segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

ARTIGO - A (Des)orientação Cognitiva (RMR)

 A (DES)ORIENTAÇÃO COGNITIVA
Rui Martinho Rodrigues*

 

Um certo tipo de análise da linguagem se opõe a formulação conceitual como elaboração da consciência. Afirma que não há meio de derivar articulações entre os fatos. Desclassifica a elaboração de conceitos conforme Ayn Rand (1905 – 1982), na obra Objetivismo. Nega a verdade, o que indiferencia o certo do erro e da mentira. É erro ou sofisma. 

Quem diz que a tinta de uma caneta é azul ou declara esse tipo de verdade (objetiva) que é correspondência entre o que é declarado e um fato verificável de algum modo, acerta ou erra. O racionalismo crítico, com destaque para Karl R. Popper (1902 – 1994), não repudiou verdade objetiva, pelo contrário, exigiu a validação do discurso pela crítica, diversamente do relativismo laxista. 

Verdade moral não é impossível. É a coincidência entre o dito e o que o declarante sabe, pensa ou sente. 

Verdade lógica também é possível. Não trata da materialidade do objeto, mas da harmonia entre as partes do discurso: se “A” é maior do que “B” e “B” é maior do que “C”, então “A” é maior do que “C”. Verdades lógicas são abstrações. Não se condicionam as circunstâncias, como as “condições normais de temperatura e pressão”. Não trata de objetos materiais. 

Verdades ontológicas não são verificáveis. Não são próprias da ciência. Integram a Filosofia no campo da metafísica. Ciência não trata da ontologia do ser (essência), abstraindo particularidades, buscando a abrangência capaz de alcançar a pluralidade do ser de modo pleno e integral, na visão de Aristóteles (384 a. C.– 322 a. C.). 

Ciência não diz o que é a gravidade, apenas descreve o seu comportamento como sendo diretamente proporcional a quantidade de massa dos objetos e inversamente proporcional ao quadrado da distância entre eles (Isaac Newton, 1643 – 1727). Pode se expressar como lei em sentido científico, um conjunto de fatores que em condições dadas produz um resultado previsto. 

A harmonia entre as partes do discurso, objeto da lógica, não sofre os efeitos da materialidade do objeto. Afirmar: que todos os elefantes voam; que Dumbo é elefante; logo Dumbo voa é um discurso cujas partes se harmonizam. É lógico, embora o aspecto material o desclassifique como falso. É necessário um complemento material verificável. Mas não é possível defender o relativismo laxista com base nas limitações da lógica aristotélica. As limitações do discurso metafísico não servem de arrimo ao negativismo cognitivo. 

A desorientação do mundo, causada pelos (de)formadores de opinião, de que fala Theodore Dalrymple (Anthony Daniels, 1949 – vivo), acrescente-se que a grande imprensa nos alimenta com ficção, quem quiser conhecer a realidade deve ler ficção. Albert Camus (1913 – 1960) teria dito que a ficção é a mentira que nos conta a verdade. 

O filósofo francês usou linguagem figurada. Mentiras têm o significado de negação consciente dos fatos, contrariando a verdade moral, diversamente do erro, que se opõe as verdades objetiva e lógica. A ficção não se apresenta falsamente como verdade. Conta parábolas, alegorias ou alguma forma de representação propondo verdades lógicas. 

Dizer que uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade, frase atribuída a Joseph Goebbels (1897 – 1945) e a outros autores, confunde a credibilidade de uma mentira com verdade. A mentira repetida não se torna verdade objetiva, nem verdade moral, nem verdade lógica ou ontológica. A falta de contestação confere aparência de verdade ao erro e a desonestidade. 

A imprecisão conceitual gera confusão. A consciência, em seu nível mais elementar, é um processo neurológico, simples percepção, fenômeno sensorial, automático, não volitivo, sem compreensão do processo cognitivo. No exame dos conceitos o processo cognitivo é psicológico, consciente e volitivo. A repetição sem contestação convence quem não vai além da percepção sensorial, sem a ação voluntária da vigilância epistemológica. 

