quarta-feira, 27 de maio de 2015

CRÔNICA (AM)


CAPISTRANO E A PRAÇA
Assis Martins*
                                                                                                          

O verdadeiro dever da História é expor fatos e medidas, e deixar observações e conclusões à liberdade e ao juízo de cada um. (FRANCIS BACON).


Um dos maiores expoentes da historiografia brasileira é, sem dúvida, o nosso coestaduano, de Maranguape-CE (Columinjuba), João Capistrano Honório de Abreu. Foi o mais importante escritor das décadas iniciais do século XX, grande estudioso da História do Brasil, da nossa Geografia e das línguas indígenas. Na sua época, talvez tenha sido a visão crítica mais lúcida dos fatos históricos.

Segundo comentaristas contemporâneos, era um tipo de homem que se enquadrava na categoria de estranho, tanto pela negligência no vestir - tinha sempre uma aparência desleixada - quanto na aversão pelos títulos, honrarias e instituições. Recusou-se até a entrar para a Academia Brasileira de Letras.

Acho que a Prefeitura Municipal de Fortaleza aproveitou o desleixo do Escritor para colocar seu nome e estátua numa das praças mais desprezadas e sujas da Cidade, a da Lagoinha, local onde se encontra a famigerada feira dos malandros, locus de encontro de marginais e ponto prostitutas, desembocadura de objetos roubados e reduto de vendedores informais, tangidos de outros logradouros citadinos.

E eis o nosso mestre, de pé, no meio daquele caos estabelecido. As suas pernas servem de apoio para a amarração de lonas que cobrem toscas barracas, enquanto outras estruturas capengas se equilibram junto ao seu pedestal, dificultando aos passantes a visão da figura ilustre.

Durante o dia, há um constante cruzamento de gente honesta com vivaldinos e aproveitadores no comércio de todo tipo de mercadoria: calçados, roupas, alimento para todos os gostos, desde milho cozido e panelada crua, até marmitas prontas, misturadas com mil bugigangas.

Ao pé da estátua do celebrado autor da Capítulos da História Colonial, além  do movimentado vaivém, também há dramas anônimos, como o epílogo do romance de Dolores e Zequinha. Foi briga feia, com xingações mútuas! E, se não fosse a intervenção de amigos, a coisa teria descambado para o noticiário policial. O amor deles começara havia dois anos quando se conheceram, coincidentemente, à sombra de outra estátua, a de D. Pedro II, na praça da Sé, onde trabalhavam como feirantes.

Não foi amor à primeira vista, e sim a prazo, pois fazia tempo que se cruzavam, quase sempre pela manhã, na hora da grande disputa por um melhor lugar para a exposição das mercadorias. Em pouco tempo, já tinham juntado os pequenos haveres e dividiam o mesmo espaço; ela com os seus bordados e ele com todo tipo de miudezas. As escapadas do Zequinha e a ciumeira da Dolores deram início a constantes pegas que tiveram o desfecho na cena de quase pugilato da praça da Lagoinha.

Como essa história, outras se juntam a essa roda-viva da miséria. Aqui, um sapateiro diligente espalha seus instrumentos de trabalho na calçada e se vira como pode no atendimento aos poucos clientes; mais além, um esperto banca o jogo da pretinha, com um olho no freguês e o outro na possível chegada da polícia; a vendedora de marmitas não tem tempo para ouvir as gaiatices dos malandros, e por aí continua a ebulição daquele universo...

Quantos casos serviriam de tema para estudos de sociólogos e literatos!

No centro da Praça, tal qual uma ilha cercada de pobreza e lixo, nosso Capistrano alonga um olhar sobre aqueles tristes destinos, enquanto da sua base saem cordas que seguram barracas malfeitas e provisórias, em cujo abrigo labutam seres acostumados com a sujeira e sem qualquer perspectiva [...]

Nota: Ilustração do saudoso Audifax Rios.


*Assis Martins 
Funcionário da U.F.C.
Cronista e Ilustrador. 
Bacharel em Geografia e Tecnologia e Gestão do Ensino Superior 
pela Universidade Federal do Ceará.

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