sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

CRÔNICA - Sobre o Tempo os Gênios e as Traças (GJ)



Sobre o tempo,
os gênios e os
desenhos das traças.
Geraldo Jesuíno*


Eis que me deparo a percorrer sinuosos bordados, às margens de algumas folhas de papel, criados pelo trabalho incansável e paciente das traças.

Em outros casos estaria a lastimar a ação impiedosa de tais insetos ante a perda da integridade de algum documento de reconhecida valia, mas não aqui.

Neste caso, expressa e deliberadamente, desapego-me da posse e da mágoa e debruço-me, ao amparo da minha coragem, a urdir, como em linguagem silenciosa que apenas a mim fosse permitido ouvir, outros pensamentos, outros significados.

Trato aqui dos desenhos criados pelos perseverantes artrópodes nas margens das laudas que compõem um repertório de afetos, disfarçado em livro de anotação de presenças do Mini Museu Firmeza, apostos como registros na última parte deste Hoje e o tempo passado e Um encontro com as lembranças, de Estrigas.  Neles vejo o tempo. Não um tempo cruel e implacável, mas aquele, sereno e necessário ao engendramento da história, à acumulação dos feitos e à acomodação das memórias.

Vejo a força da persistência, da dedicação e da desvelada determinação em resistir, mesmo em restantes fragmentos, a serem buscados e escandidos, registrados e impressos, em minúcias, para servirem de alimento a futuras fomes de saber e, também, a outras traças – quem sabe – a causar naqueles, perversos prejuízos.

Dizem-me tais interferências, da paz, da quietude, do aconchego e da benquerença cravados e estampados nas árvores e flores, nos tetos e nas paredes, nos sorrisos e nos semblantes, e até no tractraquear das rodas de trem sobre os trilhos e dormente, já entes da casa, seladas como legados permanentes e exuberantes da chácara dos Fimeza e dos seus habitantes.

Garimpando vestígios, por entre os desenhos dos insetos, vejo o exercício do retorno às lembranças lavradas – mas nem sempre legíveis – nas, tal e qual as bordas do papel, sinuosas pistas da memória.

Observo ainda a consciente manutenção de existências moldadas, exclusiva e deliberadamente, sobre a arte que exercem, intencionalmente ou não. Isto porque, ao olho do leitor atento e bem treinado nos domínios da linguagem da arte, esta pode, sem sacrifícios de conceitos, ser constatada no rendilhado aleatório do recorte executado pelas traças à bodas das folhas de papel. A elas – as traças – no entanto, talvez não importe chegar a tal estado estético que, ao defender a manutenção de sua curta existência, terminam, indeliberadamente por promover.

Diferente dos pequenos devoradores de papel, o autor desta obra, artista de escol e pesquisador cioso e severo, a quem tenho orgulho de chamar de amigo, ao lado de sua Nice musa companheira, faz arte de moto próprio, promove-a deliberadamente por escolha e paixão, quando empunha seus instrumentos, e dá asas à sua imaginação e criatividade revelando a magia das formas, das cores e das palavras, ou apenas a faz, sem nenhum esforço ou proposição deliberada, simplesmente sendo o Estrigas que é.

Ainda em sinuoso raciocínio segui Estrigas em cada página desta obra e o constatei como o que retorna, sem pressa e sem temor, às nervuras do tempo, lá cuidando de recolorir e reavivar os rascunhos quase desbotados das suas lembranças mais caras. Vejo-o pintar em tons pastel, com suas usuais competência e paixão, sua paciente e disciplinada trajetória de cidadão, pensador e artista. Vejo-o quase zen ao escolher a maturidade como opção de postura para a sua interpretação dos valores do tempo. Vejo-o um crítico/historiador que não se rebela em atitudes dramáticas, mas também não lega ao somenos o seu papel de observador, que mantém atento, das sinuosas venturas e desventuras da arte e da cultura, mormente aquelas da cidade que abraçou.

Vejo a mim, por derradeiro, agradecido por ter aprendido, mediante olhos sábios, a perceber o tempo, as traças e os seus feitos para entender um pouco mais sobre esse exemplar de gênio que caminhou sempre, e apenas, sobre a urdidura da sua coerência.


(*) Texto publicado como posfácio no último livro do pintor, escritor e critico de arte Nilo de Brito Firmeza – ESTRIGAS (Hoje e o tempo passado/ Um encontro com as lembranças, Fortaleza, SESC, 2014).

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