sexta-feira, 30 de junho de 2023

ARTIGO - Deus Seja Louvado - Divisa nas Cédulas Brasileiras (VM)

 De Retorno a um Velho Tema
DEUS SEJA LOUVADO
DIVISA NAS CÉDULAS BRASILEIRAS
Vianney Mesquita*

                                               

Suprime a Deus e terás a noite dentro da alma. [Alphonses Marie Louis de Prat LAMARTINE. 1790-1869].


Nas nossas vigílias reflexivas ocorrentes de modo sistemático, conforme sucede com a maioria das pessoas, conduzimos a memória à conjuntura glosada à sequência, assunto já bem distante do tempo ora percorrido, eximindo-nos totalmente de nos louvar em quaisquer conformações políticas, tampouco em aproximações ideológicas e, ainda, postado como republicano afeito à Constituição, respeitoso aos demais credos em curso, sejam mono ou politeístas. 

Como exemplo da inscrição  em francês no brasão da Família Real Britânica – Dieu et mon Droit, bem como no assentamento nos papéis-moeda de dólar estadunidense – In God we Trust, veio o então Presidente José Sarney solicitar ao Banco Central do Brasil que incluísse na parte inferior esquerda de todas as notas de cruzado (1986) a insígnia Deus Seja Louvado. 

Orientado por doutrinas teístas de outros Estados leigos, o Chefe do Executivo nacional, o pinheirense (MA) José Sarney de Araújo Costa, de crença católica e imortal da Academia Brasileira de Letras, certamente, pensara nas diversas controvérsias que a decisão acarretaria, em decorrência de a Nação Brasileira constituir um Ente Estatal leigo. 

Em consequência de não conformar, entretanto, a oportunidade de descender a pormenores acerca dos tentames de remoção da ideia – incluindo moções jurídicas e propostas parlamentares, que demandaram extensos períodos, algumas das quais ainda hoje têm curso – a dicção SOB O PODER DE DEUS, distinguida no preâmbulo da Carta Maior do País, desterra de nacionais e entes dos poderes montesquieuanos da República, há compridos 37 anos, os propósitos de remover das notas de real em voga o louvamento a Deus – Trindade Santa. 

Esta ideação de Deus Pai, Filho e Espírito Santo – sabem as pessoas mais devotadas ao enredo do desenvolvimento humano – está de acordo com as certezas eclesiásticas, assentes, irremovivelmente, entre outras, nos Credos de Niceia e de Santo Atanásio, dos quais, sob o prisma histórico da Igreja, divergiu Ário de Alexandria, configurando uma heresia, daí por que é conhecido como o heresiarca de maior relevo, conforme o são Donato Magno e Paulo de Samósia. 

Atente-se para o argumento de que, consoante os laicistas em todo o Mundo, as desconcordâncias de confissões não se fazem representadas por uma unidade de ideias que privilegia apenas as religiões monoteístas, conforme a dicção proposta pelo Presidente-Senador-Deputado-Governador, Escritor de O Dono do Mar, Norte das Águas e Saraminda, pretexto a nos conduzir de retorno às reflexões iniciadas neste segmento. 

Providência salutar, já no bem distanciado 1986, chegou exatamente num instante necessário ao cultivo das coisas espirituais. Sobreveio numa ocasião em que a permissividade se escudava na sombra malentendida da democracia, quando a imoralidade e a amoralidade embasavam as consciências nascentes e plasmavam defeituosamente os caracteres. 

A reminiscência de Deus, quase esquecido no burburinho da faina diária, ainda hoje, nos acorda para a transcendência, com vistas à vida definitiva, transportando-nos a atualizar ambas as colunas da contabilidade de cada qual para o lance em que se efetivar o derradeiro encontro de contas. 

Para a maioria das pessoas, que costumamos exagerar no personalismo, Deus é uma espécie de INSS-INAMPS espirituais, de Sistema Único de Saúde - SUS celestemente transato, previdência privada, Agência Nacional de Saúde Suplementar da alma. 

Com efeito, de Deus, com a máxima recorrência, somente se recorda sob a dor, apenas se O invoca no perigo e embaixo da tribulação. Exclusivamente na agonia, se faz Seu chamamento. Mesmo assim, pretensiosamente, como se todos, a tempo e a hora, tivéssemos o merecimento da Sua audição. Não se Lhe pede proteção preventiva. Tampouco se Lhe agradece por nada! Sua evocação depende da conveniência de cada qual, numa circunstância de veemente aperto. 