O conhecimento é uma alvenaria cujos tijolos são conceitos. Negar a validade destas unidades, substituindo-as por categorias teóricas sem limites definidos, a pretexto de alcançar a diversidade do mundo real é falácia ou sofisma. Conceitos são elaborados por meio de abstrações. Alcançam certa diversidade. 

Mesa é um conceito formado com uma superfície plana sobre a qual é possível colocar coisas, situada acima do chão, apoiado em alguma coisa. Pode ter diferentes números de pernas. Pode ser feita dos mais diversos materiais, para múltiplas finalidades. Alargar a pluralidade dos conceitos é o caminho da indeterminação semântica do discurso. Encobre o raciocínio com uma nuvem de indeterminações. Protege o engodo contra a crítica. Mesa não deve se indiferenciar de cama, fogão ou avião. Sofismas se beneficiam da indeterminação semântica. 

Invocar a ciência para legitimar um paradigma que já não resiste ao esforço de falseamento proposto por Popper é erro comum. A Teoria microbiana de Louis Pasteur (1822 – 1895), relacionando micróbios com doenças, contrariou a concepção segundo a qual o ar, a água e coisas insalubres transmitiam doenças (Teoria dos miasmas). Aterrar pântanos afastava mosquitos transmissores de doenças e isso aparentemente ratificava a Teoria miasmática. A comunidade científica não compreendeu Pasteur. Alegou a autoridade de autores renomados e da tradição. Micróbios invisíveis, presentes em toda parte, que entravam nas pessoas e poderiam matá-las era coisa de paranoico. 

Segundo Max K. E. L Planck a Física só cresce quando morre uma geração de físicos. Seguidores de um paradigma se tornam impermeáveis a um conhecimento diferente, como demonstrado por Thomas S. Kuhn (1922 – 1996), na obra “A estrutura das Revoluções Científicas”. Gaston Bachelard (1864 – 1962) falou em obstáculos epistemológicos ao crescimento do conhecimento, na obra “O Novo Espírito Científico”. Muitos invocam em vão o “santo nome” da ciência em razão da cegueira dos paradigmas (Thomas Kuhn), de interesse argentário ou como tática de conquista do poder. Excluir da cientificidade desqualifica pessoas, destrói ou constrói reputações, contrariando o pluralismo da comunidade científica. 

Confundir conceitos, sem distinguir terrorismo e vandalismo; crítica à autoridade e ataque às instituições; indignação cívica e discurso de ódio é elasticidade semântica que permite confundir defesa da democracia com censura prévia; com supressão das prerrogativas da advocacia e das garantias do devido processo legal, entre as quais a supressão de instâncias (violando o princípio do juiz natural); permite criminalizar condutas não tipificadas; e permite manter em segredo procedimentos que devem ser públicos. 

Filosofia é esforço de superação da doxa, palavra grega para crença ingênua. Exige vigilância epistemológica, sem a licenciosidade da senhora de costumes cognoscitivos fáceis, como Lucio Colletti (1924 – 2001) nomeava a dialética de G. W. Friedrich Hegel (1770 – 1831). 

Defender a quadratura do círculo em nome da síntese dos contrários é licenciosidade epistemológica. Democracia é conceito complexo, elaborado com um conjunto de noções. Envolve consentimento dos cidadãos, liberdade de crítica, proteção de um ordenamento jurídico que limite o arbítrio de autoridades e uma educação que submeta teorias ao confronto com as objeções, diversamente de catequese ideológica.

CRÔNICA - Com o Exército Não Dói (MMG)

 COM O EXÉRCITO NÃO DÓI
*Marcos Maia Gurgel

 

Como 2º Tenente R/2, do quadro de saúde, lotado no Hospital do Exército em Fortaleza, cedido ao quartel do 23º Batalhão de Caçadores, participei de uma ação cívico-social em um pequeno distrito de Caucaia, região metropolitana de Fortaleza. 

Consultório de campanha montado, iniciei o meu trabalho no começo de uma bela manhã. Primeiro paciente, um falante que foi logo dizendo: 

“Toda vez que o Exército vem aqui em extraio um dente; todo mundo aqui sabe que eu só extraio dente com o Exército, porque com o Exército não dói!”. 

