DEDILSON
Reginaldo
Vasconcelos*
“Acaba
de falecer no Hospital de Messejana o promotor artístico Dedilson Martins”.
Este anúncio necrológico, nos caracteres da TV, em pleno horário nobre, fez-me
refletir sobre a força de vontade, esse instrumento que move montanhas.
Ecoaram pelo meu ser as palavras de Santo
Agostinho: “Muito cuidado com o que você
realmente quer, pois é exatamente o que você terá”. Em seguida, chamei ao
telefone alguns que haviam conhecido o Dedilson menino, para dividir com eles a
perplexidade que sentia.
O povo iletrado do sertão inventa nomes,
combinando sílabas que forneçam um som pomposo, quando decidem variar dos
tantos Franciscos, Antônios, Joãos, Josés, Raimundos e Pedros. Os pais
batizaram Dedilson com esse nome meio estranho, nem Dilson nem Deusdedith,
palavra sem história e sem origem etimológica.
Sobre esse nome brotou um rapaz franzino,
que dissentia dos demais da prole, rudos lavradores. Moravam em nossas terras,
nas fraldas da represa Lima Campos, imensa família em diminuta choupana de dois
vãos, água no pode e pertences em sacos, que a mobília era mínima. Uma velha
mesa e alguns tamboretes, o fogão a lenha, uma cama de varas, as redes
penduradas nas forquilhas, armadas à noite, uma sobre as outras.
Ao ler aquele obituário na tela da Globo
chamei logo Dulce Vasconcelos, que na juventude tanto se divertia com os modos
do Dedilson. Em férias conosco na fazenda, folgava em conversar com o rapazola
nos alpendres, como fossem duas moças. Parece que o vejo magrinho, de camisa
“volta ao mundo”, indagando minha jovem tia sobre matérias de revista, sobre
moda, sobre artistas.
Nesse tempo, início dos 60, a televisão em
preto e branco mal servia à Capital. Naqueles ermos, onde sequer chegava
asfalto, não havia luz elétrica e toda a informação vinha pelo rádio, sempre à
pilha, raramente portátil. Dedilson queria saber sobre Aila Maria, com quem tia
Dulce acusava parentesco, para alimentar o seu encantamento. Ele perguntou-lhe
certa vez se a cantora usava “película”, confundido o termo “peruca”, de uso
recente, com a palavra tradicional para as fitas de cinema.
Enfim, enquanto os irmãos lutavam contra as
secas, Dedilson sonhava com a mídia: os salões da sociedade, os palcos
artísticos, as passarelas coloridas. Veio, viu e venceu, dedicando sua vida ao
sonho de menino.
Promoveu shows em Fortaleza, organizou
desfiles, realizou concursos de beleza, contratando algumas vezes artistas de
renome vindos do Sul-Maravilha. Não juntou dinheiro, e muitas vezes,
perfeccionista e visionário, tão pouco lhe rendiam as promoções, que afinal não
podia cumprir os compromissos.
Certa vez, depois de uma festa que pouco
rendera, quase foi espancado pelos músicos. De outra feita, o cantor Aguinaldo
Timóteo, contratado por ele, fracassado o show, levou-o às barras da Justiça.
Mas Dedilson, vocação imperiosa, pobreza franciscana, não desistia. Até que a
doença o prostrou.
Mal curado de tantas mazelas juvenis,
inclusive uma tuberculose violenta, os pulmões não mais arejavam
suficientemente o corpo raquítico. Silvana Portugal, linda e nobre mulher cuja
beleza adolescente ele revelara em seus concursos, solitária e solidariamente
prestou-lhe assistência. Sem ter nada de seu, além de um radinho de pilhas
sempre à cabeceira, ele fez à amiga um último pedido: não o deixasse “descer à
pedra”, a lousa anônima em que se retalham os indigentes nas faculdades de medicina.
A 19 de março de 1985, um dia de São José
muito chuvoso, a pobre flor sertaneja, que já murchara, desprendeu-se da haste.
Silvana procurou Luciano Monteiro, empresário magnânimo, patrocinador
tradicional das festas do Dedilson, que custeou os seus funerais.
No dia seguinte, Ezaclir Aragão, renomado
jornalista, que como muitos da imprensa e dos meios publicitários fora amigos
do morto, publicou uma crônica comovida e gentil sobre o seu único legado:
aquele radinho de pilhas, que no dia de sua morte desaparecera do
hospital.
*Reginaldo Vasconcelos
Advogado e Jornalista
Titular da Cadeira de nº 20 da ACLJ
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