quarta-feira, 8 de julho de 2015

CRÔNICA - Pesca de Curimatã com Anzol (VM)


PESCA DE CURIMATÃ COM ANZOL
Vianney Mesquita*

O senso comum, de comum tem muito pouco. [VOLTAIRE (1)].

Em particular na ambiência rural, praiana ou do interior (2), com maior afastamento dos médios e grandes ajuntamentos urbanos, têm marcha diversos entendimentos não correspondentes ao preceituado em seus conteúdos numa situação fática de ocorrência. Constituem suposições gerais, carecidas de qualquer base sólida, as quais não se classificaram no âmbito da chamada sapiência popular. Esta, por sua vez, encerra crédito amplo e efeito comprovado, servindo de modelo o dito consoante o qual quem com porcos se mistura farelos come, máxima pública verdadeira, de entendimento ligeiro, representativa de uma lista imensa de aforismos célebres, procedentes dessa esfera ordenadora do saber, transferidos à proporção do tempo e por meio das descendências.

Um dos dizeres refalsados, por exemplo, catalogado como communis opinio, mora na ideia de que o leite é antídoto nos casos de envenenamentos e intoxicações. Conforme leio em trabalhos científicos da área de saúde por mim transitados para revista, os órgãos de controle e terapia toxicológica verberam, repetidamente, o fato de ser este um conceito laico e equívoco, porquanto não é substância com ação nem poder contra matéria tóxica, tampouco faz vezes de terapia em pessoas intoxicadas. Acresce informar a respeito da noção de ser o leite passível de aumentar ou tornar mais fácil a assimilação orgânica pelo paciente.

A nação pescadora, via de regra, é naturalmente exagerada nas afirmações – pelo que seus componentes são conhecidos como mentireiros e enganadores. O peixe que se solta é sempre maior de todos e o folk lore está lotado de estórias incríveis de pescadores. Neste meio, pois, é patente a ideia, a que todos conferem crédito, de que não se fisga curimatã (3) com anzol ou garateia. Menos verdade.

Há alguns meses, meus queridos amigos Alcion Lemos e Francisco Maia Ferreira – que foi durante muitos anos, coordenador do Tráfego (4) – contemporâneos e colegas da TV Ceará-Canal 5 (antes TV Educativa), convidaram-me para uma pescaria nos Sítios Novos (Distrito de Caucaia), em um açude fervilhante de curimatãs.

Ao chegar à casa do Alcion às cinco da manhã, desde as três, ele arrumava os apetrechos, pois bitolado, corretamente, se diga, nos procedimentos, a fim de ter sucesso a pescaria. E nunca fui com ele a uma para não pegar muito pescado. Não vendo as tarrafas, tampouco os galões, perguntei como iriam pegar curimatã somente com garateia e anzol, ao que ele respondeu, rindo, de que eu estava mais por fora do que o Veto (5), do “Usina”, no segundo tempo. (Contava o finado jornalista Luciano Lima haver o técnico dito que ao time só faltava mesmo era entrosamento, ao que o Diretor replicou: “Vamos contratar!”).

Alcion Lemos é jornalista cinematográfico (irmão do Polion, da TV Verdes Mares). Figura interessante, inteligentíssimo, amigo fiel e excepcional caráter, protege e ensina – ensina, mesmo – a gente a se portar numa excursão pesqueira, conhecedor de todos os mapas dos lugares aonde vai.

Certo dia, o citado Maia dirigia o carro. E ele:  Pegue à direita, pegue à esquerda, vá em frente, faça isso, faça aquilo; e coisa e tal.

E o Maia: – Homem, me deixa dirigir, do jeito que sei...!

Não, rapaz, você não conhece o lugar. Faça do jeito que estou ensinando. Não vá por aí ... tem um buraco grande! 

O Maia teimou e, lepo  (6), dentro da fossa, quase quebrando o carro.

– Eu não lhe disse ?!!!

Nessa vez, nos Sítios Novos, desajeitado com a indumentária contra sol e muriçocas, que o Alcion me havia imposto, fui pegar a primeira curimatã com duas horas de treinamento, lá para as nove horas, enquanto eles dois já estavam com os bisacos cheios. Mesmo assim, recolhi, de garateia, 34 exemplares, que pesaram de duzentos a novecentos gramas.