Posicionei o saltitante paciente na cadeira odontológica (de campanha, sem conforto), e comecei a trabalhar. 

De cara fraturei a corroa de um primeiro molar inferior, e então ouvi: “É sempre assim. Vá em frente Tenente, que eu sou descendente de índios e tenho os dentes muito duros”. 

Início de carreira, pouca experiência, corria o ano de 1978. Então pensei em me valer do Capitão-Chefe, mas não o encontrei... Convoquei então um esforçado soldado para me dar apoio e comecei o quebra-quebra, com cinzel e martelo. 

Dava sempre uma paradinha e, preocupado, perguntava: 

– Dói? – e lá vinha a resposta, incontinenti: 

– Como Tenente, se com o Exército não dói? 

Duas horas de luta, consegui o intento, mediquei e  dispensei o paciente. 

À noite, no acampamento, eu já deitado, eis que ouço o índio falante procurando o Tenente Gurgel. Pensei: meu Deus, o coitado deve estar morrendo de dor... 

Com o coração em sobressalto me dirigi a ele e perguntei: 

– Você está com algum problema? Está com muita dor? – e lá veio a resposta enfática: 

– Não estou sentindo nada. Eu vim só saber do Senhor se posso arrancar o dente vizinho amanhã de manhã – e repetiu o velho chavão: 

– Dor que nada, Tenente. Com o Exército não dói!


ENSAIO - Brasil Sem Título (MB)

Brasil sem título
Manoela Bacelar*

 

Peço licença para escrever a partir da fronteira da minha ignorância, com reverência aos indígenas e aos africanos, desencarnados em terras brasileiras, e aos seus descendentes. 

Brasil, colônia portuguesa, Século XVIII. A Capitania de São José do Piauí é desmembrada dos domínios da Bahia, em 1715, para anexar-se às terras do Maranhão, de onde é desvinculada três anos mais tarde, por decisão de D. João V. Mantém-se, contudo, subordinada à administração do Maranhão por mais quarenta anos, quando então toma posse João Pereira Caldas, seu primeiro governador, em 1758. O bispado de Pernambuco exerce alguma ingerência político-religiosa sobre seus habitantes, durante o período. 

A cena histórica narrada nos mostra baianos, maranhenses e pernambucanos disputando poder e território nos sertões do que hoje chamamos Piauí. Ao cenário, subjaz a dupla tragédia humana da opressão no Brasil, raiz que, com suas especificidades, faz do nosso país um lugar muito desigual: (1) a opressão contra os autóctones da Pindorama[1], a quem chamamos de indígenas; e (2) a opressão contra os extirpados de seus lares transatlânticos, os negros africanos escravizados.    

  



[1] Pindorama, supostamente como chamavam o Brasil em tupi, quer dizer “terra de palmeiras”.

ACIONE O LIMK ABAIXO PARA ACESSAR O INTEIRO TEOR

https://drive.google.com/file/d/11GmHySBIVUPf9Cmd3l-1HSVeQB2OGfIz/view?usp=sharing


quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

NOTA ACADÊMICA - Tales Montano Presidente da ACL

 TALES MONTANO
PRESIDENTE
DA
ACL

  

Neste dia 24 de janeiro tomou posse na presidência da Academia Cearense de Letras – a mais antiga do Brasil  o empresário e educador Tales Montano de Sá Cavalcante, em concorrida solenidade no Palácio da Luz – o grande silogeu alencarino.

Tales sucede ao médico e político Lúcio Gonçalo de Alcântara – sucessivamente Deputado Federal, Senador da República, Prefeito da Capital e Governador do Estado, como também ex-presidente do Instituto do Ceará (a nossa mais antiga instituição cultural) – Histórico, Geográfico e Antropológico – e Membro Benemérito da ACLJ.

A Academia Cearense de Literatura e Jornalismo (ACLJ) esteve representada oficialmente por seu presidente Reginaldo Vasconcelos e por seu Secretário-Geral Vicente Alencar.