Ele encontra-se, também e principalmente, na alegria, saúde, lazer, no regaço das famílias e das amizades – altivo, humano, horizontal a nós, transparência e onipresença. É realidade, empírica quanto científica. 

Jean-Paul Sartre, celebrado mestre do existencialismo heideggeriano, possuiu grandes momentos de Sua Luz, Lhe admitindo crédito, e Albert Einstein manifestou publicamente a sua ideia que tenho de Deus. 

Seja Ele louvado! Não exclusivamente pelo dístico nas cédulas do nosso dinheiro, representativas da axiologia pecuniária humana. Não só na ocasião do transe, no contato iminente com a foice da morte. 

Uma vez expressa, pois, a divisa nos títulos de nosso papel-moeda, à vista constante de todos os monoteístas de curta memória, que Deus retorne à nossa perseverante evocação, por intermédio da ideação do poeta José Sarney – extensão de Deus, conforme somos nós e toda a Humanidade, gerada, criada e pretendida como Sua imagem e semelhança.

quinta-feira, 29 de junho de 2023

ARTIGO - Teoria e Método da Revolução Cultural (RMR)

 

TEORIA E MÉTODO
DA REVOLUÇÃO CULTURAL
Rui Martinho Rodrigues* 

 

A mudança cultural de larga amplitude se deu rapidamente. É, ou tende ser, um fenômeno global. A rapidez, própria do que habitualmente é atribuído às transformações revolucionárias, guarda relação com um grande número de variáveis. Apreciá-las exigiria um trabalho de largas proporções. Façamos, sobre o tema, apenas uma breve reflexão de caráter exploratório. 

Contemplemos inicialmente (i) a mobilidade geográfica e (ii) a urbanização e((iii) a dinâmica demográfica decorrente da variação vegetativa da população como fatores que podem ser esquematicamente separados do debate intelectual. Max Frisch (1911 – 1991), comentando a imigração italiana para a Suíça, disse “queríamos braços, chegaram pessoas”. 

A identidade cultural, seja de países, região ou de pessoas, pode passar por mudanças em razão da imigração. A diversidade cultural acompanha os imigrantes. Os multiculturalismos são classificados em numerosos tipos. Entre os quais temos alguns mais relacionados com a interculturalidade. O multiculturalismo do tipo assimilacionista promove, ou tenta promover, a adaptação do imigrante à terra que o recebeu, por ser a cultura majoritária; ou por diferenças de oportunidade de influenciar e de assimilar a cultura do outro. Assim o assimilacionista promove predominantemente a mudança cultural do imigrante, adaptando-o a cultura hospedeira. 

Quando existe o propósito de construir uma cultura comum negando outras expressões culturais, então temos o multiculturalismo conservador, que rejeita a interculturalidade. A mudança cultural dirigida pode ser uma expressão do conservadorismo, embora seja típico do pensamento revolucionário assumir a direção da dinâmica social. A assimilação não é absoluta, mormente quando a imigração ultrapassa certa proporção da população autóctone. Prevalece então o multiculturalismo interativo ou interculturalidade, que reconhece a mudança cultural de todas as partes da diversidade cultural resultante dos fluxos migratórios. 

A recusa da adaptação cultural, repudiando toda influência ou contribuição das culturas diferentes, tentando congelar a própria cultura recebe a designação de multiculturalismo diferencialista, que acirrou os ânimos contribuindo para tornar a sociedade conflagrada.

(i) A mobilidade geográfica 

Os imigrantes, em muitos países, principalmente entre os mais desenvolvidos, tornaram-se uma elevada proporção da população. Isto acentuou o multiculturalismo. A situação assim criada favorece a mudança cultural, embora possa desencadear resistências diferencialistas, fato que tem acontecido. A escala global e o volume de imigrantes é enorme. O turismo, que nunca foi tão grande como nas últimas décadas, também favorece as mudanças culturais. A difusão do cinema e do rádio, depois da televisão e, por fim, das comunicações instantâneas e gratuitas proporcionadas pelas novas tecnologias digitais impulsionaram grandemente a mudança cultural. 

