. Esse descompasso põe na berlinda, muitas vezes, os valores da
estrutura familial. Surge outro modelo de humanismo, marcado por contradições e
desequilíbrios, e os grupos familiares são importunados por tensões decorrentes
das condições demográficas, como também por circunstâncias econômicas e
sociais.
De
efeito, esses conflitos desencadeiam desgraças, das quais o gênero humano é,
simultaneamente, origem e vítima (GAUDIUM
ET SPES).
2 FIM À PRÓPRIA
VIDA – INCÓGNITA
Malgrado
o grande desenvolvimento das Ciências Sociais e de outras vertentes do
conhecimento ordenado, particularizando a Psicologia e a Psicanálise, o
suicídio continua sendo um enigma, pois tem continuidade por séculos a fio,
como incógnita, sem explicação plausível, de sorte que seu espectro não se
limita apenas a causas psicológicas, psicanalíticas ou sociológicas, porquanto é
expresso como muito mais abrangente, o que não compete aqui debater.
No
seu magnificamente delineado escrito, o autor ensina que o fato de pôr termo à
própria existência representa morte intencional, autoinfligida, quando a pessoa
experimenta uma situação-limite, não suporta mais a pressão criada por ela
própria, por terceiros, ou pela sociedade, indiretamente. As condições psicológicas
sobram alteradas, restando difícil raciocinar com clareza. Parece que só existe
um foco, ficando aquele sob essa compressão polimotivada a maquinar o intento,
até lograr efetivá-lo.
Os
registros históricos, consoante alvitra L.A.B., assentam a constante ocorrência
de autopassamentos, e as tentativas visando a este propósito se expandem por
toda a Terra nas mais diversas épocas. Consoante ele informa no ensaio sob
comentário, dados da Organização Mundial da Saúde dão conta de que, atualmente,
um milhão de pessoas se matam por ano no mundo. Os índices globais de suicídios
oscilam de 25 mortes em cada cem mil habitantes. No Japão e países do
Continente Europeu, como Espanha, Itália, Irlanda e Holanda, bem assim no
Egito, a taxa é reduzida para até menos de dez mortes a cada cem mil
habitantes.
A
maior incidência de vítimas está no segmento de adolescentes e jovens abaixo
dos 30 anos. Fato curioso – sugere o autor – é que o suicídio atinge mais os
homens, apesar de as mulheres tentarem mais.
Visando
ao caráter social, destacam-se os desempregados como maioria das vítimas, ao
passo que os profissionais liberais representam minoria. São as mais incidentes
causas geradoras desse agravo lamentável a solidão, o sentimento de
inutilidade, a privação afetiva e de integração social. Daí a constante
ocorrência entre viúvos, divorciados e outros que vivem sozinhos – completa.
Na
lição de M.A.B., suicida é uma pessoa que decide se anular, pois seu projeto é
fugir de sofrimentos, físicos ou psicológicos. Quando uma personagem está
enfrentando crise depressiva, é mais passível de ser alvo de suicídio, prefere
a morte no lugar da vida insuportável.
O
escritor dá conta do fato de que a Igreja Católica, Apostólica e Romana
abominava esse evento. Não assentia em que se efetivassem nem missas de corpo
presente. No tempo corrente, a filosofia eclesiástica decodifica diferentemente
tal acontecimento, pois não o considera mais uma ação moral. Não faz julgamentos
da vítima e a recebe com misericórdia.
Ele
indigita três motivos básicos para a taxinomia do autocídio como imoral: a) é
uma fuga individual que atenta contra o princípio da autoconservação vital; b)
cuida-se de negação social, deixando-se de contribuir para o bem da sociedade;
e c) constitui falha no âmbito religioso, pois atenta contra o quinto
mandamento do Decálogo Mosaico – NÃO MATAR.
O
suicídio direto representa falha contra si, desfavoravelmente ao próximo e sem
mercê a Deus. É oposto à dimensão da moral religiosa. O catecismo da Igreja
Católica acentua: ”O suicídio é gravemente contrário à justiça, à esperança e à
caridade. É proibido pelo quinto mandamento”. (Nº 2325). As pessoas que o
demandam arrostam conflitos internos e externos e não vislumbram possibilidades
de solvê-los.