Também estavam presentes, entre os convidados, os Membros Beneméritos José Augusto Bezerra, Presidente Emérito da ACL, e Ricardo Cavalcante, Presidente da Fiec (à esquerda de Cândido Albuquerque) – e o Membro Honorário Ricardo Guilherme, jornalista, poeta, ator e dramaturgo. 


A Mesa de Honra foi composta pelos presidentes transmitente e empossando, Lúcio e Tales, pelo Presidente do Tribunal Regional do Trabalho, Durval Vasconcelos Maia, pelo Deputado Federal Artur Bruno, pelo Presidente do Instituto do Ceará, General Júlio Lima Verde e pelo Magnífico Reitor da Universidade Federal Cândido Albuquerque, Membro Titular Fundador da ACLJ.

 

O grande destaque do evento foram o belo discurso de passagem do cargo proferido pelo Dr. Lúcio Alcântara, e  a fala do empossado Tales de Sá Cavalcante, aplicando uma retórica lúdica e criativa, sem deixar de ser lírica e erudita ao mesmo tempo.

Entre os convivas, o jornalista veterano Lúcio Brasileiro, que detém o recorde mundial de atividade jornalística ininterrupta, militando na imprensa cearense continuamente já há 70 anos. 

Lúcio é Comendatário da ACLJ, que lhe outorgou a Comenda Governador Parsifal Barroso quando de seu Jubileu de Diamante no jornalismo, ao completar 60 anos de profissão, como também lhe agraciou com a Medalha Comunicador Augustos Borges, em 2021.

 

Também disse presente o jornalista e artista plástico Hermínio Castelo Branco, o famoso cartunista Mino, Membro Benemérito da ACLJ, uma das pessoas mais queridas da sociedade cearense. 

Ao receber o troféu Sereia de Outro neste ano, do Sistema Verdes Mares de Comunicação, Mino fez o Teatro José de Alencar lotado explodir em aplausos e vivas carinhosos.

A cerimônia foi organizada pela Diretora Adjunta da ACL, Cláudia Queiroz, e conduzida magistralmente pela Diretora Administrativa Regina Fiúza, como Mestra de Cerimônia (à direita de Ricardo Guilherme). 

À solenidade seguiu-se coquetel, no salão principal do Palácio da Luz, embalado com boa música ao vivo, sob a  coordenação do Maestro Poty Fontenele – Membro Honorário da ACLJ. 

As fotos são do repórter fotográfico Luiz Carlos Moreira, também Membro Honorário da ACLJ.     

segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

CANÇÃO - Aspiração (AG & MC)

ASPIRAÇÃO
Aluísio Gurgel*
Márcio Catunda*












CRÔNICA - Dedilson (RV)

DEDILSON
Reginaldo Vasconcelos*


Acaba de falecer no Hospital de Messejana o promotor artístico Dedilson Martins”. Este anúncio necrológico, nos caracteres da TV, em pleno horário nobre, fez-me refletir sobre a força de vontade, esse instrumento que move montanhas.

Ecoaram pelo meu ser as palavras de Santo Agostinho: “Muito cuidado com o que você realmente quer, pois é exatamente o que você terá”. Em seguida, chamei ao telefone alguns que haviam conhecido o Dedilson menino, para dividir com eles a perplexidade que sentia.

O povo iletrado do sertão inventa nomes, combinando sílabas que forneçam um som pomposo, quando decidem variar dos tantos Franciscos, Antônios, Joãos, Josés, Raimundos e Pedros. Os pais batizaram Dedilson com esse nome meio estranho, nem Dilson nem Deusdedith, palavra sem história e sem origem etimológica.

Sobre esse nome brotou um rapaz franzino, que dissentia dos demais da prole, rudos lavradores. Moravam em nossas terras, nas fraldas da represa Lima Campos, imensa família em diminuta choupana de dois vãos, água no pode e pertences em sacos, que a mobília era mínima. Uma velha mesa e alguns tamboretes, o fogão a lenha, uma cama de varas, as redes penduradas nas forquilhas, armadas à noite, uma sobre as outras.