Tudo isso ocorre simultaneamente com a urbanização acelerada, levando a formação de grandes cidades, o aumento da escolarização e o acesso a cultura letrada. O imigrante, o turista, o morador da grande cidade são pessoas anônimas, fora do alcance do controle social difuso, exercido pelos pais e demais parentes e pessoas do meio social, especialmente os mais velhos. Ninguém os conhece. Caso alguém as conheça, não tem autoridade sobre elas. A ruptura de laços sociais fragiliza o controle social. Controle e vigilância, tão execrados por Michel Foucault (1926 – 1984), tornaram-se menos efetivos. A liberdade de agir cresceu. 

(ii)A dinâmica demográfica. 

O número de filhos por mulher caiu bruscamente. As sociedades estão envelhecendo. Famílias com poucos filhos têm uma dinâmica social diferente. A escola de tempo integral veio substituir os pais na educação dos filhos. A televisão e a internet também são competidoras dos pais na influência que exercem sobre os filhos. 

(iii) O “(des)controle social 

Os limites impostos pela convivência social tornaram-se pouco relevantes. O controle social exercido pelo Estado não conseguiu substituir o controle difuso da sociedade, seja com a perspectiva de isolamento, seja pelo simples falatório. Polícia, Ministério Púbico, Judiciário e cadeia não se mostraram efetivos em face da mudança cultural que integra o elenco de fatores relacionados com os altos índices de criminalidade em alguns países. 

Os pais já não têm autoridade, combatidos que foram em nome da repulsa ao patriarcado e em razão dos limites impostos às práticas disciplinares adotadas pelas gerações anteriores. A escola também suavizou os controles sociais. Violência como palmatória, quarto escuro e outros procedimentos disciplinares duros foram abolidos. Eram pequenas tragédias que repudiamos. Friedrich Nietzsche (1844 – 1900) concluiu, como estudioso da tragédia grega, que esta era a representação um limite, uma forma de defesa da sociedade. 

A escola adotou métodos voltados para a sensibilização, conforme relata Pascal Bernardin (1960 – vivo) na obra Maquiavel pedagogo. Tentamos afastar o que Sigmund Freud (1856 – 1939), na obra Mal-estar na civilização, entendeu ser uma inconformidade das pulsões de vida e de morte em face das limitações impostas pela convivência social civilizada. Abrimos para a abolição dos citados limites, nas sociedades em que outros fatores concorrem para o retorno à barbárie. 

Fluxos migratórios, tecnologias de comunicação, urbanização e mudança da dinâmica demográfica não são suficientes para explicar a profunda e rápida mudança cultural. 

Eliminamos a violência regulamentada na escola. Eliminamos as pequenas tragédias. Só restou a violência informal, quando estudantes se agridem das mais diversas formas e professores são ameaçados ou agredidos. A violência oficial era um método grosseiro, que merece repúdio. Mas a violência que havia era regulamentada. (1) Havia pessoa, (2) motivo e (3) circunstância definidas. A palmatória era uso privativo da professora ou de pessoa autorizada por ela. O lugar era o momento da aula. A criança não podia ser espancada com a palmatória na rua ou fora da aula, nem por qualquer motivo ou sem motivo. Hoje o espancamento e até o tiro pode vir de qualquer um, a qualquer hora, por motivo imprevisível. 

(iv) A escolarização e o acesso à cultura letrada 

A escolarização da população cresceu. O acesso à cultura letrada aumentou. Pensadores de grande prestígio tornaram-se conhecidos, ainda por comentários nem sempre fiéis de divulgadores, ainda que nem sempre bem compreendidos, ainda que lidos, descrição do fenômeno feita por Leandro Konder (1936 – 2014) na obra A derrota da dialética. Televisão, rádio, jornais e revistas há muito tempo divulgavam, ao lado de amenidades e vulgaridades, versões do pensamento sofisticado de grandes pensadores, que podem ser muito citados, pouco lidos e ainda menos compreendidos. 

Esta é apenas parte dos fatores que devemos examinar para entender a profunda revolução cultural. Outras variáveis importantes não podem ser negligenciadas quando se queira estudar os fenômenos aqui abordado.

quarta-feira, 21 de junho de 2023

REGISTRO VIDEOGRÁFICO - 12 ANOS DA ACLJ

 VÍDEO COMPLETO

Pelo link abaixo, pode-se ter acesso ao vídeo completo da solenidade comemorativa ao duodécimo aniversário da Academia Cearense de Literatura e Jornalismo, ocorrida no Palácio da Luz, no último dia 04 de maio, com duas horas de duração.

