PESCA DE CURIMATÃ COM
ANZOL
Vianney Mesquita*
O senso comum, de comum
tem muito pouco. [VOLTAIRE (1)].
Em particular na ambiência rural, praiana
ou do interior (2), com maior afastamento dos médios e grandes ajuntamentos
urbanos, têm marcha diversos entendimentos não correspondentes ao preceituado
em seus conteúdos numa situação fática de ocorrência. Constituem suposições
gerais, carecidas de qualquer base sólida, as quais não se classificaram no
âmbito da chamada sapiência popular. Esta, por sua vez, encerra crédito amplo e
efeito comprovado, servindo de modelo o dito consoante o qual quem com porcos se mistura farelos come,
máxima pública verdadeira, de entendimento ligeiro, representativa de uma lista imensa de aforismos célebres,
procedentes dessa esfera ordenadora do saber, transferidos à proporção do tempo
e por meio das descendências.
Um dos dizeres refalsados, por exemplo,
catalogado como communis opinio, mora
na ideia de que o leite é antídoto nos casos de envenenamentos e intoxicações.
Conforme leio em trabalhos científicos da área de saúde por mim transitados
para revista, os órgãos de controle e terapia toxicológica verberam,
repetidamente, o fato de ser este um conceito laico e equívoco, porquanto não é
substância com ação nem poder contra matéria tóxica, tampouco faz vezes de
terapia em pessoas intoxicadas. Acresce informar a respeito da noção de ser o
leite passível de aumentar ou tornar mais fácil a assimilação orgânica pelo
paciente.
A nação pescadora, via de regra, é
naturalmente exagerada nas afirmações – pelo que seus componentes são
conhecidos como mentireiros e enganadores. O peixe que se solta é sempre maior
de todos e o folk lore está lotado de
estórias incríveis de pescadores. Neste meio, pois, é patente a ideia, a que
todos conferem crédito, de que não se fisga curimatã (3) com anzol ou garateia.
Menos verdade.
Há alguns meses, meus queridos amigos
Alcion Lemos e Francisco Maia Ferreira – que foi durante muitos anos,
coordenador do Tráfego (4) – contemporâneos e colegas da TV Ceará-Canal 5
(antes TV Educativa), convidaram-me para uma pescaria nos Sítios Novos
(Distrito de Caucaia), em um açude fervilhante de curimatãs.
Ao chegar à casa do Alcion às cinco da
manhã, desde as três, ele arrumava os apetrechos, pois bitolado, corretamente, se
diga, nos procedimentos, a fim de ter sucesso a pescaria. E nunca fui com ele a
uma para não pegar muito pescado. Não vendo as tarrafas, tampouco os galões,
perguntei como iriam pegar curimatã somente com garateia e anzol, ao que ele
respondeu, rindo, de que eu estava mais por fora do que o Veto (5), do “Usina”,
no segundo tempo. (Contava o finado jornalista Luciano Lima haver o técnico
dito que ao time só faltava mesmo era entrosamento, ao que o Diretor replicou:
“Vamos contratar!”).
Alcion Lemos é jornalista cinematográfico
(irmão do Polion, da TV Verdes Mares). Figura interessante, inteligentíssimo,
amigo fiel e excepcional caráter, protege e ensina – ensina, mesmo – a gente a
se portar numa excursão pesqueira, conhecedor de todos os mapas dos lugares aonde
vai.
Certo dia, o citado Maia dirigia o carro. E
ele: – Pegue à direita, pegue à esquerda, vá em frente, faça isso, faça aquilo;
e coisa e tal.
E o Maia: – Homem, me deixa dirigir, do
jeito que sei...!
Não, rapaz, você não conhece o lugar. Faça
do jeito que estou ensinando. Não vá por aí ... tem um buraco grande!
O Maia teimou e, lepo (6), dentro da fossa,
quase quebrando o carro.
– Eu não lhe disse ?!!!
Nessa vez, nos Sítios Novos, desajeitado
com a indumentária contra sol e muriçocas, que o Alcion me havia imposto, fui
pegar a primeira curimatã com duas horas de treinamento, lá para as nove horas,
enquanto eles dois já estavam com os bisacos cheios. Mesmo assim, recolhi, de
garateia, 34 exemplares, que pesaram de duzentos a
novecentos gramas.