Ele era neto da parteira Deolinda, que aparava todos os filhos da pobreza, mas que, dele mesmo não veria algum bisneto, pois não sendo mulher, Dedilson era fêmeo. Ali e então, isto era grave, não só pelos preconceitos do povinho, desinformado sobre os milênios de uranismo que tem registrado a humanidade, mas principalmente porque aquela flor imperfeita seria sempre uma boca a mais e um braço a menos para as lides do roçado. Sua mãe, como é de regra, protegia-o, enquanto os demais se envergonhavam.

Ao ler aquele obituário na tela da Globo chamei logo Dulce Vasconcelos, que na juventude tanto se divertia com os modos do Dedilson. Em férias conosco na fazenda, folgava em conversar com o rapazola nos alpendres, como fossem duas moças. Parece que o vejo magrinho, de camisa “volta ao mundo”, indagando minha jovem tia sobre matérias de revista, sobre moda, sobre artistas.

Nesse tempo, início dos 60, a televisão em preto e branco mal servia à Capital. Naqueles ermos, onde sequer chegava asfalto, não havia luz elétrica e toda a informação vinha pelo rádio, sempre à pilha, raramente portátil. Dedilson queria saber sobre Aila Maria, com quem tia Dulce acusava parentesco, para alimentar o seu encantamento. Ele perguntou-lhe certa vez se a cantora usava “película”, confundido o termo “peruca”, de uso recente, com a palavra tradicional para as fitas de cinema.

Enfim, enquanto os irmãos lutavam contra as secas, Dedilson sonhava com a mídia: os salões da sociedade, os palcos artísticos, as passarelas coloridas. Veio, viu e venceu, dedicando sua vida ao sonho de menino.

Promoveu shows em Fortaleza, organizou desfiles, realizou concursos de beleza, contratando algumas vezes artistas de renome vindos do Sul-Maravilha. Não juntou dinheiro, e muitas vezes, perfeccionista e visionário, tão pouco lhe rendiam as promoções, que afinal não podia cumprir os compromissos.

Certa vez, depois de uma festa que pouco rendera, quase foi espancado pelos músicos. De outra feita, o cantor Aguinaldo Timóteo, contratado por ele, fracassado o show, levou-o às barras da Justiça. Mas Dedilson, vocação imperiosa, pobreza franciscana, não desistia. Até que a doença o prostrou.

Mal curado de tantas mazelas juvenis, inclusive uma tuberculose violenta, os pulmões não mais arejavam suficientemente o corpo raquítico. Silvana Portugal, linda e nobre mulher cuja beleza adolescente ele revelara em seus concursos, solitária e solidariamente prestou-lhe assistência. Sem ter nada de seu, além de um radinho de pilhas sempre à cabeceira, ele fez à amiga um último pedido: não o deixasse “descer à pedra”, a lousa anônima em que se retalham os indigentes nas faculdades de medicina.

A 19 de março de 1985, um dia de São José muito chuvoso, a pobre flor sertaneja, que já murchara, desprendeu-se da haste. Silvana procurou Luciano Monteiro, empresário magnânimo, patrocinador tradicional das festas do Dedilson, que custeou os seus funerais.

No dia seguinte, Ezaclir Aragão, renomado jornalista, que como muitos da imprensa e dos meios publicitários fora amigos do morto, publicou uma crônica comovida e gentil sobre o seu único legado: aquele radinho de pilhas, que no dia de sua morte desaparecera do hospital.


*Reginaldo Vasconcelos
Advogado e Jornalista
Titular da Cadeira de nº 20 da ACLJ

RESENHA - Como Pequenos Doces Socos no Estômago (MB)

 Como pequenos
doces socos
no estômago
Manoela Bacelar* 

 

Sol, sangue e lágrimas no agreste poético de um amor proibido que sobrevive a uma carta lacrada na posta restante do tempo. 


No Século XIX, Ludwig II, rei da Baviera, foi alvo de uma conspiração política. Uma junta médica assinou um relatório sobre sua saúde mental sem sequer examiná-lo. Paranoia, o diagnóstico. Deposto, morreu sob condições desconhecidas aos 41 anos. Não casou, não fez herdeiros. Era amante das artes. Ludwig II era homossexual. 