Inclui a retrospectiva foto-videográfica dos 12 gloriosos anos de existência da entidade, exibida durante a solenidade, documento histórico e memorialístico importante.



https://drive.google.com/file/d/126PeS2MR9LFTtBSyl1Ih09sC9UL7SU0H/view?usp=sharing

RESENHA - Exemplar Obra de Otacílio Batista e Francisco Linhares (VM)

  EXEMPLAR OBRA DE OTACÍLIO BATISTA E FRANCISCO LINHARE

* Vianney Mesquita

 

Eu me chamo Zé Limeira

De lima, limão, limansa

As estradas de São Bento

Bezerro da vaca mansa

Valha-me, Nossa Senhora!

Ai que eu me lembre agora:

Tão bombardeando a França

 

[Zé Limeira, Poeta do absurdo. Teixeira-PB, 1886-1954]. 


Antologia Ilustrada dos Cantadores, de Otacílio Batista e Francisco Linhares (2. Ed. UFC), o qual releio agora, talvez seja o único ensaio profundo, digno deste epíteto, a respeito da poesia popular brasileira, traçado por ensaístas-cantadores.

Ao devassar os fundos registros do tempo, da Antiguidade como da Idade Média e Renascença, Otacílio Batista Patriota e Chico Linhares perscrutam o passado e projetam o presente, acompanhando, com absoluta precisão e cognitio causae, os estádios da poesia oral dos violeiros, emboladores e cantadores, por intermédio na máquina sazonal. Eles, não somente, narram fatos e invencionices, mas, também, apontam datas e pessoas, vinculando-os às realidades sociais, políticas, econômicas e psicológicas na memória dos diversos ciclos da História. 

Expressa realidade torna o ensaio sob escólio trabalho de Ciência e de Circo de alevantado valor, para mero deleite, bem assim com vistas a embasar estudos e pesquisas em diversos setores de investigação da nossa cultura popular. 

Antologia Ilustrada dos Cantadores contribui, sem dúvidas, para preservar os valores da ruralidade nordestina, que têm no metro um dos seus mais lídimos representantes e cujo fascínio nos enseja sobreviver na produção poética, malgrado as fulgurações das modernas descobertas na senda das comunicações lhes tenham infligido rude castigo, no que respeita ao livro físico de papel, num enredo histórico que assenta como novidades crescentes, entre outras,  o transístor, o rádio, a televisão, as maravilhas da internet, e, agora – Deus nos proteja! – com a inteligência artificial, caso direcionada para o bem. 

Antologia Ilustrada dos Cantadores, como produção lúdica e interpretativa da poesia matuta, mais ou menos semelhante em seus aspectos gerais, em todo o Mundo, é um bem cultural de referência mandatória para quem demanda exercitar o tema sob qualquer ângulo. 

Demais disso, a Antologia congrega as mais gaiatas estrofes do cancioneiro de viola no Brasil, retrato colorido de pessoas e coisas do mato, distantes da escola e dos procederes citadinos, que bem transporta a maioria dos leitores às suas legítimas origens beiradeiras.


ARTIGO - Uma Revolução Cultural (RMR)

UMA REVOLUÇÃO CULTURAL
* Rui Martinho Rodrigues


 

O mundo passa por uma revolução cultural sem precedentes. Todos os papéis sociais, seja de filho e pai ou mãe; criança e adulto; homem, mulher e estão surgindo outros gêneros; professor e aluno; policial, juiz, líder religioso ou autoridade civil; mocinho ou vilão na literatura, teatro, cinema e televisão, tudo mudou. A dinâmica dos acontecimentos históricos que produziu a mudança aludida envolve uma enorme quantidade de fatores, que passamos a apresentar. As reflexões que se seguem ainda não são um estudo dos fatores citados, porque isso exigiria artigos específicos. O que se segue é uma visão panorâmica preliminar ao estudo de alguns dos aspectos da revolução cultural em comento.