O
Catecismo da Igreja Católica aponta “distúrbios psíquicos de natureza grave, a
angústia ou o medo grave da provação, do sofrimento ou de tortura podem
diminuir a responsabilidade do suicida”. (Nº 2282).
3 O SUICÍDIO INDIRETO
No entendimento do escritor agora
comentado, a justificativa da morte perante valorações superiores é havida pela
tradição moral como suicídio indireto. A morte não é o fim, e sim o meio, para
se atingir bom resultado. Os mártires doam sua vida para testemunhar o amor de
Deus. A doação da vida numa dedicação aos enfermos contagiosos provoca a morte
gradual. No caso, o óbito não é o fim útil, porém um gesto caritativo. Os
doutrinadores católicos consideram de duplo efeito, porque a morte não é
intencional, mas acidental. A atitude pode ser havida como ato heroico de
demonstração de amor ao próximo.
No
que concerne à responsabilidade pelo suicídio, as compreensões da Sociologia,
Psicologia e outros saberes – como alvitra o autor glosado – acentuam o fato de
que aquele a impor um termo à própria vida não é responsável por esse ato. Na
óptica eclesiástica, em contraposição, o suicida responde por isso, pois, pelo
fato de ser ato humano, comporta, minimamente, algo de liberdade.
Além
da de perfil direto, existem outras modalidades de suicídio: o de ordem
indireta pode ser classificado de ato consciente, inspirado na caridade heroica,
de modo que se configura, de maneira equivocada, como uma obediência aos
desejos de Deus.
O
suicídio por amor está embasado no amor ao próximo, tendo como paradigma a
generosidade de Jesus Cristo. A pessoa
se expõe ao martírio, acreditando solidarizar-se com os sofredores.
O
autor sob modesto exame também protege a noção de que a eutanásia, por exemplo,
é algo muito complexo, bastante questionado, ou seja, se vale a pena prolongar
a vida em situação de sofrimento extremo, ou deixar seguir o curso normal.
É
notório o fato de que a prática do suicídio se dá em qualquer instância, desencadeia-se
pela existência de um vazio, uma falta de sentido para a vida. No momento em
que surgir uma centelha de esperança, de possibilidade de uma vida feliz,
certamente, o desejo de autoimpor o fim vital é eliminado. A fé em Deus muito
contribui para afastar a infelicidade, que pode despertar a vontade de desistir
de viver.
O
autocídio nega o cumprimento do dever social e histórico, sendo o
individualismo um dos grandes agravantes para o surgimento da ideia de
autodestruição, consoante expresso em Bioética – desafios éticos no debate
contemporâneo.
4
O OUTRO COMO CONCORRENTE
Luís
Antônio Bento entende – como o orbe inteiro o faz – o homem com estrutura de
ser social. Quando, por qualquer motivo, se isola, começa a sofrer a solidão e
perder o sentido da vida. Falta, por parte da sociedade, atenção para com os
semelhantes.
Comum
é considerar o outro apenas como um concorrente, alguém que disputa algo
conosco. Inexiste o diálogo, uma troca sempre tão rica que se experimenta no
convívio social. A deficiência, sob este aspecto, o sentido de proximidade, tem
consequências funestas.
Na
opinião de Pellizzaro (apud BENTO,
2008), esse questionamento é de fundamental importância, uma vez que essa
lacuna pode ensejar o desencanto em relação à vida. Na perspectiva do autor
opinante, ora chamado por Bento, para se solucionar essa deficiência nos
relacionamentos sociais, é necessário algo fundamental e simples, a nós
ensinado por Jesus Cristo: o amor ao próximo.
Mera
é a proposta de aproximação, mas sua aplicação solicita a se refletir em muitos
aspectos complexos, sendo necessária uma avaliação técnica, tanto no âmbito
individual como na contextura social. O apoio da família é muito válido nessa
fase tão delicada.
Pellizzaro
sugere, ainda, rever alguns dos valores éticos fundamentais que possam atribuir
algum sentido à vida e fortalecê-la na ocasião das crises. Desse modo, podemos
assegurar que a prevenção pertinente para o suicídio é de ordem moral, de
perfil social e cunho religioso.