A história real do remoto monarca europeu toca a história ficcional contemporânea de Raimundo Gaudêncio, personagem principal de “A Palavra que Resta”, romance de estreia do cearense Stênio Gardel (2021, Companhia das Letras), finalista da 64º edição do Prêmio Jabuti.  

Em linguagem de prosa lírica, o autor maneja o léxico particular do nordeste rural brasileiro com a naturalidade de quem viveu as intensidades do sertão físico e simbólico. Está tudo ali. A paisagem, o
patriarcalismo, a dureza do chão e da honra, o não letramento e o desejo a brotar, não impunemente, entre dois rapazes: Gaudêncio e Cícero.Seis letras só, mas cabia tanta coisa que era pesado.”
  

A viagem literária atravessa quatro partes divididas em muitos e curtos capítulos, medida quase-exata de tempo-espaço para nadar e engolir as águas emocionais dos personagens. Braços dados com Gaudêncio, vi os “olhos cor de terra de Cícero lavrando os seus, a moita, a enchente, a farinhada, vi Seu Nonato com a cara virada no cão” quando os flagra no prazer inocente. Senti a quentura do sangue nas costas. Ouvi a mãe: vá embora. 

Eis a encruzilhada humana onde Ludwig II e Gaudêncio encontram-se. Ambos vítimas da violência de estruturas sociais que repudiam as pluralidades do amor. Século XIX, Século XX, Século XXI. 

No caso de Gaudêncio, outras camadas ampliam seu lugar marginal. A falta de escolaridade e a pobreza financeira fazem dele um refugiado na própria terra e não menos refugiado nas dobras da consciência da própria sexualidade. Isso se evidencia nos diálogos internos de medo, culpa, vergonha e raiva do protagonista, cuja voz costura o fluxo narrativo e se alterna, ora à voz de um narrador em 3ª pessoa, ora às vozes de outros personagens. 

A estética narrativa é contundente. Assim como a descoberta do filicídio representado pela cruz enfiada na terra: o avô de Gaudêncio matara o próprio filho por gostar de homem. O “vá embora” da mãe Caetana guarda uma medida de proteção à vida do filho? Quanto de ódio? O açoite do pai Damião é castigo mitigado frente à morte do irmão? Desonra? 

A crueza das cenas criadas por Stênio remete à crueza da poesia de Augusto dos Anjos: a mão que afaga é a mesma que apedreja... a voz que afaga, a voz que afoga. 

Cícero é a neblina de Gaudêncio, como Diadorim e Riobaldo. Mas neblina grossa é a carta. Por imposição do mesmo sistema brutal de exclusão que o expulsara de casa na juventude, Gaudêncio guarda uma carta cinquenta anos, escrita por Cícero. Não pode ler. É analfabeto. 

Após décadas na estrada como ajudante de caminhoneiro, Gaudêncio usa uma máscara social que não lhe cabe mais. A autoclausura de um muro imaginário se despedaça no momento em que ele esfacela a costela de Suzzanný Dinamarka, uma travesti que quase morre pelas mãos de ira e de catarse de Gaudêncio. 

O enredo surpreende com as possibilidades que Suzzanný representa na vida de Gaudêncio. Coragem, bravura e dignidade são virtudes que compõem o mosaico psicológico transfênix da salvadora. 

A obra cuida de tangenciar o conceito de família e a necessidade de sua reconfiguração, tendo o afeto como centralidade. 

Ao contrário do que a realidade fez com Ludwig II, a ficção permite o amadurecimento do nosso sertanejo. Ora com suavidade, ora com brutalidade, sempre com ritmo; como pequenos socos doces no estômago do leitor. 

Gaudêncio aprende a ler e escrever aos 71 anos. “Era o possível mais certo, o encontro mais interessante, esse, a mão, o lápis e a folha de papel.Mas... o que Cícero diz na carta?


sábado, 21 de janeiro de 2023

CRÔNICA - Raiva em Jaguaribe (MMG)

 RAIVA EM JAGUARIBE
Marcos Maia Gurgel*

 

Voltando para minha casa em Limoeiro, nos finais de semana, eu tinha que pegar um ônibus no terminal rodoviário da cidade de Jaguaribe, pontualmente às 17 horas. 