 

Mobilidade geográfica, tecnologias, urbanização e escolarização 

A mobilidade geográfica e as comunicações instantâneas estimularam um certo cosmopolitismo que abalou padrões culturais de sociedades anteriormente menos expostas às influências estrangeiras. Tal fenômeno deu lugar a expressão “aldeia global”, cunhada por Marshal McLuhan (1911 – 1980). A urbanização acelerada impactou nos costumes das populações que se deslocaram do campo para as cidades. A escolarização de crescentes parcelas da sociedade e o acesso à cultura letrada potencializaram a influência de artistas, intelectuais e celebridades, que sempre tenderam a divergir dos padrões culturais estabelecidos.

Os grandes fluxos migratórios da atualidade, somados aos milhões de viajantes, intensificam o multiculturalismo do tipo interativo, não obstante as formas de multiculturalismo diferencialista também tenham se fortalecido.


A dessacralização da cultura 

O ambiente secularizado ou dessacralizado facilitou a banalização do que antes eram mores, agora transformados em folkways, com o advento da instabilidade descrita por Zygmunt Bauman (1925 – 2017) na obra Modernidade líquida. Não surpreende que padrões culturais percam prestígio. A diversidade das tendências históricas, todavia, proporcionou o surpreendente fenômeno da revanche do sagrado, assim denominado por Leszek Kolakowiski (1927 – 2009). Então o desmonte de valores tradicionais encontrou resistência facilitada pelas redes sociais, que quebraram o controle da mídia tradicional, monopolizada pela intelligentsia engajada na dialética negativa. 

O projeto de refazer a sociedade e a cultura encontrou resistência tardiamente por parte dos não convertidos. Pretensão resistida tem o nome de conflito. As sociedades tornaram-se conflagradas. Mas as objeções ao projeto demiúrgico vieram principalmente por parte da parcela da sociedade que não foi catequisada, formada majoritariamente por quem não foi “domesticado” pelos estudos formais, pela sofisticada cultura letrada, que sabe sofismar de modo convincente, inclusive fazendo proselitismo no magistério. 

O exame da revolução cultural não poderia ser feito abordando todos os fatores de uma vez. Examinaremos, nos nossos próximos artigos o impacto do projeto de reengenharia social e antropológica, aqui referido também como projeto demiúrgico.

 

O projeto demiúrgico

A difusão da ideia de que a sociedade e o homem podem ser radicalmente transformados até atingir a perfeição, se forem adotadas teses concebidas por pensadores havidos como sábios e virtuosos, deram grande impulso ao movimento de destruição dos padrões culturais estabelecidos. Os pensadores reconhecidos como senhores da verdade, embora muitos deles neguem a existência de verdades, conseguiram seduzir as elites intelectuais. Estas alimentam a ilusão de que, em uma sociedade radicalmente nova, os intelectuais serão os dirigentes, como os reis filósofos da República de Platão (427/428 – 327/328) que tanto elogiam. A desigualdade entre filósofos e os demais integrantes da sociedade, na República de Platão, não constrange os defensores da igualdade. 

A precedência da sociedade sobre o indivíduo, como se o homem devesse servir à sociedade (ao associativismo), ao invés do associativismo dever servir aos associados (cidadãos), é um dos pontos de destaque da sedutora narrativa sobre justiça, que promove também a aparência de virtude, seguindo o conselho de Nicolau Maquiavel (1469 – 1527), na obra O príncipe, para quem o importante é aparentar virtude. A ilusão dos intelectuais persiste, não obstante tenham sido preteridos pela elite política e pela burocracia, em todas as experiências históricas em que o projeto demiúrgico de reengenharia social e antropológica foi tentado. Contrariamente a utopia cultuada pelos aspirantes a reis filósofos, o que historicamente tem prevalecido é (x) a “lei de ferro da oligarquia”, enunciada por Roberto Michels (1876 – 1936). 

A adesão ao projeto citado é movida, em muitos casos, pela busca de vantagens pessoais, como bolsa de pesquisa, sucesso na seleção de programas de pós-graduação, concurso para o magistério universitário, publicação em revistas universitárias conforme relata Luiz Felipe de C. e S. Pondé (1959 – vivo), coisas controladas pelos dependentes do “ópio dos intelectuais”, na descrição de Raymond Aron (1905 – 1983), em obra cujo título é a própria expressão citada. Finalmente o despreparo intelectual de muitos intelectuais, que os torna vulneráveis à catequese dos “diretores da História”, que é como se sentem os candidatos a reis filósofos investidos da capacidade criadora de demiurgos. 

