DR. ARCOVERDE
Paulo Ximenes*
O médico oftalmologista Antônio
Ellery Arcoverde Diniz, que, outrora o acolhíamos apenas por Arcoverde, é
vulto para jamais cair no esquecimento. Suas particularidades, às vezes
simplórias, às vezes refinadas, o tornariam único, mesmo num universo de
criaturas valorosas já no outro assento da vida. Incomum – talvez fosse esse
o adjetivo que melhor se lhe enquadrasse; mas o termo poderia ser
perfeitamente expandido para outros adjuntos a lhe acrescerem méritos ainda
mais largos: prestimoso, querido, carismático, requisitado, elegante...
Sua voz estrídula, meio que aguda,
quase ao tom de um baque metálico, era fruto de uma limitação auditiva que
lhe perseguia desde a infância – desses vírus traquinos, dessas doenças de
menino. O fato é que, nos diálogos cotidianos, ele parecia bem à vontade; mas
bastava um pouco mais de atenção, para que se percebesse o fato de que, a
decifração das suas falas se dava melhor pela leitura labial do que pela
sonoridade advinda delas. Nem por isso – excetuando-se os locais em escuridão
– as conversas ali deixavam de fluir em plena normalidade.
No que se refere ao quadrante
propriamente corpóreo, ascendiam-lhe traços não muito comuns à fisionomia
cearense. A pele morena e os cabelos levemente ondulados – embaídos ainda por
um bigode espesso da cor do ébano, posteriormente elevado à condição de
cavanhaque – alevantava a farta impressão de sangue paquistanês casado com
árabe; mas era baiano misturado com varzealegrense.
Nada havia nesse mundo que lhe
pudesse retocar o caráter sem mancha e a educação primorosa talhada nos
melhores colégios de Fortaleza, no seio de uma família íntegra, do mais fino
trato. E ainda por cima, no que foi certamente o seu maior trunfo,
aflorava-lhe uma inteligência afiadíssima, emparelhada com um bojo de
conhecimentos que se espalhava da literatura clássica à história pura, da
ciência aos emaranhados políticos, dos grãos de areia ao peneirado cósmico.
Poucas criaturas do nosso meio se atreviam a barganhar argumentos com o Dr.
Arcoverde, conquanto a sua sagacidade de saber acabava avassalando as
concepções intelectuais pequenas e infundadas.
Ponho-me em risco ao discorrer
sobre um elemento tão singular. É possível que me escapem minúcias
imprescindíveis a uma justa biografia, ou melhor, a uma honesta tentativa de
minha parte em prestar uma homenagem àquele que me foi, em vida, um grande e
valoroso amigo. Ao encalço deste intuito, ocorre-me o relato de uma cena
transcorrida no final dos anos setenta em Fortaleza, numa barraca de lona na
Praia do Futuro, açoitada pelos ventos, aplainada em troncos de carnaúba e
iluminada pelo fulgor da lua.
Éramos umas quinze ou vinte
pessoas, entre moças e rapazes, universitários em plena impetuosidade que a
idade e a época nos permitiam. E o Arcoverde, calouro de medicina, o caçula
do grupo, fruía aquele momento ímpar de canto tropical, coisa que ele
apreciava como ninguém: os Novos Baianos, O Pessoal do Ceará, o Benito de Paula,
o Martinho da Vila e a inevitável Beth Carvalho; com eles tragávamos as
madrugadas cantando e tocando. Cálices de branquinha desciam serenos como se
fossem água de beber. Mas a sua sensatez, jamais trastejada pelo etílico,
costumava despontar do breu das amenidades e das bebedeiras, com algumas
tiradas de mestre.
Ao meu ver, foi justamente naquela
barraca de lona, e naquela noite, onde, pela primeira vez, a palavra
“incomum” fez-se necessária para a descrição de uma das qualidades mais
marcantes do futuro médico. É o termo mais indicado para quem desenvolvia,
como ele, uma percepção de um mundo real que se antecipava à própria idade,
esticando o olhar para onde a cegueira dos outros se instalavam de forma
inexorável.
Ia alta a madrugada. De repente,
um dos rapazes, até então destituído de maiores manifestações de senso e
maturidade, alanceou-nos com esta indagação interessante: “Qual a mulher
ideal?”
Surgiam respostas desenfreadas
como água bruta em ribeirão. Todas num mesmo tom, brunidas, talvez, pela
testosterona que induz os varões ao animalismo e os torne contumazes
no erro.
– A mulher ideal é a loura!
– Pois eu já prefiro a morena.
– Vou discordar de vocês: a mulher
ideal é a ruiva.
O quarto opinante, quase
surpreendeu, com uma pausa demorada:
– Penso diferente... a ideal é a
asiática!
A linha das respostas seguia
misteriosamente e automaticamente o sentido anti-horário no círculo das
cadeiras dispostas ao redor da mesa. Aí chegou a vez do Arcoverde entornar o
seu pitaco. Esperava-se que ele derramasse a sua homenagem sobre a mulher
indígena (ainda não contemplada, e por ele tão defendida!) ou, quem sabe, sobre
a legítima cabrocha sertaneja, no esplendor de sua tão decantada brejeirice.
Qual nada! Eis a sua sentença:
A minha mulher ideal não deve ser
tão feia que me assuste ao acordar, nem tão bonita que me mate de ciúmes...
Quero uma mulher que, estando eu em desespero, saiba ela passar a mão sobre a
minha cabeça, e me dizer bem baixinho: “Não se aperrei meu filho! Isso
passa!”
Instalou-se ali um silêncio
incômodo. Um puxão de orelha dessa magnitude, numa hora dessas, é coisa pra
fazer o cérebro pegar no tranco. Eu, que votei na beleza da loura, senti-me
deveras miúdo, quase desprezível. Ele parecia ter imposto, naquele instante,
argumentos a um bando de asnos...
Na verdade, o nosso futuro doutor,
gentil e elegante que era, seria incapaz de impor propositalmente um
constrangimento assim a quem quer que fosse. Então, ao perceber o estrago
causado por aquela “bomba”, pôs-se, imediatamente, um “João-sem-braço”.
Lembro-me exatamente do que ele fez: levantou-se da cadeira, atracou-se num
tamborim e entrou no samba sorrindo, esganando-lhe o ritmo; a César o que é
de César; e a mim, o tamborim! – costumava dizer. Depois, dado à ineficácia
da sua baqueta, tentou inventar uns passos na areia, uma coisa tão desconjuntada
quanto um japonês sambando na Sapucaí. De qualquer forma, amenizou o clima;
fez chover sorrisos na barraca. Todos o acompanharam e foram com ele dançar.
Sob uma chuvinha fina, mais uma rodada de pinga no reino da madrugada.
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