terça-feira, 19 de maio de 2015

ARTIGO (VM)

Sombras do Iluminismo

AUFKLÄRUNG
OPORTUNO, SURPREENDENTE E CHOCANTE
 Vianney Mesquita*

Somente evitam a luz os escaravelhos, ladrões e ignorantes. (Paolo Mantegazza. YMonza, 31.10.1831; San Terenzo, 28.08.1910).

         
Conforma-se meio complexo, porquanto não fazem parte dos meus cuidados acadêmicos os motivos filosóficos (a não ser en passant e sem o necessário refinamento), aportar considerações preliminares mais meticulosas a respeito de uma das derradeiras produções do saudoso, irrequieto e esmeradamente analítico filósofo cearense Manuel Soares Bulcão Neto (Fortaleza-CE, 1963-1912).

O livro sob descrição porta o título, alegórico por excelência, sintético de sua temática, Sombras do Iluminismo, projetadas sobre o futuro da sociedade herdeira dessa lucerna de foco giganteu, incendida nos Oitocentos e ainda hoje ilustrando a Humanidade, porém sem alcançar os pontos cegos, tão bem identificados, por Soares Bulcão Neto, nos enganos de vários dos seus protagonistas, com os quais o Pensador cearense, ao expedir sobejos motivos, exprime comportamento arrazoadamente mordaz.

Sapateiro, não ultrapasse as sandálias (Ne sutor supra crepidam) – sugere-me Caio Plínio Segundo, o Antigo, juízo logo acatado, pois, não sendo sapateiro, a mim é interdito comentar, jamais sem o exato desvelo epistêmico, a respeito dos chinelos desse novo Apeles gnosiológico, o qual me convidou, decerto por desavisado, para batizar essas ideações de sua lavra no Jordão mercadológico editorial brasileiro.

Sua farta e sobriamente erudita composição, seguramente, conquistará aqueles consulentes mais aprestados, sob o espectro intelectual, para a recepção de conceitos de tal modo entranhados e tão bem refletidos, chegando a se constituírem fautor de facilidades acolhedoras das ideações no volume sustentadas.

Obviamente, conquanto somente com a finalidade de recepcioná-los, eximindo o leitor do intento de os defrontar – a fim de debater os entendimentos filosóficos expressos na obra em comento – é requerido certo aparelhamento de haveres informativos da parte de quem experimentar o lance de apreciar o livro, hajam vistas o volume multiface das matérias concertadas, cobrindo a exuberante árvore classificatória do conhecimento, ao ultrapassar a opinião comum, sob os prismas filosófico, teológico e científico.

Consoante às teorias da recepção, aqui me cumpre, por oportuno, remeter o leitor, entre outros, à obra do espanhol de nascimento (Ávila, 1937) Jesús Martin-Barbero (in SOUZA, org. 1995), semiólogo, filósofo e antropólogo colombiano, o qual cuida do tema com a necessária distinção e procedente congresso de argumentos.

De passagem, exprime a noção conforme a qual, entre as pontas do decurso informacional, por Berlo (1976) chamado de processo da comunicação, deve ocorrer equilíbrio fiel.

Em didático e sempre atual ensaio, publicado em 1960, do qual se extraíram dez edições, esse professor de Berkeley (Y1929) – academia californiana – reporta-se, em longo segmento, à qualidade da comunicação e aos embaraços da sua recepção.

Assim, grandes são as possibilidades de, no transcurso da mensagem, desde sua geração por sua fonte até o polo terminal (pessoas e grupos), aflorarem óbices, por ele denominados ruídos, para dificultar a demodulação total do produto transitado pelo intento de comunicar desde a origem.

Impõe-se, por conseguinte, esteja a trilha da mensagem entre a fonte originária (emissor) e o extremo do ato (receptor) totalmente liberada de empecilhos e anteparos, a fim de alcançar comunicação altamente fida, na qual o teor do discurso é captado e compreendido, sem ruídos de qualquer natureza (BERLO, 1976).

Não se delineia tão simples, é claro, o estabelecimento desta idealidade, porquanto o ato comunicativo envolve sempre um dúplice aspecto – informativo e expressivo. (MESQUITA; CYSNE, 1994).

A probabilidade de se obter, na relação emissor/recebedor, uma comunicação em alta fidelidade é maior, no caso de se considerar somente a dimensão informativa da mensagem. Conquanto esta inexista exclusivamente com um desses aspectos, consoante é modelo o teor plurifocal desse livro, há em cada circunstância dosagem maior de informação ou de expressão.