Sim, intelectual não é sinônimo de sábio, nem de erudito, estudioso ou inteligente. Thomas Sowell (1930 – vivo), na obra Os intelectuais e a sociedade, os define como integrantes da intelligentsia (pessoas engajadas em movimentos políticos e artísticos, cujas ideias se circunscrevem ao campo das abstrações). Observa o autor citado que um físico ou um engenheiro nuclear necessariamente estudam muito, são pessoas inteligentes, mas não são considerados intelectuais. É mais fácil um novelista, um poeta ou ideólogo ser contado entre intelectuais. É preciso tratar de temas políticos ou artísticos, voltando-se para as ideias abstratas, é preciso, ainda, se engajar na intelligentsia.

 

As elites clericais 

Gaetano Mosca (1858 – 1941), escrevendo sobre doutrinas políticas, identificou, em todos os tempos e civilizações, cinco grupos de poder: elite guerreira, sacerdotal, econômica, política e intelectual. Quanto mais elites e maior a competição entre elas, menos autoritária a ordem política. Quanto menor o número de elites, e quanto menor a competição entre elas, mais autoritário o sistema político. A difusão das ideias pelos meios de comunicação fortaleceu as elites política intelectual, hábeis em comunicação. O surgimento dos jornais e enciclopédias guarda estreita relação com a Revolução Francesa e uma série de outras revoluções tentadas ou consumadas. A era do rádio coincide com uma “safra” de líderes entre os quais se incluem Vargas no Brasil, Peron na Argentina, Roosevelt nos EUA, Hitler na Alemanha e tantos outros. 

Poucos tinham acesso aos textos dos intelectuais, até que a imprensa facilitou a divulgação deles por meio de enciclopédias e jornais. As grandes reformas religiosas, tantas vezes tentadas sem sucesso, tiveram algum êxito quando a bíblia foi impressa em língua vernácula. 

As elites clericais em grande parte também foram alcançadas pelo proselitismo dos intelectuais, parcela esta vulnerável em razão das limitações cognitivas decorrentes do tipo de escola que frequentaram (catequéticas), além de se deixarem levar pelos que invocam os mais altos valores, como igualdade, liberdade, fraternidade, amor ou justiça, que são conceitos indeterminados, com limites obscuros. Tal fragilidade se deve ao modo como foram escolarizados e ao modo como a catequese é conduzida, por vezes com técnicas de manipulação bastante elaboradas, conforme descrito na obra Maquiavel pedagogo, de Pascal Bernardin (1960 – vivo). As elites políticas em grande parte não têm preparo intelectual para enfrentar proselitismo dos intelectuais. Finalmente o oportunismo de quem escolhe aderir aos movimentos que parecem vitoriosos também motiva o apoio de grande parte do clero ao projeto demiúrgico.

 

Elites militares 

As elites militares, no Brasil, tendem a seguir a tendência das parcelas mais influentes da sociedade, como aconteceu quando proclamaram a República em 1889, quando desfizeram a Primeira República em 1930, quando destituíram Vargas em 1945 e quando o levaram ao suicídio em 1954, ou ainda, como em 1964 reagiram às “reformas de base” e a fragilização da disciplina militar claramente presente na Marinha, conforme relato de Celso M. Furtado (1920 – 2004), na obra Fantasia desfeita. Nos dias atuais, o estamento militar parece voltado para o profissionalismo, a liderança no meio castrense tornou-se institucional e menos personalista, o que restringe as possibilidades de um possível protagonismo político. A participação das elites militares na revolução cultural tem sido bastante limitada.

 

Um estudo que pede continuidade 

As reflexões aqui apresentadas são o esboço de uma visão panorâmica da revolução cultural em curso. O estudo de cada um dos aspectos enumerados, a exemplo do papel de cada uma das elites, dos impactos das inovações tecnológicas, da mobilidade geográfica e demais fatores exigiria um trabalho hercúleo e muito mais espaço. Deixemos algumas das análises referentes aos aspectos citados para os nossos próximos artigos.


sexta-feira, 16 de junho de 2023

SONETO - Pleonasmo Redundante (VM)

 PLEONASMO REDUNDANTE
Vianney Mesquita*



Mal começamos a falar, iniciamos o erro. [GOETHE]. 