Desde essa excursão, conto o fato aos
amigos, mas, diferentemente do meu leitor, ninguém acredita.
Há, também, indicação de determinadas iscas
para fisgar – outro esparro (7) do pescador. Minhoca é para cará (8), milho
para piau (9), qualquer coisa para jacundá (10) etc. etc.
Razão assistia meu Pai, Vicente Pinto de
Mesquita, para quem a melhor isca, fosse que peixe fosse, era fumo em rolo,
aquele de mascar – “lavar os dentes”, como falava minha tia, Iolita.
Então, meu primo, Robério Telmo Campos,
professor-doutor da Agronomia (UFC), que morava lá em casa quando rapazinho,
perguntou:
–
“Seusquita”, como é que a gente faz com o fumo?
– Joga dentro da água ...
– E aí?
– O peixe recolhe a brejeira (11) e a gente
fica esperando com um pau na mão. Quando ele bota a cabeça fora para cuspir,
você taca o cacete na cabeça dele...
***
Não ocorreu, pantaleonicamente, em 1927,
mas há uns dez ou doze anos, numa pescaria noturna – o dito Alcion, eu e meu
compadre, professor da UFC e jornalista Godofredo Pereira de Sousa. Eis que Alcion, na penumbra, folga da lua,
que se escondera por trás de uns cúmulos-nimbos (mesmo em agosto), jogou a
tarrafa. Quando recolheu, além de carás e sovelas, veio enganchada, também, uma
andorinha (12).
É que – depois vimos – havia um toco largo,
quase submerso, com um ninho. A bicha nidificara quase dentro da água. Oh, Mãe
Natureza!
Quando narro essa estória, quase ninguém
concede fé.
Estão aí, porém, o Godofredo e o Alcion,
que não me deixam mentir (sozinho).
(1) François-Marie Arouet, dito Voltaire.
Filósofo iluminista, escritor e ensaísta francês. Nasceu e faleceu em Paris –
21.11.1694; 30.05.1778.
(2) Em bom Português, interiores são terras distantes do litoral, não banhadas pelos
oceanos, lagos, mares e grandes rios. Seu antônimo não é capital, como se costuma dizer e escrever. Pode-se, perfeitamente,
então, exprimir, no caso brasileiro, a noção de que há várias capitais no
interior, como, por exemplo, São Paulo, Goiânia, Teresina e Belo Horizonte.
(3) Prochilodus
nigricans.
(4) Unidade de uma emissora de rádio ou de
televisão, com pessoal encarregado, entre outras atividades, da movimentação de
materiais e equipamentos requisitados pelos vários setores da estação a fim de
operacionalizar os trabalhos de comunicação, atividades-fim da difusora.
(5) Jogador do Usina Ceará ( e de outros
clubes) que fazia muitas faltas –
ninguém lograva pegá-lo – e, por tal razão, muitas vezes, era expulso já
no primeiro tempo.
(6) Interjeição sem correspondente
dicionarizado.
(7) Aqui no sentido de gabolice, invencionice,
tolice. Palavra dicionarizada, também, com outras acepções.
(8) Astronotus
ocellatos. Tilápia. Cará-açu. (9) Leporinus
piau. Piau verdadeiro. Piapara. (10)Cremicichla
joahnna. Joana-guenza. Sabão.
(11) Porção de fumo em rolo que o sertanejo
masca ou conserva na bochecha, por vezes tirando-a da boca e guardando atrás da
orelha (HOUAISS; SALLES VILLAR, 2005). Há outras acepções.
(12) Aves passeriformes insetívoras. Várias
espécies, migratórias e não. Hirundo
rustica erithrogaster.
*João VIANNEY Campos de MESQUITA é Prof. Adjunto IV da UFC. Acadêmico Titular das Academias Cearense da Língua Portuguesa e Cearense de Literatura e Jornalismo. Escritor e jornalista. Árcade fundador da Arcádia Nova Palmaciana. Membro do Conselho Curador da Fundação Cearense de Pesquisa e Cultura-FCPC-UFC.
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