Jaguaribara, onde eu trabalhava, não tinha linha interurbana para Limoeiro, mas ficava muito perto de Jaguaribe – antes de ser reconstruída em outro local, para dar lugar à represa Castanhão. 

Certo sábado, quando cheguei ao terminal rodoviário de Jaguaribe, o ônibus já havia partido. E agora? – pensei comigo mesmo. Sem perspectiva de um novo coletivo naquele dia, fui informado de que na madrugada de domingo haveria uma outra condução, vinda da cidade de Iguatu. 

Mas o que fazer para passar o tempo, sem que eu me entediasse tanto? Lembrei-me de uma opção e a coloquei em prática. Conhecia o juiz da cidade, colega de faculdade em algumas cadeiras do curso de Direito. 

Fui então à sua residência, mas logo tomei conhecimento de que o “Doutor” só estava na comarca durante as terças-feiras. Então, como segunda opção, procurei a tabeliã, uma prima querida, mas soube que, por seu turno, ela não passava os fins de semana na cidade. 

Ocorreu-me, enfim, uma terceira opção: apresentar-me ao dentista mais famoso da cidade, um primo legítimo de meu pai que eu não conhecia ainda. Na garupa do mesmo moto-táxi continuei na minha peregrinação, em busca de um abrigo temporário, mas o colega e primo-segundo viajara com a família. 

Esgotadas as opções voltei à estação rodoviária, triste e resignado, mas lá eu ouvi a propaganda de um carro de som que anunciava um show do Reginaldo Rossi na cidade. 


Fiquei animado. Contratei outro motoqueiro e me mandei para o clube onde o artista cantaria – mas, de novo, a sorte não me ajudou: Reginaldo Rossi cancelara o show – talvez já sabendo do meu drama, completou a minha desdita. 

A estação rodoviária era então o meu porto seguro derradeiro. Voltei para lá, chamei o garçom de um bar interno, pedi um caldo de carne no copo; “e aí, seu guarda!”; dormi no banco público; o ônibus do Iguatu chegou às cinco da manhã. 

Nota bene: Perdoei Jaguaribe, palco dessa raiva passageira, porque é a terra natal da minha saudosa mãe, a flor mais bela no jardim dos meus afetos eternos.


 

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

CRÔNICA - Guerra Fria (RV)

GUERRA FRIA
Reginaldo Vasconcelos*

 

O mundo está novamente em guerra fria, com um foco de incêndio entre a Rússia e a Ucrânia. O Brasil está no jogo, em grande convulsão popular neste momento. Mas, pessoalmente eu folgo, porque eu creio que os Céus estão em festa.

 

O Arquiteto do Universo, Deus Supremo, está fundindo o metal bruto que se encrustou na alma humana, para depurar as ligas nobres, processo do qual sairão engradecidas as virtudes áureas e punidas as salsugens do caráter, o refugo, a escória. 

Todas as injustiças parciais serão certamente convertidas em colossais justiçamentos, individuais e coletivos, e a História Universal demonstra que o mal brota, mas não vinga, e se ele viça volta-se ao final contra os poderosos malfeitores. 

Não há notícia nos escaninhos do passado de quem tenha prosperado para sempre praticando iniquidades, pois todos por fim naufragam na própria lama produzida. A forca, a degola, o calabouço do opróbrio são o destino dos facínoras. 

Ninguém triunfa impondo o mal contra a bonança, a mentira contra a verdade, a cupidez e a perfídia sobre os virtuosos predicados. Da violência mongol, contra a qual se fez a muralha, nasceu uma China portentosa, e ao nazi-fascismo sucedeu a pujança da Eurásia e das Américas democráticas. 

Parafraseando o compositor Ivan Lins, “já está escrito, já está previsto, por todas as videntes, pelas cartomantes; está tudo nas cartas, em todas as estrelas, no jogo dos búzios e nas profecias: cai o rei de espadas, cai o rei de ouros, cai o rei de paus, cai, não fica nada”.