 

Cai-me, descendo, pranto liquescido,
Qual saliva bucal gelatinosa,
D’olhos da face em sofrer padecido,
Sob debaixo de dor dolorosa.


Genuflecti com o joelho torcido,
A Deus deiforme, em prece querençosa,
Pedi que exclua de um mártir sofrido
Pena e castigo, emenda molestosa.


Burro muar e búfalo bovídeo
Sou parvo e néscio e estúpido sem halo,
Lobo canino e gafanhoto acrídeo.


E desse jeito, assim, num ágil embalo,
Modelo [é] um carrapato aracnídeo,
Ginete equestre montado a cavalo.


terça-feira, 6 de junho de 2023

ARTIGO - Desorientação Falaciosa (RMR)

 DESORIENTAÇÃO 
FALACIOSA
Rui Martinho Rodrigues* 

 

O mundo está desorientado, diz Anthony Daniels (Theodore Dalrymple, 1949 – vivo), que responsabiliza os intelectuais por isso. As sociedades estão conflagradas, fato que guarda relação com a perturbação de que fala o autor citado. A relação do mundo letrado com a tempestade no campo da cognição e da axiologia se deve, em grande parte, às raízes românticas de correntes teóricas que se tornaram poderosas, conforme Isaiah Berlin (1909 – 1997), na obra Ideias políticas na era romântica. 

Guardam relação com a perda de contato com a realidade o titanismo e o subjetivismo exacerbado vindos do romantismo e com o perspectivismo. Um quadrado, um vírus ou um computador são realidades dotadas de universalidade, embora tenham significados distintos para diferentes pessoas. A comunicabilidade começa pela universalidade da dimensão real dos objetos cognoscíveis, ensejando discursos denotativos com uma relação singular do significante com o sujeito cognoscente. A subjetividade não pode se sobrepor à realidade. 

A expressão “lugar de fala” usada nos chamados “movimentos sociais” enfatiza a influência da singularidade das experiências vividas no lugar social do sujeito cognoscente. A comunicabilidade fica ameaçada. A vigilância epistemológica fica comprometida pela desqualificação da crítica de quem não compartilha a subjetividade do outro. A comunicabilidade falece sob a ação do perspectivismo e sem ela não pode haver sociabilidade. 

O Direito, as engenharias, as ciências em geral não podem prescindir da objetividade. Nem mesmo a Psicologia pode se circunscrever apenas à subjetividade. Exemplo da necessidade de reconhecer a dimensão objetiva é o fato de ser impossível diagnosticar uma mania de perseguição sem proceder ao contraste com a realidade objetiva. O perspectivismo pode ser um convite ao delírio, ao vitimismo e à demagogia. 

O apotegma segundo o qual na Medicina, no amor e na guerra vale tudo é um pensamento errado. Pode levar ao charlatanismo, ao crime de guerra ou ferir a ética nas relações amorosas. A normatividade social não pode ser apenas uma linha, nem pode ser inteiramente indeterminada. Existe o padrão ideal e um padrão real, contidos, não em linha, mas em um campo limitado pela reprovação social, por leis emanadas do Estado e por convicções pessoais.

 

A ética da responsabilidade, diversamente da ética da convicção, representa uma forma de legitimação que invoca as razões de Estado (Max Weber, 1864 – 1920), devendo circunscrever-se aos motivos alegados. Assim preserva os limites das demais concepções de normatividade, sejam elas o utilitarismo, a tradição, costume ou a ética da convicção. A ética da responsabilidade não incide sobre as relações privadas, o que reduz a possibilidade de choque com outras concepções. 

A guerra cultural 

A guerra cultural é outro fator que desencadeou a conflagração das sociedades contemporâneas. As indagações frequentemente suscitadas em face deste tema são: existe tal guerra? Caso exista, ela é um problema relevante? O que está em disputa nesta guerra e quem são os protagonistas deste conflito? 

A primeira pergunta encontra resposta nos seguintes livros: Os intelectuais e a organização da cultura, de Antonio S. F. Gramsci (1891  – 1937); e Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado, de Louis Althusser (1918 – 1990). Estes autores falam claramente de uma luta ideologia difusa na sociedade. A Escola de Frankfurt também fala nisso. 