Eis o motivo pelo qual, mesmo sendo desnecessário recorrer à literatura para explicar “algo tão notório” – dirão alguns; e talvez empregando tautologias lógicas e gramaticais para proceder, inocuamente, a “revelações” diafanamente manifestas, tenciono somente evidenciar o elevado nível do repertório sorvido pelo autor desse estudo para comunicá-lo aos seus pares, conjunto de pessoas ilustradas a quem é possível lhe acompanhar o raciocínio, acolitando-o em suas bem examinadas razões.

De outra parte, entretanto, uma vez socializadas suas reflexões por este suporte informacional de papel, bastante multiplicado em edição industrial moderna, o livro é munífico ao público de modo geral e, em sua maioria, este é diametralmente diverso, como receptor, em relação às competências comunicacionais de seu autor/emissor.

Os leitores mais bem postos sob o ponto de vista acadêmico conduzem seu capital cultural (BOURDIEU, 1997), de sorte a não se cogitar em dificuldade de recepção da parte desses privilegiados  concessão buscada cuidadosamente durante dias e noites em demorosas leituras.

Nesse tempo intermédio, no concernente ao grande contingente de leitores a ser, decerto, granjeado por este livro – conquanto em circunstâncias diferentes daquela plêiade há pouco mencionada – a decifração ocorrerá mais demorada, a despeito de se mostrar o texto limpo, escorreito, correto, conciso, preciso e até claro, no referencial de receptores com aptidões comunicativas semelhantes às do engenho do Autor.

De toda sorte, os atributos intelectuais do compositor dessa produção - onde consta sua irrepreensível capacidade de se manifestar em língua portuguesa, da qual conhece as sinuosidades gramaticais e elocutórias, com perfeito domínio do léxico, sintaxe e riqueza vocabular  certamente, serão de significativo adjutório no acesso às posições corajosas de sua assunção, relativamente à meia-luz, ao lusco-fusco prolongado até depois do Século XVIII por alguns pensadores insertos no período do Esclarecimento.

Impende-me ressaltar, neste passo, sua intrepidez desmedida, ao se contrapor veementemente às ideologias cientificistas do Tempo da Claridade, feito dicaz analista de pressupostos e acerbo crítico de ideações viciadas e equívocas, muitas das quais se estabilizaram no curso de até séculos, conduzindo gerações inteiras ao ardil e às percepções falazes.

Atualizado magnificamente no estado d’arte das Ciências, Humanidades e Tecnologia, versado no conhecimento teórico dos saberes físicos e naturais, nas descobertas e invenções, Bulcão Neto ostenta, exempli gratia, a afoiteza de assacar contra o “monstro sagrado” Karl Marx a tacha de escritor prolixo; bate firme nas ideações racistas do “diletante francês” Arthur de Gobineau, no Ensaio sobre a desigualdade das raças, de 1855, e, em rebordosa, toma de assalto as equivocações de Charles Darwin e Houston Stewart Chamberlain, tudo isso concernente à superioridade racial.

A respeito do Autor da Teoria da Evolução – apenas para o leitor divisar a mordacidade razoada do escritor ora sob exame, em dezenas de increpações àqueles a projetarem penumbra sob o facho da Enorme Lanterna – reproduzo este excerto (BULCÃO NETO, 2006, p.51):

Assim como uma tela em branco apenas assinada por Salvador Dali tem mais valor do que um quadro de um pintor talentoso, porém pouco conhecido, pela mesma razão – ou melhor, “desrazão”, os palpites infelizes de Darwing  (um Cientista com “C” maiúsculo, criador da revolucionária teoria sobre a origem das espécies por meio da seleção natural ou das raças favorecidas na luta pela existência) contribuíram muito mais para dar a esse monturo de excrementos cerebrais a aparência  de doutrina “científica” sólida. (Realcei).


Corre solta e ampla a censura da rejeição global, a torto e a direito, de cujo látego nem escapou o matemático e físico francês Jules Henri Poincaré, conquanto, aqui e acolá, exprima algo como “[...] os brilhantes estudos de Erich Fromm, Adorno e Horkheimer acerca da personalidade e do caráter revolucionário [...]” (IDEM), três dos da Escola de Frankfurt, livrando, também, em determinada passagem, a pele do ucraniano Leon Trotsky (morreu, assassinado, em Coyoacán-México, em 21.08.1940), havendo-o por, quiçá,

[...] o único marxista que considerou seriamente a possibilidade de “falseamento” por meio da experiência, de algumas das predições do materialismo histórico – dentre os quais o caráter revolucionário do proletariado e o comunismo como movimento real. (IBIDEM).

