domingo, 10 de janeiro de 2016

CRÔNICA - Palavras São Navalhas (RV)

PALAVRAS SÃO NAVALHAS
Reginaldo Vasconcelos*



Nos anos 70 ainda vivíamos no Brasil a mais tacanha mentalidade pública em relação aos mais velhos, que somente por especial eufemismo, de rara aplicação, eram tratados de “idosos”. Foi quando me causou estranheza constatar a deferência que os norte-americanos já tinham para com as pessoas de mais idade, a que chamam “seniors citizens”. 

Interessante notar que esse antigo vezo brasileiro de desprezar os velhos tinha origem nas nossas raízes europeias, que mesmo na sua tradição oral, observada nas fábulas infantis, as pessoas más, os feiticeiros, as bruxas, as madrastas, o patrão perverso, o avarento, são sempre representados como seres macróbios e caquéticos.

Para os africanos e ameríndios, que somaram suas culturas à dos colonizadores portugueses, os mais antigos eram respeitados como os detentores da sabedoria filosófica e da mais longa experiência prática que suas tribos dominavam, artigos imateriais considerados preciosos.

Todavia, parece ter prevalecido entre nós a atitude discriminatória da Ibéria. Inclusive no nosso meio rural, em que os velhos eram tratados como trastes, já que não podiam mais trabalhar e nem tinham vigor físico para agir com energia. Seu destino era o “fundo das redes”, como se dizia no Nordeste, com grande carga de desprezo.   

Na África e nas Américas antigas os velhos eram os caciques e pajés, as parteiras e curandeiras, as pitonisas e os sacerdotes, e em muitos casos componentes de conselhos de idosos, aos quais eram submetidas todas as questões mais cruciais de suas comunidades – como, aliás, também faziam os gregos antigos, na origem do que hoje se conhece como “senado”, formado por “senadores” (do latim senex = velho).

Aliás, as comunidades indígenas e negras atuais ainda conservam essa reverência especial aos idosos em todo o mundo – haja vista o destaque que se dá às “velhas guardas” das escolas de samba cariocas, o que se repete entre os músicos de jaz americanos e entre grupos musicais caribenhos, em que a senectude conta pontos positivos.

Mas a modernidade generalizou por todo o Planeta o conceito americano especial dos veneráveis seniors sitizens, criando no Brasil a reverente expressão “Terceira Idade”, e ainda a mais carinhosa forma “Melhor Idade”, tudo culminando com a promulgação do chamado Estatuto do Idoso, regulamentando artigos da Constituição Cidadã, norma jurídica protetiva à classe dos sexagenários em diante.

A partir de então as pessoas de mais idade passaram a ter jus aos mais amplos privilégios, no sentido de que se lhes garantam cuidados e regalias, que vão desde vagas especiais de estacionamento, precedência nas filas, até maior celeridade em suas ações judiciais. E, o mais importante, as instituições devem prestar essas atenções singulares aos idosos sem lhes causar constrangimentos, sem lhes demonstrar má-vontade, sem dar foros de favor indevido a esses direitos, que são legítimos e legais.

Malgrado, cidadão de idade denuncia ao Blog que foi ao Laboratório Emílio Ribas e recebeu uma senha para atendimento, com a inscrição “preferencial”, conforme impõe o Estatuto do Idoso – mas notou que nas senhas comuns destinadas aos mais jovens o termo utilizado era “normal”. Ora, o antônimo de “normal” é “anormal”, e, como diz o artista sônico cearense Belchior, em letra de música, “palavras são navalhas”.

O idoso em questão sentiu-se moralmente discriminado quando percebeu que, perante os membros das novas gerações ali presentes, sua condição etária estava sendo estigmatizada pela “anormalidade”, palavra que, como se sabe, adquiriu semântica pesada e conotação pejorativa. Faz todo o sentido, embora isso possa parecer um capricho banal, pois somente quem pode avaliar o dano moral é quem o sofre.

A propósito, lembro bem que no início da vigência do Estatuto do Idoso os gerentes do extinto Banco do Estado do Ceará designavam o funcionário mais habilidoso de cada agência para avisar aos clientes de aparência madura que eles tinham direito a uma fila especial. Se isso não fosse feito com muito tato, alguns destes regiam mal, imaginando lhe estivessem considerando fisicamente inferiores. 

Enfim, tendo em vista que uma academia literária é majoritariamente composta por juveníssimos anciãos, todos especialistas em palavras, e que uma academia de jornalistas prima pela melhor difusão de informações, nos solidarizamos com o denunciante, e nos comprometemos a provocar a nossa Decúria Diretiva para que expeça ofício à empresa em questão, apelando para que substitua, nas senhas não preferenciais, a palavra “normal” pelo seu sinônimo “comum”.

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