Mas a referida luta é uma guerra? Alguns entendem que o uso da palavra guerra, neste caso, banaliza o sentido do termo. Mas hoje estrategistas militares falam em guerra híbrida e guerra de quinta geração, expressões que engloba os embates no campo cultural, como financiamento de narrativas, promoção de mudança cultural com potencial para gerar conflito, divisões e desagregação social. 

A Sociedade Fabiana, fundada em 1884, na Inglaterra, não queria cargos, não disputava eleições. Só que queria promover a hegemonia ideológica do socialismo. Também teve o efeito de criar correntes aparentemente distintas da citada corrente ideológica, dando ao público a impressão de ter a opção de uma escolha diferente, que continuava sendo socialista, mas se apresentava como diferente. Assim isentava o suposto “espírito do socialismo” que não poderia ser responsabilizado pelas condutas do socialismo real. 

A relevância da guerra cultural 

A reengenharia social e antropológica está na origem da guerra cultural, começando pela concepção de que o motor da história é o conflito. É preciso, ainda, negar a existência de um núcleo da condição humana (natureza humana), distinto da dimensão histórica e cultural. Assim fica aberto o caminho para reengenharia antropológica. O conhecimento necessário para tal empreendimento, apresentado como “ciência”, que de fato é cientificismo, é outra coluna de sustentação do pretensioso projeto. A presunção de superioridade intelectual e de superioridade moral completam a suposta legitimação da ambiciosa meta. 

Mas ciência é o que cresce corrigindo os próprios erros (Karl R. Popper, 1902 – 1994). O projeto de reengenharia não corrige os seus erros apesar dos repetidos insucessos de suas experiências históricas. As ciências sociais têm a peculiaridade de não fazer vaticínios, diversamente das ciências da natureza. A Astrofísica antecipa eclipse com grande antecedência. A Química sabe qual será o resultado da reação entre duas substâncias (em condições definidas). Pedro Demo, na obra Metodologia científica nas ciências sociais, chega a dizer que estas ciências não vão além da hipótese. Não é possível repetir controladamente a Revolução Francesa ou a inflação brasileira dos anos noventa para testar uma teoria. 

A consciência do povo é o objeto em disputa 

O projeto demiúrgico não é científico. É cientificista e ideológico. Promete o irrealizável e formula críticas falaciosas. É uma tática de dominação. O domínio da linguagem é um dos métodos de que se vale para controlar as consciências. A ressignificação dos conceitos e a desclassificação do pensamento divergente servem ao esforço de dominação. O pensamento é uma alvenaria cujos tijolos são as palavras. Conceitos designam fatos, como os substantivos; ou juízos relativos a alguma qualidade, como é o caso dos adjetivos. Quem domina a língua domina as consciências porque pensamos com palavras. 

Quem diz “preconceito” aludindo a um juízo moral pratica uma tática de dominação. O prefixo “pre” indica anterioridade, antecedência. Preconceito é um juízo que antecede o conhecimento do objeto cognoscível. Um juízo sobre objeto conhecido não é preconceito, ainda que possa expressar um erro. Dizer que um juízo moral é preconceito é próprio de quem engana, se não foi enganado. 

Joseph S. Nye Jr. (1937 – vivo), na obra O futuro do poder, menciona três faces do poder. A primeira induz “b” a fazer o que “b” inicialmente não faria, recorrendo a campanha de informação (ou desinformação), quando for poder brando. Os meios de comunicação divulgam um novo léxico em nome dos altos valores (maldades se fazem em nome dos mais altos valores). A segunda face, ainda quando no modo brando, exclui a escolha de “b” excluindo as estratégias de “b”. Criar palavras e frases proibidas, censura em plena “democracia”, praticada “apenas excepcionalmente” e “por algum tempo”. A terceira face, ainda como poder brando, molda a preferência de “b” para que algumas estratégias não sejam sequer consideradas. 

Controlar consciências é totalitarismo. Também inclui transformar o ensino em proselitismo, juntamente com o aparelhamento da mídia. O ataque impiedoso às redes sociais não se deve as mentiras nelas divulgadas, antes reflete o incômodo gerado pelas verdades que elas noticiam.