A fim de verberar desta maneira, com tamanho ardor, certamente, é preciso a quem o faz encerrar uma epistemologia pessoal exigente, punctum saliens da personalidade intelectual do Autor.

Isto porque, conhecendo em profundez não só o pensamento desenvolvido durante o Século das Luzes, como também ao conduzir preciosos haveres culturais no terreno fertílimo do conhecimento geral, é dotado de elevado poder analítico, exibido neste seu exercício de inteligência, numa linguagem avessa a lugares comuns, frases feitas, manias e clichês, sempre muito recorrentes no repertório didático-acadêmico.

A propósito, um dos aspectos mais avultantes na escrita e no ideário deste Filósofo é o fato de não mourejar na Academia, pois, embora tenha nela se movimentado e se feito causídico (Faculdade de Direito da UFC), desenvolvendo ofício absolutamente adverso aos temas filosóficos e culturais próprios da ambiência universitária, cursou, mediante estudos informais intensos, na autodidaxia de recesso de sua casa, febril atividade mental.

Daí extrai produção de insuperável qualidade internacional, conforme o atestam As Esquisitices do Óbvio e este Sombras do Iluminismo, onde comprova, à farta, todo o vigor intelectivo e a enorme dimensão do analista percuciente das elevadas causas e dos mais multifacetados efeitos.

Declara-se, taxativa e publicamente, ateu. Seguramente, é a comprovação de sua inquietude exasperada pela vontade infrene de saber, de conhecer todas as coisas, nas quais vota suspeição até o deslinde da verdade.

Católico praticante como sou, porém, só posso é acreditar piamente, ainda mais, no fato de uma criatura tão bem aquinhoada pela inteligência e prontidão intelectiva proceder de Deus, ser criado pela Mão Divina. Não pode ser de outro jeito!

No livro Repertório Transcrito, capítulo “Reencarnação – evidências científicas e bíblicas”, reporto-me à obra com igual título do facultativo mossoroense Josivan Dantas, ideia reiterada aqui, permutatis, permutandis: estou distante de me sentir heresiarca e apóstata, hajam vistas a liberdade plural de pensamento e a necessidade de conhecer, em profundo, as cristalinas verdades de mentes privilegiadas pela inteligência,  que Deus (Divino e Humano, creio) concedeu aos humanos – e, mormente em grande estilo, deu por outorga ao preclaro intelectual Manuel Soares Bulcão Neto.

Registro, pois, sem medo do Index e da excomunhão informais (os verdadeiros foram extintos), a intenção de poderem se abeberar os leitores, com o máximo de proveito, da sabedoria artisticamente expressa na filosofia grandiloquente deste volume, o qual haverá de correr mundo e mentes, a fim de aparelhá-los e consertar, à vista de tão opulentas lições, seus entendimentos obnubilados pelas sombras do Iluminismo, ainda a cortarem e esticarem os pés de muitos viajantes pela vida afora...

Eis aqui, por conseguinte, um Teseu para este Procusto.

BIBLIOGRAFIA

BARBERO, Jesús-Martin, In SOUZA, Mauro Wilton (Org.). Sujeito, o lado oculto do receptor. São Paulo: Brasiliense, 1995.
BERLO, David Kenneth. O Processo da Comunicação. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1976.
BOURDIEU, Pierre. Capital cultural, Escuela y Espacio Social. Mexico: Siglo Veinteuno, 1997.
BULCÃO NETO, Manuel Soares. As Esquisitices do Óbvio. Fortaleza: APEX, 2005.
___________________________. Sombras do Iluminismo. Rio de Janeiro: Sete Letras, 2006.
MESQUITA, Vianney; CYSNE, Fátima Portela. O Termômetro de Mc Luhan – bases para reflexão interdisciplinar. Fortaleza: Edições UFC, 1994.
MESQUITA, Vianney. Arquiteto a Posteriori. Fortaleza: Imprensa Universitária da U.F.C., 2013.
___________________. Repertório Transcrito. Sobral: Edições UVA, 2003.

SOUZA, Mauro Wilton de (Org.).  Sujeito, o lado oculto do receptor. São Paulo: Brasiliense, 1995.



*Vianney Mesquita 
 Docente da UFC 
Acadêmico Titular da Academia Cearense da Língua Portuguesa  
Acadêmico Emérito-titular da Academia Cearense de Literatura e Jornalismo 
Escritor e Jornalista

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