CAPISTRANO E A PRAÇA
Assis Martins*
O verdadeiro dever da História é expor fatos e
medidas, e deixar observações e conclusões à liberdade e ao juízo de cada um. (FRANCIS BACON).
Um dos maiores expoentes da
historiografia brasileira é, sem dúvida, o nosso coestaduano, de Maranguape-CE
(Columinjuba), João Capistrano Honório de Abreu. Foi o mais importante escritor
das décadas iniciais do século XX, grande estudioso da História do Brasil, da
nossa Geografia e das línguas indígenas. Na sua época, talvez tenha sido a
visão crítica mais lúcida dos fatos históricos.
Segundo comentaristas
contemporâneos, era um tipo de homem que se enquadrava na categoria de estranho, tanto pela negligência no
vestir - tinha sempre uma aparência desleixada - quanto na aversão pelos
títulos, honrarias e instituições. Recusou-se até a entrar para a Academia
Brasileira de Letras.
Acho que a Prefeitura
Municipal de Fortaleza aproveitou o desleixo do Escritor para colocar seu nome
e estátua numa das praças mais desprezadas e sujas da Cidade, a da Lagoinha,
local onde se encontra a famigerada feira
dos malandros, locus de
encontro de marginais e ponto prostitutas, desembocadura de objetos roubados e
reduto de vendedores informais, tangidos de outros logradouros citadinos.
E eis o nosso mestre, de pé,
no meio daquele caos estabelecido. As suas pernas servem de apoio para a
amarração de lonas que cobrem toscas barracas, enquanto outras estruturas
capengas se equilibram junto ao seu pedestal, dificultando aos passantes a
visão da figura ilustre.
Durante o dia, há um constante
cruzamento de gente honesta com vivaldinos e aproveitadores no comércio de todo
tipo de mercadoria: calçados, roupas, alimento para todos os gostos, desde
milho cozido e panelada crua, até marmitas prontas, misturadas com mil
bugigangas.
Ao pé da estátua do celebrado
autor da Capítulos da História Colonial,
além do movimentado vaivém, também há
dramas anônimos, como o epílogo do romance de Dolores e Zequinha. Foi briga
feia, com xingações mútuas! E, se não fosse a intervenção de amigos, a coisa
teria descambado para o noticiário policial. O amor deles começara havia dois
anos quando se conheceram, coincidentemente, à sombra de outra estátua, a de D.
Pedro II, na praça da Sé, onde trabalhavam como feirantes.
Não foi amor à primeira vista,
e sim a prazo, pois fazia tempo que se cruzavam, quase sempre pela manhã, na
hora da grande disputa por um melhor lugar para a exposição das mercadorias. Em
pouco tempo, já tinham juntado os pequenos haveres e dividiam o mesmo espaço;
ela com os seus bordados e ele com todo tipo de miudezas. As escapadas do
Zequinha e a ciumeira da Dolores deram início a constantes pegas que tiveram o
desfecho na cena de quase pugilato da praça da Lagoinha.
Como essa história, outras se
juntam a essa roda-viva da miséria. Aqui, um sapateiro diligente espalha seus
instrumentos de trabalho na calçada e se vira como pode no atendimento aos
poucos clientes; mais além, um esperto banca o jogo da pretinha, com um olho no freguês e o outro na possível chegada da
polícia; a vendedora de marmitas não tem tempo para ouvir as gaiatices dos
malandros, e por aí continua a ebulição daquele universo...
Quantos casos serviriam de
tema para estudos de sociólogos e literatos!
No centro da Praça, tal qual
uma ilha cercada de pobreza e lixo, nosso Capistrano alonga um olhar sobre
aqueles tristes destinos, enquanto da sua base saem cordas que seguram barracas
malfeitas e provisórias, em cujo abrigo labutam seres acostumados com a sujeira
e sem qualquer perspectiva [...]
Nota: Ilustração do saudoso Audifax Rios.
Nota: Ilustração do saudoso Audifax Rios.
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