Desde essa excursão, conto o fato aos amigos, mas, diferentemente do meu leitor, ninguém acredita.

Há, também, indicação de determinadas iscas para fisgar – outro esparro (7) do pescador. Minhoca é para cará (8), milho para piau (9), qualquer coisa para jacundá (10) etc. etc.

Razão assistia meu Pai, Vicente Pinto de Mesquita, para quem a melhor isca, fosse que peixe fosse, era fumo em rolo, aquele de mascar – “lavar os dentes”, como falava minha tia, Iolita.

Então, meu primo, Robério Telmo Campos, professor-doutor da Agronomia (UFC), que morava lá em casa quando rapazinho, perguntou:

–  “Seusquita”, como é que a gente faz com o fumo?

– Joga dentro da água ...

– E aí?

– O peixe recolhe a brejeira (11) e a gente fica esperando com um pau na mão. Quando ele bota a cabeça fora para cuspir, você taca o cacete na cabeça dele...
***
Não ocorreu, pantaleonicamente, em 1927, mas há uns dez ou doze anos, numa pescaria noturna – o dito Alcion, eu e meu compadre, professor da UFC e jornalista Godofredo Pereira de Sousa.  Eis que Alcion, na penumbra, folga da lua, que se escondera por trás de uns cúmulos-nimbos (mesmo em agosto), jogou a tarrafa. Quando recolheu, além de carás e sovelas, veio enganchada, também, uma andorinha (12).

É que – depois vimos – havia um toco largo, quase submerso, com um ninho. A bicha nidificara quase dentro da água. Oh, Mãe Natureza!

Quando narro essa estória, quase ninguém concede fé.

Estão aí, porém, o Godofredo e o Alcion, que não me deixam mentir (sozinho).

(1) François-Marie Arouet, dito Voltaire. Filósofo iluminista, escritor e ensaísta francês. Nasceu e faleceu em Paris – 21.11.1694; 30.05.1778.
(2) Em bom Português, interiores são terras distantes do litoral, não banhadas pelos oceanos, lagos, mares e grandes rios. Seu antônimo não é capital, como se costuma dizer e escrever. Pode-se, perfeitamente, então, exprimir, no caso brasileiro, a noção de que há várias capitais no interior, como, por exemplo, São Paulo, Goiânia, Teresina e Belo Horizonte.
(3) Prochilodus nigricans.
(4) Unidade de uma emissora de rádio ou de televisão, com pessoal encarregado, entre outras atividades, da movimentação de materiais e equipamentos requisitados pelos vários setores da estação a fim de operacionalizar os trabalhos de comunicação, atividades-fim da difusora.
(5) Jogador do Usina Ceará ( e de outros clubes) que fazia muitas faltas –  ninguém lograva pegá-lo – e, por tal razão, muitas vezes, era expulso já no primeiro tempo.
(6) Interjeição sem correspondente dicionarizado.
(7) Aqui no sentido de gabolice, invencionice, tolice. Palavra dicionarizada, também, com outras acepções.
(8) Astronotus ocellatos. Tilápia. Cará-açu. (9) Leporinus piau. Piau verdadeiro. Piapara. (10)Cremicichla joahnna. Joana-guenza. Sabão.
(11) Porção de fumo em rolo que o sertanejo masca ou conserva na bochecha, por vezes tirando-a da boca e guardando atrás da orelha (HOUAISS; SALLES VILLAR, 2005). Há outras acepções.
(12) Aves passeriformes insetívoras. Várias espécies, migratórias e não. Hirundo rustica erithrogaster.


*João VIANNEY Campos de MESQUITA é Prof. Adjunto IV da UFC. Acadêmico Titular das Academias Cearense da Língua Portuguesa e Cearense de Literatura e Jornalismo. Escritor e jornalista. Árcade fundador da Arcádia Nova Palmaciana. Membro do Conselho Curador da Fundação Cearense de Pesquisa e Cultura-FCPC-UFC.

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