De
acordo com a reflexão de Paulo [...] “Sabemos que a Lei é espiritual, mas eu
sou humano e fraco, vendido como escravo ao pecado. Não consigo entender nem
mesmo o que eu faço; pois não faço aquilo que eu quero, mas aquilo que mais
detesto. Ora, se eu faço o que eu não quero, reconheço que a Lei é boa; portanto,
não sou eu quem faço, mas é o pecado que mora em mim. Sei que o bem não mora em
mim, isto é, em meus instintos egoístas. O querer bem está em mim, mas não sou
capaz de fazê-lo. Não faço o bem que quero, e sim o mal que não quero. Ora,se
faço aquilo que não quero, não sou eu que o faço, mas é o pecado que mora em
mim. Assim, encontro em mim esta lei: quando quero fazer o bem, acabo
encontrando o mal. No meu íntimo eu amo a lei de Deus; mas percebo em meus membros outra lei
que luta contra a lei da minha razão e que me torna escravo da lei do pecado
que está em meus membros. Infeliz de mim! Quem me libertará desse corpo de
morte? Sejam dadas graças a Deus, por meio de Jesus Cristo, nosso Senhor. Assim pela razão eu
sirvo à lei de Deus, mas pelos os instintos egoístas sirvo à lei do pecado”. (ROMANOS, 7, 14-25).
5
A MODO DE TÉRMINO
Mediante
a lúcida elocução do autor cujo texto ora se examina, constantes mutações
ocorrentes no meio social são passíveis de desestabilizar as pessoas, de modo a
se sentirem inseguras e infelizes, ao ponto de se desencantarem em relação à vida.
O
homem, sendo um ser social por natureza – na ocorrência de seu afastamento do
convívio com seus circunstantes – é objeto de prejuízos incalculáveis, sendo
esta causa, talvez, a que mais o conduz a intentar contra a própria vida.
Têm
ressalto, ainda, o fator econômico, o sentimento de inutilidade, o individualismo
e a míngua de afeto.
Aquele
em decurso de entrega ao suicídio está, pois, com as frequências cerebrais
alteradas, sofrendo grande pressão psicológica, de modo a não ter sucesso em
reverter a situação até materializar seu desígnio lastimável.
Fato
curioso, lembrado pelo autor, é observável: há discreta divulgação nos casos de
suicídio. Os meios de propagação coletiva - é verdade - suprimem, rejeitam
eticamente a possibilidade de lhe conceder visão pública. Procura-se, por
conseguinte, não tornar massiva a ocorrência, pois pode produzir emulação em
pessoas já predispostas a perpetrar esse ato tão insólito.
Nada
justifica, por fim, o suicídio, pois assalta a preservação da vida e se deixa
de ser útil à sociedade. Na perspectiva de Luís Antônio Bento, não se tem,
entretanto, o direito de julgar as pessoas que assim procedem, de sorte a caber
a Deus o entendimento de tal comportamento, porquanto apenas Ele é capaz de
conhecer e compreender o coração humano.
BIBLIOGRAFIA RECOMENDADA
1
BENTO, Luís Antônio. Bioética: desafios éticos no debate contemporâneo. São Paulo: Paulinas, 2008.
2 AAVV.
Dicionário de Teologia Moral. São Paulo: Paulus, 1997.
3
CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Pastoral Galdium et
Spes.
São Paulo: Paulinas, 2007.
4 EDIÇÕES
LOYOLA. Catecismo da Igreja
Católica. São Paulo, 1999.
5 EDIÇÕES
LOYOLA. Bíblia Sagrada. TEB. São Paulo, 1994.
(1)
Interpretação do livro (parte referente ao suicídio) Bioética – desafios éticos no debate contemporâneo, da autoria de Luís
Antônio Bento, como tarefa realizada para a disciplina Bioética, do Curso de Graduação em Teologia da Faculdade Católica
de Fortaleza, sob a regência do Prof. Dr. Pe. Marcos Mendes.
(2)
Socorro Mesquita é bacharela em Eventos, pela Faculdade Integrada de Fortaleza,
e estudante do Curso de Teologia da Faculdade Católica de Fortaleza (antigo
Seminário Arquidiocesano de Fortaleza).
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